Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
As exigências do agora
Rui Tavares percorre história, filosofia e política para mapear momentos em que o pensamento crítico pode redefinir o mundo
29ago2024 • Atualizado em: 06set2024 | Edição #85“A memória”, escreveu Pascal, “é necessária a todas as operações da razão”. A frase, “desgarrada de qualquer outra obra filosófica”, só aparece no epílogo de Agora, agora e mais agora. Bem poderia ser sua epígrafe e, na prática, percorre este livro espantoso de Rui Tavares. Um livro que nasceu para ser livro, virou podcast e chegou às páginas com as marcas desta viagem pouco usual, tanto pelas circunstâncias de sua realização quanto pelos caminhos que percorre — do ano 900 a 1948 — em zigue-zagues entre história, filosofia e política.
O subtítulo Seis memórias do último milênio faz referência às “Seis propostas para o próximo milênio”, a série de conferências em que Italo Calvino defende os valores que via como fundamentais para a arte e a vida dali, dos anos 80, para frente. O historiador e homem público português, com mandatos parlamentares na Comunidade Europeia e em Lisboa, prefere calibrar a perspectiva de futuro pelo olhar crítico sobre o passado. Afinal, voltemos com ele a Pascal, a matéria da memória é plástica, maleável; com ela se faz imaginação e identidade, coragem e medo. “Essa dobra, esse ponto de viragem do nascimento da memória”, escreve ele, “é o que faz de nós pessoas”.
Agora, agora e mais agora, o título, é, em si, uma peripécia da memória. Mais exatamente da perda da memória individual e imediata. Sobrevivente de um AVC, Carolina Tavares, bisavó do autor, passou a se expressar por palavras soltas, fora de contexto. Por um tempo repetia o nome de um dos filhos: “Manel”. Depois, limitou-se a dizer “açorda”. Até que chegou a uma formulação mais complexa — “agora, agora e mais agora” —, que com variações de entonação poderia expressar dúvida, perplexidade, exasperação, urgência. À vezes, tudo isso ao mesmo tempo.
Filtrada por séculos de história e pela perspicácia do neto, a frase de dona Carolina resume os momentos decisivos em que pensadores, escritores e intelectuais, solapados por impasses de seu tempo, se dispõem a enfrentá-los, na crítica e na ação. Cada uma das “memórias” evoca um tema decisivo da história, um “agora” pretérito que se projeta sobre os “agoras” correntes: fanatismo, polarização, globalização, emancipação e direitos humanos.
Percurso
Tavares propõe pelo menos três níveis de leitura para seu percurso. Antes de mais nada, o que se conta — e se ouve com grande prazer no podcast narrado por ele — são histórias que “nos permitem fazer pensar no presente” a partir de Dante ou Spinoza, Al Farabi, o filósofo muçulmano, ou Bertha Lutz, a feminista brasileira que participou da redação da Carta das Nações Unidas. Em cada um desses episódios, estão, num nível mais avançado, os meandros específicos de cada “agora” e suas conexões complexas. Em conjunto, e de forma mais conceitual, formariam o que ele chama de “história alternativa da modernidade”.
Sem querer complicar, eu acrescentaria um quarto nível, o do uso virtuoso do ensaio. Assim como a memória, o ensaio é plástico e sua forma é sempre tão importante quanto seu tema — ou a aproximação inusitada de temas. Por isso não há aqui partes ou capítulos, mas “memórias”; e, nas subdivisões de cada uma delas, no lugar de “itens” ou “pontos” há “conversas”. Ou seja, não somos meros leitores passivos ou alunos percorrendo linearmente a estrutura de um tratado ou a lógica de argumentação de uma tese, mas interlocutores em potencial; em cada etapa não está uma lição, mas uma provocação a pensar, o que desperta inevitavelmente a tentação do impossível, de mergulhar nas profusas referências bibliográficas de cada um daqueles momentos.
Cada uma das ‘memórias’ evoca um tema decisivo da história: fanatismo, polarização, globalização
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Para essa angústia, o ensaísmo também tem seus antídotos: uma das palavras-chave de Agora, agora e mais agora é “desenciclopedizar” autores e ideias, desembrulhá-los da pompa e da erudição, a paixão inútil, para que deles façamos o uso que bem entendermos. O exemplo de desassombro vem do próprio Tavares, dedicado colecionador de “lados B”: o que mais o interessa é o quase anônimo que vive à sombra do gigante, a banalidade inescapável aos momentos decisivos, a paisagem pouco avistada à sombra dos monumentos.
