Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Amarguras, caixotes, plantas
Há uma história para o modo como habitamos interiores e uma ligação invisível entre eles
27jul2023 | Edição #72Parece haver uma validade para o tempo que uma casa nos suporta, depois da qual a engasgamos, apesar de mantermos a ilusão de que é por nós que o prazo se mede. A casa, cuspindo-nos, ensina-nos sobre a tolerância que os lugares domesticados têm à domesticação. Aprendemos sobre como os lugares nos toleram, o que é conhecimento sobre o que somos e não sobre lugares. Com sorte, alinhamo-nos, prevenindo um conflito. À nossa saída, são cabanas devolvidas à floresta. A nossa natureza domina a casa enquanto a natureza domina a casa. Os ramos da árvore entram pela janela, acumula-se uma poça de água. Nos últimos dias, a casa reduz-se ao irritante onde nos lavamos e onde dormimos, eclodem obras na vizinhança.
Costumávamos desistir das nossas casas mal nos mudávamos, deixando caixotes por abrir, até nos esquecermos do passado que ia neles. Há uma história para o modo como habitamos interiores e uma ligação invisível entre os interiores que habitámos. Categorias de pessoas ligam o nosso modo de habitar aos modos de vida de onde provimos. Categorias de interiores ligam esse modo aos interiores que habitámos. Não relocalizamos apenas colecções de hábitos. É o nosso modo de habitar que une os lugares e as pessoas e nos ultrapassa. As nossas casas vão imitando as casas onde crescemos como nós estamos a cara chapada de antepassados. Procurando apartamentos, perseguimos, sem sucesso, um apartamento de infância, para sempre perdido. Parecemos filhos à procura daquela casa onde nos aninhavam a roupa da cama. Vamos pela vida, mas regredindo ao primeiro abrigo, agora que não há escudo que nos valha.
Vamos pela vida, mas regredindo ao primeiro abrigo, agora que não há escudo que nos valha
Em reacção a uma pergunta, uma amiga mudou a disposição dos móveis da sala pela primeira vez em quinze anos. Eu perguntara-lhe quando mudara os móveis pela última vez. A sala estava arrumada, mas a dona da sala desarrumara-se. Mostrou-me a sala como se revelasse o seu corpo. A arrumação protegia-a, a nova disposição deixara a nu a sua intimidade. Imaginei-a enquanto experimentava variações, a arrastar os sofás, a trocar o espelho de sítio, sempre na mesma solidão e fúria leve. Ela disse-me que percebera que precisava de qualquer coisa bonita para pôr em cima da lareira. A mudança salientara esta necessidade.
Escrever assemelha-se a comandar uma fila indiana abrindo caminho com uma faca no escuro e na humidade, constituindo o interior em direcção ao interior. O sentido do caminho não parece estar no fim do trilho, na expectativa de uma clareira, mas em tornar o trilho existente. Walt Whitman fala dos interiores dos interiores e dos exteriores dos exteriores: “Não duvido que os interiores tenham os seus interiores, e os exteriores tenham os seus exteriores”. Para lá da rua existe, porventura, mais rua, mais ar. O exterior do exterior também somos nós, possivelmente livres, abertos. Agora, porém, quase concluímos as mudanças. Viramo-nos para candeeiros, cómodas, caminhos. De nómadas, tornamo-nos breves caçadores-decoradores. Disfarçamos amarguras com cães e plantas. As lembranças tornam-se pastoreio, apesar de, à superfície, continuarmos mais ou menos na mesma.
Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.
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