Política,

Ser livre para criar o novo

Livros sobre política partem das ideias de Hannah Arendt, Simone Veil e Marielle Macé para discutir o que é liberdade

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

Em 11 de fevereiro deste ano, novas pichações antissemitas foram encontradas em Paris, confirmando os dados inquietantes de que houve um aumento de 74% de ataques contra os judeus na França durante o ano passado, segundo o Ministério do Interior francês. Um desses ataques agredia diretamente Simone Veil, figura emblemática da 5ª República francesa, judia sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen, ex-ministra da Saúde no governo de Valéry Giscard d’Estaing e redatora da lei que legalizou o aborto no país: suásticas desenhadas sobre retratos feitos pelo artista urbano C215, em duas caixas de correio de uma prefeitura parisiense, que comemoravam a entrada do corpo de Veil em 2018 no Panteão, monumento que abriga os túmulos dos heróis — e heroínas — da França.

Foi em 26 de novembro de 1974 que Simone Veil se posicionou diante da Assembleia Nacional francesa para proferir seu discurso a favor da legalização do aborto. Dentre os 490 parlamentares, apenas nove eram mulheres, e até então a França seguia marcada por leis restritivas em relação a políticas reprodutivas e à autonomia sexual feminina. As estatísticas do período indicavam que, anualmente, 300 mil mulheres realizavam abortos clandestinos; a legislação que criminalizava a interrupção da gravidez permanecia a mesma desde os anos 1920, a qual punia a mulher que abortara com seis meses a dois anos de prisão e multava o responsável pelo procedimento.

A ordem social e o governo francês determinavam que o aborto deveria ser considerado uma ameaça à estabilidade e à segurança do Estado. Havia, ainda, uma gritante desigualdade de acesso à intervenção que escancarava disparidades socioeconômicas: mulheres mais pobres, cujas opções geralmente se resumiam ao aborto, só tinham recursos para realizá-lo em péssimas condições — um problema recorrente também no Brasil atual, onde mulheres negras ou indígenas, de baixa escolaridade e economicamente desfavorecidas são as que mais recorrem a abortos clandestinos em situações de risco.

Arendt antecipava o que Veil sabia desde o começo da sua luta: ‘Não há nada mais difícil de realizar […] do que iniciar uma nova ordem das coisas’

O memorável discurso de Simone Veil foi publicado no Brasil como um dos três volumes da coleção Por Que Política?, da editora Bazar do Tempo, juntamente com o texto inédito de uma palestra da filósofa Hannah Arendt, Liberdade para ser livre, e o livro Siderar, considerar: migrantes, formas de vida, da especialista em literatura Marielle Macé. É a partir das ideias dessas três mulheres que a coleção pretende discutir as diversas facetas do que significam a política e o exercício da cidadania.

Veil mostrou que as responsáveis pela ameaça à autoridade do governo eram justamente as leis que criminalizavam o aborto e marginalizavam as mulheres que abortavam. A cada vez que uma francesa desrespeitava a jurisdição para recorrer ao aborto — segundo a ministra, sempre como opção última, nunca como conveniência — e o governo fechava os olhos, a situação ficava longe de ser solucionada. O projeto de lei liderado por Veil tentava lidar com um problema de saúde urgente que claramente não envolvia só mulheres, mas toda a sociedade.

 

A ex-ministra da França Simone Veil [Keystone/Getty Images]

Os três pilares legais da proposta de Veil — uma lei aplicável, dissuasiva e segura, nas palavras da ministra — foram essenciais para a criação de um momento novo na França. Algo inteiramente original à nação, posto em movimento por uma mulher que precisou enfrentar duras forças opositoras. Ameaçada, mas nunca acuada, a ministra esteve à frente de um processo que ela mesma via como uma transgressão de tabus. Nicolau Maquiavel, citado pela filósofa política Hannah Arendt ao final de Liberdade para ser livre, antecipava o que Veil sabia desde o começo de sua luta: “Não há nada mais difícil de realizar […] do que iniciar uma nova ordem de coisas”. Para isso, é preciso coragem — não só para adentrar a cena pública como para apresentar novas possibilidades e instaurar uma nova ordem.

Pelo direito à liberdade

O texto da palestra de Hannah Arendt data de 1966-67 e corrobora a teoria da filósofa de que liberdade dispensa justificativas. O próprio título já diz que precisamos de liberdade para ser livres, uma vez que ela se encerra em si mesma. Não há fim último para a liberdade — ela implica, porém, novos começos. Só o indivíduo livre pode construir inícios e engendrar mudanças, sempre através da ação, o lugar por excelência da liberdade. Arendt afirma que o homem é ele próprio um começo e que agir, além de nos tornar seres políticos, traz em si a fundação de algo inédito no mundo.

Sem liberdade — e sem ação — não se fala em revolução. Ao retomar os primeiros usos da última palavra, Arendt assinala como a liberdade está enraizada em toda dimensão da ação e do discurso humanos. Até as revoluções Americana e Francesa do século 18, o termo significava restauração, e não a instauração de ordens completamente novas. Ainda assim, planejava-se restaurar a própria liberdade; e, aos poucos, “revolução” foi gradualmente imbuída de seu sentido mais conhecido: o de possibilitar ao homem livre o exercício de seu potencial de trazer um novo começo ao mundo.

