Onde Queremos Viver,
Amar não morre
Partir é parecido com morrer: só agora me deparo com a importância que tenho para os outros
08jun2023 | Edição #71Anuncia-se a partida. Só então me deparo cruamente com a importância que tenho na vida dos outros. Partir é parecido com a morte. Penso nos meus mortos. Talvez estejam algures em Nova Iorque.
Vou da melancolia de imaginar que serei importante para — quantas? — uma ou duas pessoas à alegria dessa imagem. E se todos quanto amei e perdi tiverem apanhado o avião para a cidade para onde vou? Deambulando pelos quarteirões, o meu pai e os meus avós, nova-iorquinos, que será feito deles, serão por lá sem-abrigo ou chacais de Wall Street?
Tenho a certeza de que não os reconheceria, mesmo que esbarrássemos na rua. Jamais me saberiam sua filha, mesmo que me olhassem olhos nos olhos no metro. Mas a ideia de que o meu destino foi o seu destino, a ideia de que morrer é como andar perdido numa cidade descomunal, empresta uma demão de esperança à minha própria partida. Não os reconheceria, porque não poderia reconhecer. A morte transfigura os mortos e os vivos e já nem eu sou quem era quando eles morreram.
As fotografias não mentem. O luto adulterou para sempre a minha cara. Tudo no rosto está no mesmo lugar. A boca, o queixo, o nariz, as sobrancelhas. Olho os meus olhos: o luto matou-os. Estou viva, mas estes olhos já não são os mesmos. Aqueles com que nasci morreram com o meu pai.
O destino dos mortos
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A esta distância, Nova Iorque é o destino de todos os mortos, é para lá que se vai quando se morre, purgatório abissal. Revejo as vezes em que, andando perto de casa, me parece que vejo passar o meu pai ou o meu avô, revejo os homens todos com os quais os confundo. A cidade dos sósias dos meus mortos será, em breve, a minha.
Para quantas pessoas haveria eu de ser importante, por que haveria de ser importante para mais pessoas? Não é sequer um reconhecimento triste, talvez seja só lúcido. Talvez cada pessoa tenha direito aos seus dois dedos de companheiros verdadeiros, e a mais nenhum. Ser importante para poucos, e ainda assim saber o que é ser importante para alguém, já vale a pena.
Não há livro nenhum que valha o que vale uma pessoa ou um animal amado, nenhum
O filósofo David Hume escreveu no fim da vida que tinha sido os seus livros. Eu costumava achar essa ideia um poderoso e belo epitáfio. Escrever tão verdadeiramente que se é aquilo que se escreveu. A vida vivida e a vida escrita serem uma e a mesma. Olho agora com cinismo essa ideia, encontro melancolia nesse remate. Não sei se existe um grande livro sobre o luto de um livro: se houver, nunca li. O livro vem, revolve, arrasta, passa, deixa um vazio, não há outra maneira de o dizer. Mas não é nada como perder uma pessoa, nem sequer como perder um cão. Não há livro nenhum que valha o que vale uma pessoa ou um animal amado, nenhum.
Saber os meus mortos fantasmas na nossa nova cidade, isso sim seria uma salvação, ainda que não nos encontrássemos. Talvez o meu pai seja hoje aprendiz de talhante no bairro ucraniano. Talvez o meu avô seja porteiro num edifício da Park Avenue. Aprendi ao perdê-los que quem se ama nunca morre. Nada que seja amado pode morrer. Amar não morre.
Matéria publicada na edição impressa #71 em julho de 2023.
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