Coluna

Pedro Cantisano

A vacina, a casa e a rua

HQ tenta explicar por que, há mais de um século, brasileiros se revoltaram contra um método que salvaria suas vidas

01jun2021 | Edição #46

Em novembro de 1904, milhares de pessoas tomaram as ruas do Rio de Janeiro para protestar contra a vacinação antivariólica obrigatória. Trabalhadores de vários setores, comerciantes e estudantes se reuniram em praças públicas, gritaram palavras de ordem e, quando foram atacados pela polícia, responderam com pedras e barricadas. Na história em quadrinhos Revolta da Vacina, André Diniz, autor de mais de trinta livros, conta a saga de Zelito, um aspirante a chargista que migra de Fortaleza para o Rio de Janeiro e acaba se juntando aos revoltosos. A partir de uma narrativa dinâmica e personagens cativantes, Diniz apresenta respostas possíveis para uma pergunta que intriga historiadores há décadas: por que as pessoas se revoltaram contra um método que salvava vidas? 

O povo não deixou seus motivos por escrito. Foi agente da história, sem, no entanto, produzir o arquivo histórico. Com vieses preconceituosos, típicos do pós-Abolição, os jornais e as autoridades registraram uma massa amorfa, violenta e manipulada. Descontentes com o governo oligárquico do paulista Rodrigues Alves, políticos e militares positivistas haviam organizado uma campanha de desestabilização. Incitaram a massa contra as medidas sanitárias e tentaram, sem sucesso, um golpe de Estado.

Mas as fontes históricas mostram que havia motivos de sobra para resistir àquelas medidas. A campanha golpista só funcionou porque tinha lastro na realidade. Nos quadrinhos, o cortiço do espanhol Manolo, onde Zelito mora, é invadido por uma brigada de mata-mosquitos. Para combater a epidemia de febre amarela, Oswaldo Cruz mandou remover moradores e fumigar enxofre dentro dos cômodos, deixando um rastro tóxico e malcheiroso. Assim como os expurgos, a vacina contra a varíola era efetiva. Porém, quando aplicada, a injeção causava dor e marcava os braços, além de contaminar algumas pessoas com sífilis porque as seringas não eram descartáveis. Às dores se somava a desconfiança. As curas mágicas e religiosas, tanto europeias quanto africanas, eram populares entre ricos e pobres, brancos e negros.

Nos quadrinhos, Zelito não professa a fé na cura. Sua crítica ao plano de saneamento foca no método autoritário e paternalista. “Querer o melhor à força, com mãos de ferro. Não era o que meu pai fazia comigo?” — reflete o protagonista. 

Luta por direitos

Em 1904, positivistas e liberais difundiram uma linguagem de direitos contra esse autoritarismo sanitário. Falar em direitos não era estranho ao povo carioca. Durante o século 19, escravos haviam ido à Justiça para lutar por liberdade. Na República, operários acionaram o Judiciário em busca de melhores condições de vida e trabalho. Nas ruas, as organizações operárias protestaram, articulando demandas que, mais tarde, seriam cristalizadas em direitos trabalhistas. A linguagem dos direitos circulava nos jornais, que eram lidos em voz alta e, assim, interpretados mesmo por analfabetos. Entre esses direitos estava a “inviolabilidade do lar”, garantida pela Constituição de 1891.

Ao entrar nos lares, o Estado, representado pelos vacinadores, ameaçava o reino do patriarca

Para os sanitaristas, os lares da capital eram laboratórios. Neles, foi testada a teoria do contágio pelo mosquito, elaborada, poucos anos antes, por um médico cubano. A visita residencial também era uma oportunidade para aplicar a vacina, usada na cidade, em menor escala, havia quase um século. Porém, para juristas liberais, como Rui Barbosa, a casa era um “castelo” de proteção ao indivíduo. A inviolabilidade do lar era um direito individual da esfera privada, separada e protegida contra intervenções de outras pessoas e do Estado.

Apesar de ter ganhado sentidos modernos na ciência e no direito, a casa tinha raízes profundas no Brasil colonial e imperial. Dentro dela, valia a vontade do pai, marido e senhor sobre filhos, esposas e trabalhadores domésticos. Mesmo com o advento da República, a casa continuou sendo espaço privilegiado de defesa da honra familiar. Ao entrar nos lares, o Estado, representado pelos mata-mosquitos e vacinadores, ameaçava o reino do patriarca. O direito individual, por outro lado, protegia a autoridade patriarcal contra essa expansão da autoridade estatal.

Para os trabalhadores da capital, além do patriarcado e da honra, a inviolabilidade do lar protegia outros valores. A casa-grande e a fazenda haviam sido espaços de poder senhorial. Mas pessoas escravizadas também constituíram famílias e construíram seus próprios lares, onde exerciam algum controle sobre suas vidas. No Rio de Janeiro, onde chegaram a ser metade da população, escravos brasileiros e africanos buscavam autonomia, morando em cortiços. Tanto no campo quanto na cidade, a casa era um espaço de liberdade, onde negros e negras se escondiam e planejavam um futuro melhor. 

Após a Abolição, libertos do campo se juntaram aos da cidade e aos imigrantes europeus recém-chegados. Nos cortiços, continuaram lutando por liberdade. Em uma cena que não escapa ao olhar artístico de Zelito, negras, italianas e espanholas lavavam roupas em pátios compartilhados para sustentar suas famílias. As medidas sanitárias, policiais e urbanísticas da virada do século colocaram esses espaços em perigo. Afora as invasões dos agentes sanitários, os pobres sofriam com as batidas policiais e as demolições ordenadas para reformar e embelezar a cidade. Além de precários — escassos, caros, apertados e insalubres —, os lares cariocas, como o quarto de Zelito no cortiço do Manolo, eram vulneráveis à violência estatal.

Por que as pessoas se revoltaram? Para lutar por direitos contra um Estado elitista que perpetuava a precariedade e a vulnerabilidade em suas vidas. Entre as respostas possíveis, essa é a mais necessária agora.

Quem escreveu esse texto

Pedro Cantisano

é professor de história da América Latina na Universidade de Nebraska, em Omaha.

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.