Espionagem e traição
“Do ódio”, a quinta “memória”, é minha favorita pela forma de destrinchar uma passagem crucial da história da ideias, o nascimento, no século 19, deste personagem que hoje chamamos “intelectual público”. Trata-se do caso Dreyfus, o affaire que mobilizou a França com a condenação, por crime de espionagem e traição à pátria, do capitão Alfred Dreyfus. Nos cinco anos em que amargou uma prisão motivada por clamoroso caso de antissemitismo, o militar de origem judaica esteve no centro de um debate intenso e incontornável a seus contemporâneos. O herói consagrado da contenda é Émile Zola, que numa veemente carta aberta ao presidente da república, o artigo “Eu acuso”, empenhava seu prestígio pessoal na defesa de valores inegociáveis, atividade de cálculo e risco, de alta exigência ética, que configura ou deveria configurar um “intelectual”.
O autor de Germinal, é claro, está presente, mas os protagonistas de Tavares vem de outras paragens da história — algumas delas sombrias. Léon Daudet era reacionário de primeira e escritor de segunda — a imbatível fórmula do ressentimento, como ensinam nossos agoras. Filho de Alphonse Daudet, este um autor reconhecido e nada reacionário, Léon deixou um livro esquecível, O estúpido século XIX, que vale ser lembrado por retratar o que ele julgava os flagelos de seu tempo: a ciência, o progresso e a democracia. Tavares o acha “irresistivelmente parecido” com escritores, influencers e outros palpiteiros que “apresentando-se como supostos combatentes contra o ‘politicamente correto’, contra a ‘sinalização da virtude’, contra a ‘justiça social’ e (outro termo que dará dores de cabeça a historiadores futuros) o ‘wokismo’, no fundo mercadejam ódios e polarização”.
Pois o affaire é, aos olhos de Tavares, o tacho em que se ferveu “o caldo cultural dos fascismos”, caldeirão que também teve seus heróis discretos. Um deles, Bernard Lazare, foi anarquista e sionista e, em 1890, advertiu o próprio Theodor Herzl, figura central do sionismo, sobre os riscos de que a criação de um Estado judaico redundasse em feroz colonialismo. Pois foi ele que, num livrinho, criou a respeito de Dreyfus a expressão J’accuse, que Tavares tão bem define como um “encantamento acusatório”.
O que mais o interessa a Tavares é a banalidade inescapável aos momentos decisivos
Lazare lutou pela liberdade do militar tanto quanto outro personagem essencial, Jacob de Castro, judeu português radicado na França, operador da Bolsa de Amsterdã, que achou suspeita a principal prova contra Dreyfus — um bilhete manuscrito em que passava adiante segredos militares. Graças a Castro, que identificou na letra do espião um cliente seu, provou-se que o crime de desonra à pátria foi cometido por outro militar, Charles Marie Ferdinand Walsin Esterhazy.
“Vitória, vitória, acabou-se a história”?, brinca Tavares. A resposta é inequívoca e negativa, não favorece “aquele arco narrativo trágico, mas em última análise positivo, em que nós gostamos de acreditar”. Injustiças inomináveis foram cometidas, vidas sacrificadas. E, mesmo com Dreyfus liberto, a polêmica que atravessaria até os sete volumes de Em busca do tempo perdido tinha deixado marcas profundas na difusão sistemática de antissemitismo, com as consequências nefastas que todos bem conhecemos. “Só se vê túnel no fim da luz”, escreve Tavares sobre o emaranhado de tocas e buracos em que circularia, para sempre, a extrema direita e suas estratégias insidiosas — privilegiando, não por um acaso, todo tipo de manipulação e falseamento da memória.
Agora, agora e mais agora, o livro, guarda ainda o que, pelo menos para mim, é um valor precioso: a capacidade de traduzir ideias e raciocínios complexos na forma mais direta possível. A facilidade com que se lê é, como se sabe, diretamente proporcional à dificuldade de se escrever com clareza e simplicidade, traços inequívocos de probidade intelectual. Rui Tavares diz ter um problema com Bernard Lazare, de tão interessante que é o personagem. Meu problema é com Rui Tavares, que a partir de seu livro torna impossível a leitura pacífica de um debate intelectual como o do Brasil de 2024, coalhado de análises constrangedoras sobre a “polarização”, ostensiva propaganda neoliberal, analistas amansados pelo establishment, condescendência com o fanatismo neopentecostal e a extrema direita e torções da memória histórica. O momento de repensá-lo com mais responsabilidade é o nosso agora. Agora? Agora! E mais agora.
Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros e lançou, entre outros títulos, Diante de fascismo: crônicas de um país à beira do abismo (2022), de Paulo Roberto Pires
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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