Política,

A guerra não vai acabar

Em livro de ensaios, Luiz Eduardo Soares defende reforma da polícia e legalização das drogas

01ago2019

Um helicóptero está no solo, com o motor ligado. Postado à frente dele há um homem calvo, em torno dos cinquenta anos de idade, de óculos. O homem é corpulento, alto, veste uma camisa polo marrom, calças pretas e tênis. Há outros homens com ele. O barulho do motor faz a cena ser tumultuada, mas aos poucos se compreende o que acontece. O homem é o governador eleito do Rio de Janeiro. Ao seu lado, o prefeito de Angra dos Reis; mais atrás, “o pessoal da CORE” (Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil carioca), quatro deles fardados.

Sisudo, comandando militarmente seu pessoal, o governador afirma ao cinegrafista: “Vamos começar a Operação. Hoje nós vamos começar a Operação. Acabou a bagunça! Vamos colocar ordem na casa! Vambora!”. Ele vira as costas para a câmera e caminha pisando forte, rumo ao helicóptero. Seu caminhar se parece com o de um militar em marcha, ou de uma criança que imita um soldado marchando — as técnicas do corpo se aprendem, já nos ensinou Marcel Mauss. Os homens o seguem à aeronave. 

Já dentro do helicóptero, e no ar, o governador aparece em novo vídeo, numa espécie de selfie, usando fones de ouvido verde-oliva. Ele costuma postar as ações de seu governo no Twitter — Guy Debord, em 1967, já havia nos prevenido que o caminho da política seria esse mesmo. A legenda do tuíte ajuda os seguidores a entenderem o que acontece: “Sobrevoando uma das áreas mais perigosas de Angra dos Reis”. 

A expectativa de que uma guerra aos traficantes traria paz ao Rio de Janeiro tem sido frustrada há pelo menos quarenta anos

É uma região de favelas. Dois delegados, o prefeito e o secretário estadual de Polícia Civil o acompanham, além de policiais fardados, armados com fuzis. O vídeo se conclui com a frase: “Vamos botar fim na bandidagem aqui em Angra dos Reis. Acabou!” Posteriormente, seriam também divulgadas imagens dos policiais atirando de fuzil, de dentro do helicóptero. Ninguém se feriu.

Nos seis primeiros meses de 2019, quando esses vídeos foram ao ar, outras 568 operações ostensivas, 34 com uso de helicóptero, resultaram em 222 pessoas mortas e mais de mil feridas pelas forças de segurança, segundo dados das Redes de Observatórios da Segurança no Rio de Janeiro. No estado, 38% dos homicídios foram cometidos por policiais, 46% a mais se comparado ao mesmo período do ano anterior. O governador parece esperar uma vitória das forças da ordem sobre os bandidos, e que a guerra termine depois. Ele aparenta querer entregar paz aos cariocas “botando fim na bandidagem”. 

A paz que não veio

O livro Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos, de Luiz Eduardo Soares, foi escrito para dizer que isso não vai acontecer, porque já não aconteceu. A expectativa de que uma guerra aos traficantes traria paz ao Rio tem sido frustrada pelo menos há quarenta anos, quando o mercado transnacional de cocaína se tornou uma máquina de fazer dinheiro e essas políticas alimentaram um sistema que produz violência armada. O mesmo mercado, acoplado à mesma política, se espalhou de lá para todos os estados brasileiros. Hoje, o país é muito mais inseguro do que era no final dos anos 1970, quando o homem corpulento e calvo, hoje governador, era ainda uma criança. 

Ainda mais novo que ele, eu estava, alguns anos mais tarde, fascinado pela Democracia Corinthiana e pela seleção verde-amarela de Zico, Junior, Serginho, Sócrates e Falcão. Futebol-arte, nada de Dunga. A experiência democrática era inspiradora. O governo militar terminaria anos depois. O Carnaval mendigo de Joãosinho Trinta fazia crer que as favelas cabiam na nação. Luiz Eduardo Soares tem quatro décadas de trabalho no tema da segurança, desde esse passado longínquo. Conheceu diferentes espaços políticos, artísticos e acadêmicos e ocupou os postos mais relevantes da gestão da segurança pública no Rio de Janeiro e no país. São muitos os seus livros publicados, feitos em parceria com quem conhece de perto a guerra cotidiana do Rio: diferentes policiais, moradores de favela, artistas, cronistas da vida no crime, taxistas. 