Revoluções provocam efeitos fundamentais para pensar a liberdade. Ao abrir uma nova possibilidade de futuro, a revolução historicamente traz à tona reivindicações de participação no espaço público. Mais do que direitos civis, mais do que libertação da tirania, exige-se liberdade: direitos políticos de participação a ser desfrutados publicamente. Arendt situa a libertação — tanto da necessidade quanto do medo e da opressão — como condição crucial à liberdade. Não se pode pensar em atuação no âmbito público quando se sente fome, se vive na miséria ou em constante perigo. Libertar costuma vir antes de ser livre, mas ser livre não surge invariavelmente como consequência direta da revolução que funda um novo governo. A “liberdade para ser livre” sempre foi um privilégio de poucos: nem quando a Revolução Francesa dizia que “todos os homens são criados iguais”, pôde-se alegar que ela resultou em igualdade plena; tampouco a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, acerta ao proclamar que “todos os homens nascem livres e iguais”.

Hannah Arendt esclarece que liberdade e igualdade não são condições inatas ao homem, mas postas no mundo por ele. O homem não nasce livre e igual; torna-se, em meio à coletividade de uma comunidade política, onde se manifesta a pluralidade humana e onde se pode construir e exercer conjuntamente esses princípios. Para verificar a tese de Arendt, basta se voltar para a situação de refugiados, migrantes e todos aqueles que vivem cotidianos de violência e indigência, desligados de suas comunidades políticas, às margens da sociedade e de qualquer responsabilidade por parte dos governos.

A especialista em literatura Marielle Macé [Gilles Moutot/Divulgação]

É o que faz Marielle Macé em Siderar, considerar. Dados da Agência de Refugiados da onu de 2017 mostram que há 68,5 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar suas cidades ou países; destas, 25 milhões são consideradas refugiadas. Dez milhões são apátridas. Macé desenvolve nesse quadro a comparação entre siderar e considerar, pensando a partir da França, um dos países que mais se dizem afetados pela crise mundial de imigrantes. Ela propõe o ato de considerar como uma forma de enxergar as vidas vividas nas bordas, especialmente as dos migrantes e refugiados em campos precários, em contraposição ao olhar siderado, atordoado e estarrecido de quem as observa do centro. São existências marcadas por violência, miséria e incerteza. Mas ainda assim são vidas, e vidas que devem ser vividas — independentemente do quão “invivíveis” pareçam ser.

O fio que conecta as obras dessas três mulheres é a liberdade, condição primordial para o exercício da cidadania e a instauração do novo 

Quem está às margens também detém o poder da iniciativa. Macé entende a necessidade de reconhecer o valor e as possibilidades dessas vidas como fundamental para o processo de integração de migrantes e refugiados às sociedades que deveriam acolhê-los. Sua ênfase em um reconhecimento não só pessoal como jurídico e político encontra ecos no pensamento arendtiano, sobretudo quando a filósofa se debruça sobre os limites dos direitos humanos e sua teoria do “direito a ter direitos”. 

Em um mundo pós-totalitarismos, onde retiraram de milhares de pessoas o direito de pertencer a comunidades políticas e as transformaram em apátridas — indivíduos “supérfluos”, sem lugar e sem direitos —, a proposição de Arendt de que o acesso aos direitos fundamentais não deveria ser subordinado à cidadania de um indivíduo parece não valer até hoje, e por motivos que ela antecipava. A garantia ao “direito a ter direitos” depende de um acordo mundial, que transcenda fronteiras e jurisdições nacionais e seja capaz de salvaguardar os princípios de liberdade e igualdade independentemente da nacionalidade. Mas como fazê-lo, se países como o Brasil e os Estados Unidos se recusam a adotar acordos não vinculantes que visam à regulação de fluxos migratórios para que estes sejam realizados de maneira segura, como propôs a onu em seu Pacto Global de Migração, assinado por 164 nações em dezembro de 2018? E, se não há libertação da necessidade e do medo que invariavelmente acompanham essas vidas, como pode haver liberdade para ser livre e construir novos começos?

A pergunta “por que política?”, sabiamente posta pela coleção, não tem resposta única. As reflexões elaboradas por essas três mulheres — Veil, Arendt e Macé — representam dimensões distintas, porém complementares, do pensamento político. O fio que as conecta é a liberdade, condição primordial para o exercício da cidadania, para a instauração do novo e para a criação de algo inédito na luta para manter-se livre. Seja através de direitos fundamentais de autonomia reprodutiva e de participação política, seja por meio do reconhecimento jurídico da igualdade na esfera pública, não há ação política sem liberdade. E é sempre ela que buscamos.

Quem escreveu esse texto

Virginia Siqueira Starling

Prepara uma biografia de Zuzu Angel para a Todavia.

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.