Verdades secretas de RuPaul
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Renan Quinalha

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Rita von Hunty

Verdades secretas de RuPaul

Livro de memórias foca em edificar a jornada do artista que colocou a arte drag no mapa do entretenimento, mas ignora suas contradições

01jun2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #82

RuPaul existe como um ponto de referência incontornável na cultura pop da virada do século. A drag queen montada por RuPaul Charles atingiu números estratosféricos nas últimas décadas e, desde o início dos anos 90, figura invariavelmente no imaginário de qualquer pessoa que acompanhe a produção queer ao redor do mundo.Para quem tem menos familiaridade com a artista, talvez valha dar início à resenha de sua mais recente autobiografia, A casa dos significados ocultos, com um pouco de recapitulação. 

Aos 63 anos, RuPaul é uma pessoa negra de origem pobre, nascida e criada na Califórnia. Sua carreira atingiu patamares de fama internacional em 1993, com o lançamento do seu primeiro álbum de estúdio, Supermodel of the World. No ano seguinte, a drag se tornaria porta-voz da marca de maquiagem MAC Cosmetics, encabeçando uma campanha mundial para a conscientização e arrecadação de fundos para pessoas vivendo com HIV/aids.

Em pouco tempo, ganhou seu próprio programa de televisão, The RuPaul Show, conquistando audiência cativa até 1998. Mas foi a série de TV RuPaul’s Drag Race, uma disputa de drag queens que estreou em 2009, que espalhou sua fama globalmente, tornando-se uma franquia com temporadas em países que vão do Brasil à Austrália, passando pela Tailândia.

A lista de papéis em filmes, aparições na TV, discos e produtos — que vão de perfumes a barras de chocolate com seu nome — é extensa e vertiginosa, o que lhe rendeu o título de “drag queen de maior sucesso do planeta”, da revista Fortune. A casa dos significados ocultos é seu quarto livro autobiográfico e faz uma espécie de balanço de sua vida e carreira. 

Esta é, ao mesmo tempo, mais uma autobiografia de um grande artista e um marco na reflexão sobre sujeitos dissidentes. Isso porque o gênero literário permite a esses sujeitos a elaboração de suas experiências em primeira pessoa, fato pouco aceito na história de nossa sociedade.

Não que sujeitos dissidentes tenham produzido poucas autobiografias; temos usado esta estratégia discursiva há muito tempo. Herculine Barbin talvez seja o exemplo canônico do século 19, cujas memórias foram publicadas pela primeira vez pelo filósofo francês Michel Foucault em 1978. No Brasil, talvez o exemplo de maior impacto seja Princesa, relato da travesti brasileira Fernanda Farias de Albuquerque, originalmente publicado em italiano, em 1994, e que ganhou versões em português, espanhol, alemão, grego e francês. Narrar a si mesmo tem sido uma estratégia para sujeitos dissidentes escaparem dos discursos patologizantes que se tornaram hegemônicos a nosso respeito. Como nos ensinaram as feministas, tomar para si a autoria de uma narrativa é um passo imprescindível para tornar inteligíveis nossos corpos, formas de vida e subjetividades.

Uma narrativa estimada pelo capitalismo: o ‘self-made man’ que se torna um milionário do ‘show business’

Parece interessante, no entanto, averiguar até que ponto RuPaul pode mesmo ser pensado como um sujeito dissidente. É claro que se trata de um corpo subalternizado. Estamos falando não apenas de uma experiência de pobreza racializada e marginalizada, mas também de um corpo que produz dissonância no sistema sexo-gênero. Todavia, essa acaba por ser mais uma narrativa estimada pelo sistema capitalista: o self-made man que vem do nada, vence adversidades e se torna um milionário empreendedor do show business.

O gênero narrativo também abre pouca margem para leituras mais críticas. As memórias costumam ser lidas na chave factual, ainda que os estudos literários costumem requerer do leitor a desconfiança com narradores em primeira pessoa. Neste ponto, RuPaul parece bastante consciente de seu feito: já no prefácio estabelece com o leitor um pacto ficcional no qual as sensações atreladas às memórias superam a fatualidade das recordações em si. No primeiro capítulo, intitulado “Adeus”, afirma que “a magia [de rememorar] é uma escolha deliberada, algo a ser criado intencionalmente”, e chega a pontuar que neste exercício “as regras são outras” e não aquelas da descrição fidedigna dos episódios vividos.

Embates

O leitor não encontrará no volume nenhuma menção aos embates com a comunidade trans que acompanha a série e tem, reiteradamente, apontado práticas transfóbicas adotadas pelo autor. Não há interesse do autor em apontar contradições na sua vida. Os episódios em que o público buscou responsabilizá-lo por arrendar as terras de sua propriedade no Wyoming para a extração de gás natural por meio de fracking — uma das mais danosas técnicas para o meio ambiente — ficaram de fora. Também não é mencionada outra recente controvérsia envolvendo a Allstora, a livraria digital do artista, apontada por vender títulos de extrema-direita e anti-LGBTQIA+ em um catálogo que incluía até mesmo Minha luta, de Adolf Hitler.

Embora almeje focar nos significados ocultos e quase místicos de sua jornada, é inegável, para aqueles que acompanham a trajetória do superastro, que há aqui uma ampla gama de significados ocultados. Na era da edição de narrativas palatáveis, o livro de memórias serve de bom exemplo de estratégia de marketing pessoal, de edificação (quase mítica) de um (quase) herói. É um tanto cômico ter de sublinhar que o horizonte de perspectiva do artista não é dissidente no sentido de combativo, mas higienizado, por tornar mainstream o underground.

Isso não altera o fato de que RuPaul é um dos artistas de maior impacto e relevância do século, ou dele ter realocado a arte drag no mapa mundial do entretenimento. Um tanto da cultura restrita a guetos até os anos 2000 passou, graças a sua influência, a movimentar uma série de engrenagens no sistema capitalista. Este é, inclusive, um ponto de dissertação acadêmica ao qual se dedicaram muitas pesquisas: como a arte drag passou de artesanal para um enlatado de cultura depois de RuPaul. É tarefa do leitor analisar, de forma menos ingênua, quais forças e disputas são pano de fundo para tais transformações.

As memórias são válidas para quem quiser acompanhar a narrativa de um mestre da conciliação mercadológica, mas também um prato cheio para quem deseja fazer uma leitura a contrapelo e avaliar o que está em jogo quando a noção de um mundo melhor está associada, nas palavras do autor, a “todo mundo no planeta ter treze pares de sapatos”.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Rita von Hunty

é a persona drag do professor, palestrante e pesquisador de cultura e gênero Guilherme Terreri.

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.