Literatura,

Exibicionismo a contragosto

Coletânea de entrevistas e perfis de David Foster Wallace traz à tona novos mistérios sobre o escritor considerado a voz de uma geração

01dez2021

David Foster Wallace afirmou em mais de uma ocasião que seu gigantesco romance Graça infinita, que o firmou como um dos principais ícones literários da sua geração, foi uma tentativa de “fazer um livro que fosse triste”. Com seu amigo e também escritor Jonathan Franzen, conforme relata artigo de David Lipsky, ele chegou à conclusão de que a escrita serve essencialmente para “combater a solidão”. Em sua ficção, os temas da tristeza e da solidão foram esmiuçados com um estilo ultraeloquente (que lhe rendia acusações de exibicionismo) no qual a autoconsciência dilacerante dos personagens assumia, muitas vezes, a forma de exigentes exercícios de metaficção e de pirotecnia gramatical.

Para os leitores de Wallace, a questão de quem era o sujeito por trás dos livros (ou do mito) sempre foi do maior interesse. Havia a versão dos perfis e matérias na imprensa: o jovem brilhante e excêntrico, mascador de tabaco e ex-tenista amador, que estava destinado a ser filósofo ou matemático, mas descobriu na ficção a sua verdadeira vocação. Havia as versões do próprio Wallace: um sujeito desajeitado e em eterno debate com a própria vaidade, vivendo sob a pressão de um intelecto gigante que podia se voltar contra si mesmo. Depois da sua morte, em 2008, questões até então preservadas da sua vida pessoal, como relacionamentos tóxicos e a depressão de que sofria desde a juventude, somaram-se ao painel.

Um antídoto contra a solidão, coletânea de perfis e entrevistas publicada em 2012 nos Estados Unidos, chega ao Brasil num momento oportuno em que a discussão sobre o legado de Wallace, amplamente considerado a voz de uma geração, pode se beneficiar de novos ângulos. Hoje sua escrita é escrutinada por novas gerações de leitores e escritores atentos a outras vozes e pontos de vista. A distância temporal também nos ajuda a enxergar sua trajetória, iluminar nuances e localizar novos mistérios. Os textos reunidos foram publicados originalmente entre 1987 e 2008 e vão de entrevistas de início de carreira em pequenos jornais locais até um longo perfil póstumo na revista Rolling Stone.

Para leitores pouco familiarizados com Wallace e sua obra, o livro deverá proporcionar o espanto do primeiro contato com os raciocínios ao mesmo tempo rocambolescos e cristalinos do autor, uma mente que comenta obsessivamente a si mesma enquanto desfia argumentos lúcidos, onivoridade intelectual, humor nerd e tiradas mordazes. Para os fãs que já leram tudo, o reencontro com alguns textos poderá trazer a sensação de retirar relíquias íntimas de caixas empoeiradas que estavam no sótão havia alguns anos. Está tudo ainda ali. Pode haver um sentimento de conforto misturado ao luto quando se releem declarações como esta, que Wallace deu a Larry McCaffery na muito citada entrevista à Review of Contemporary Fiction: “Me parece que a grande distinção entre a boa arte e a arte mais ou menos está em algum ponto do coração do objetivo da arte, os objetivos da consciência que subjaz ao texto. Tem algo a ver com amor”.

Indisposição

A indisposição de Wallace com entrevistas é lendária e consiste ela mesma num tema predominante nas conversas publicadas que teve ao longo da vida. Alçado a celebridade muito cedo, na ocasião da publicação de seu primeiro romance, The Broom of the System (A vassoura do sistema), Wallace se debateu a vida inteira com seu desejo ególatra de reconhecimento, com o medo de não conseguir dar o seu melhor devido à atenção recebida, com a ironia de se destacar em uma indústria que criticava justamente por colocar a ironia vazia a serviço do consumo e da alienação. “É muito difícil separar o que você quer que a sua literatura faça dos seus próprios desejos de como você vai ser tratado por causa do que escreve”, disse aos repórteres da revista Whiskey Island em 1993. Seu modo de lidar com isso oscila da vulnerabilidade cativante ao humor prepotente, como quando Matthew Gilbert lhe pergunta, para o Boston Globe, em 1997, no que ele estava trabalhando. “Agora mesmo? Estou tentando dar um jeito de ser sincero sem me expor ao ridículo.”