Desmilitarizar é, no entanto, um livro solo. É um grito de quem vê um modelo de segurança democrática se despedaçar em tuítes militarizados, tão bem votados. A democracia, pressuposto básico para todas as premissas de política pública que Luiz Eduardo Soares defende, não aceita uma fronteira ao direito. Na democracia, a morte de qualquer cidadão é velada por toda a comunidade. Desmilitarizar é um apelo à racionalidade democrática. O livro angustia o leitor que, concordando com os argumentos mas já sob o barulho de helicópteros e fuzis, não consegue escutar nenhuma razão democrática a compor projetos de segurança nacional. Que vê pelo celular o governador eleito em sua aventura pelos ares e a notícia de 222 corpos no chão. O livro se erige, por isso, entre o projeto democrático que se esvaiu, no passado, e o futuro sangrento que nos espera, porque a guerra não vai acabar. 

Militarização do cotidiano

O livro tem catorze ensaios e quatro partes, desigualmente distribuídas nos seguintes temas: polícia, drogas, raízes da violência e direitos humanos, cultura e poder. A primeira parte tem oito ensaios e ocupa mais da metade do volume, demonstrando a centralidade da desmilitarização e da reforma profunda do universo policial militar que o autor defende há anos. Não se trata de apenas discutir a polícia e suas clivagens internas, mas de situar a militarização no centro da dificuldade de transformação das políticas de segurança. O helicóptero, afinal, era da Polícia Civil, o governador é um juiz de direito.

O autor sabe que desmilitarizar as polícias e a Justiça é desafio ainda maior do que reformar as políticas de segurança, pois o cotidiano se militarizou

A obra articula uma crítica desde ao quadro normativo que dá duas cabeças às polícias militares (governadores e Exército) até aos entraves do sistema de Justiça Criminal, passando pela insegurança profissional e física dos policiais da base da corporação, pelos bloqueios burocráticos à modificação das formas de pensar e pela lógica institucional que alimenta a corrupção de muitos. Não falta ainda uma análise pormenorizada da política nacional de segurança pública, bem como uma interpretação das contradições das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), da ascensão à queda desse projeto. 

Nas três partes seguintes, Soares combate um a um os argumentos contrários à legalização das drogas, historicamente estabelecidos na luta antiproibicionista. Recobra também parte do debate jornalístico sobre o mercado global de cocaína, demonstrando sua lucratividade astronômica. Procura pelas raízes históricas de nosso fracasso nos temas da segurança pública e chega até eventos contemporâneos, como o “pacote anticrime” de Sérgio Moro e a morte de Marielle Franco. O último ensaio do livro reflete sobre direitos humanos e as ciências humanas, tão centrais para a segurança no passado, tão ausentes hoje. O autor sabe que desmilitarizar as polícias e a Justiça é desafio ainda maior do que reformar as políticas de segurança. Porque o cotidiano se militarizou. 

Uma geração de pesquisadores e administradores de esquerda, com Luiz Eduardo Soares à frente, apostou na democracia como um paradigma para as políticas de segurança. A polícia protegeria o conjunto dos cidadãos; as Forças Armadas protegeriam a soberania dessa comunidade política. Não haveria, portanto, uma polícia militar, não havendo guerra contra seus próprios cidadãos. Segurança pública seria um direito — de todos. Nem todos pensaram assim, dos dois lados da guerra. O tempo passou, e trilhamos o caminho diametralmente oposto. Governadores, corpulentos ou não, junto com deputados, senadores, prefeitos, vereadores, ministros e mesmo o presidente da República, hoje eleitos, apostaram na guerra. Há quarenta anos, não há seis meses. Muitos outros também apostaram no dinheiro de mercados ilegais, e foram para a guerra por ele.

Os tiroteios em Angra dos Reis recomeçaram imediatamente após a retirada do helicóptero da CORE, segundo a reportagem que cobria a operação naquele dia. Moradores evangélicos, um grupo que votou majoritariamente nessa política guerreira por todo o país, disseram à reportagem da Globo que foi “um livramento” ninguém ter morrido pelos disparos do fuzil do policial que acompanhava o governador. Nos fins de semana, sempre há gente orando ali, na barraca que foi atingida pelos tiros, de cima para baixo. Teria sido Deus, e não o direito à segurança, quem os teria salvado.

Quem escreveu esse texto

Gabriel Feltran

Professor de sociologia da UFSCar, escreveu Irmãos: uma história do PCC (Companhia das Letras).