Como é de esperar, a leitura oferece uma abundância de detalhes e curiosidades sobre a vida e o processo criativo de Wallace. Sua troca de figurinhas com o escritor Richard Powers, por exemplo, é saborosa. Alguns de seus leitores podem se espantar ao saber que Wallace alega nunca ter usado a internet. Quando um entrevistador comenta, em 1996, que o estilo de Graça infinita pode lembrar “o bombardeio de informação ou o ato de navegar na internet”, Wallace resmunga: “Isto aqui é meio que a sensação de estar vivo. Você não precisa estar na internet para a vida parecer algo assim”. Em 1998, ele volta a negar que conheça a rede. “Há um cara no meu departamento que ensina sobre hipertexto, mas realmente não sei nada a respeito”, diz.

Seu gosto em “fazer parte de algo maior” aparece em seu interesse pelos Alcóolicos Anônimos e em duas tentativas frustradas de entrar para a Igreja Católica. Conversando sobre seu livro de não ficção Everything and More (Tudo e mais um pouco), centrado na figura do matemático Georg Cantor, Wallace revela ser um “platonista”: “Acho que Deus tem línguas específicas, e uma delas é a música e outra é a matemática”.

Wallace se debateu a vida inteira com seu desejo ególatra de reconhecimento

No quesito “quais as intenções do autor?”, Wallace nos oferece de tudo um pouco. Lendo as entrevistas na ordem, vemos como no começo da carreira era capaz de fornecer justificativas incrivelmente complicadas, como esta para seu romance de estreia (vale citar na íntegra):

Pense em The Broom of the System como o sensível relato de um sensível rapaz wasp que acabou de passar por uma crise de meia-idade que o levou da frieza cerebral da matemática analítica a uma fria abordagem cerebral da ficção e da teoria literária Austin-Wittgenstein-Derrideana, o que também alterou seu pavor existencial de ser apenas uma calculadora a 37o para um medo de ser apenas um construto linguístico.

A partir de Graça infinita, suas respostas ficam mais evasivas. Sobre Breves entrevistas com homens hediondos, coletânea de contos que, de acordo com o autor, levou amigos a dizer que ele “pinta a misoginia bem demais”, Wallace afirma: “Esse livro não tem de fato uma agenda, a não ser por umas coisas técnicas e formais que não sei se quero discutir e que não acho que as pessoas realmente queiram saber”. Em uma entrevista concedida em 2004, ao falar sobre o conto “The Soul Is Not a Smithy” (A alma não é um ferreiro), incluído na coletânea Oblivion (Esquecimento), ele recorre a expressões como “Kafka às avessas” e “é um conto muito estranho”.

Seu cansaço com entrevistas, ou talvez a preferência gradual por deixar a ficção falar por si mesma, vai se insinuando ao longo do tempo. O grande sofrimento por trás da grande empatia de sua produção nos últimos anos, que aparece em textos como o célebre discurso de paraninfo “Isto é água” e no romance póstumo The Pale King (O rei pálido), acena a todo momento nas respostas, na sua postura de entrevistado.

É reveladora outra passagem da entrevista à Review of Contemporary Fiction, na qual o assunto é seu formidável conto “Para sempre em cima”, sobre um garoto que trava de medo na hora de pular do trampolim em uma piscina pública: “Foi o meu fracasso na tentativa de esconder o que eu queria esconder que fez o conto funcionar. Jesus, mas que atividade mais horrorosa — e que jeitinho esquisito de atingir o sucesso. Eu sou um exibicionista que quer se esconder, mas não consegue; portanto, de alguma maneira eu dou certo”. Sim, funciona, até porque todo leitor é um pouco voyeur. Um fato que incomodava Wallace, mas ao qual estava ligada, de múltiplas e complicadas maneiras, a plena potência da sua genialidade.

Quem escreveu esse texto

Daniel Galera

É autor de Barba ensopada de sangue e Meia-noite e vinte, ambos pela Companhia das Letras.