Política,

Se eu fosse homem

Criadora do termo “mansplaining” — atitude masculina de explicar obviedades para mulheres — imagina a vida sem os entraves que enfrentou como mulher

01maio2018 | Edição #11 mai.2018

Quando eu era bem jovem, amigos gays deram uma festa do trocado — os homens se vestiram de mulher, e as mulheres, de homem. Com ajuda da mãe dele, o meu namorado à época se saiu tão bem que vários homens héteros ficaram perturbados, como se precisassem ter certeza de que a sereia sorridente e voluptuosa no vestidinho justo não estava ameaçando a heterossexualidade deles. Quanto a mim, nem de longe eu estava tão convincente quanto ele, encarnando uma espécie de Rod Stewart com uma sombra de barba, feita a carvão, e fiquei bastante surpresa ao notar que, para mim, estar na pele de um homem significava sentar de perna aberta no sofá, arrotando e coçando as partes íntimas, olhando para tudo com raiva e xingando. A ideia de não precisar agradar a ninguém e de não ter a obrigação de ser amável foi divertida, mas aquele não era necessariamente alguém que eu gostaria de ser.

Tenho idade suficiente para ter vivido num tempo em que as meninas não podiam usar calça na escola, isso até meados do meu ensino fundamental; e também para lembrar de um colunista de um jornal local argumentando, com nervosismo ranzinza, que se as mulheres usassem calça o gênero iria desaparecer, o que para ele seria assustador. Usei jeans e sapatos rústicos durante a maior parte da minha vida, assim como batom e cabelo comprido, e o fato de ser mulher me permitiu transitar entre o que era considerado masculino e o que era considerado feminino. Mas, de tempos em tempos, tenho me perguntado como teria sido a minha vida se eu fosse homem. Não que seja algo que eu almeje ou de que queira me apropriar, tampouco que eu sofra de disforia de gênero e outras questões mais profundas em torno de corpos, sexualidade e senso de identidade com as quais pessoas trans lidam.

 

Gosto de muitas coisas da condição de mulher, mas há momentos e situações em que isso se torna uma prisão, e às vezes sonho acordada com uma vida fora dela. Sei que ser homem pode ser outro tipo de prisão. Conheço e amo muitos homens, héteros e gays, vejo os fardos que eles carregam e fico feliz por não precisar fazer o mesmo. Há todas as coisas que os homens não devem fazer nem dizer nem sentir; existe uma patrulha constante para que os meninos não façam nada que escape às convenções de masculinidade heterossexual, ou para que sejam punidos se fizerem; meninos para quem, nos anos de formação, bicha e viado — não ser hétero ou homem — ainda são muitas vezes os epítetos mais degradantes.

Nos anos 1970, quando alguns homens tentavam entender qual paralelo pode existir entre a libertação deles próprios e a libertação das mulheres, uns rapazes foram a um protesto exibindo uma faixa com os dizeres: “Homens são mais que meros objetos de sucesso”. Talvez por ser menina, a expectativa de que me tornaria um tipo de fracasso foi libertadora. Fazer sucesso poderia ser um jeito de me rebelar, já que vários homens brancos e de classe média da minha geração pareciam se rebelar quando falhavam, pois as expectativas em relação a eles eram altas demais. 

Isso tinha a vantagem de garantir mais apoio para seus projetos, mas também a desvantagem de lidar com pressões e expectativas mais elevadas. Eles deveriam crescer para se tornar presidentes, ou o orgulho e alegria das mães, ou o arrimo da família, ou um herói todos os dias — fazer, de algum modo, coisas excepcionais. Ser alguém comum, decente e esforçado muitas vezes não era visto como suficiente. Mas o sucesso estava ao alcance deles, o que era uma vantagem — e ainda é. Ainda temos enormes disparidades nessas frentes; em 2015, o New York Times publicou uma reportagem que dizia: “Há menos grandes empresas comandadas por mulheres do que por homens chamados John”. Entre as principais companhias dos Estados Unidos, “para cada mulher, há quatro homens chamados John, Robert, William ou James”.

No tempo em que a minha mãe estava viva e bem, eu dizia brincando que o meu problema era ser um filho perfeito. O que a minha mãe esperava de mim, até onde pude perceber, era profundamente diferente do que ela esperava dos três filhos homens. Eu brincava dizendo que a função deles era consertar o telhado da casa dela e a minha era consertar sua psique. O que ela queria de mim era impossível, uma espécie de combinação entre melhor amiga, confidente, cuidadora e alguém a quem ela pudesse incomodar por qualquer motivo, a qualquer momento — alguém que nunca discordaria dela nem iria embora. Ela morava a uns quarenta quilômetros de São Francisco, onde moro desde os dezoito anos, e eu estava sempre de prontidão para ir visitá-la, inclusive nos feriados, no dia das mães e no aniversário dela, levando presentes, escutando, ajudando em coisas práticas, ao mesmo tempo que cuidava da minha própria vida (saí de casa e me tornei financeiramente independente aos dezessete anos).

Gosto de muitas coisas da condição de mulher, mas há momentos e situações em que isso se torna uma prisão, e às vezes sonho com uma vida fora dela

Acontece que ela se ressentia das oportunidades que tive, as quais ela acreditava não ter tido, a começar pela faculdade, que ela não fora incentivada a cursar, diferentemente de seu irmão. Esse tipo de ressentimento é comum, creio, entre a geração dela e a minha, e de algum modo ela via a minha carreira como algo que atrapalhava o meu papel de cuidar dela, ou então de cuidar de qualquer pessoa. Eu sabia que, caso eu não me devotasse a ela, a única escapatória aceitável seria devotar a minha vida a outras pessoas — arrumar um marido, ter filhos — em vez de  trabalhar e viver a minha própria vida. Quando eu era jovem, ela me recitava o dístico “um filho é um filho até o dia do casamento,/ uma filha é uma filha a todo momento”. Na expectativa dela havia uma insinuação: sacrifiquei a minha vida pelos outros; agora sacrifique a sua por mim.

Não me sacrifiquei, e meu trabalho também foi fonte de conflito para outras pessoas. Entrei na faculdade cedo, me formei cedo, segui para a escola de jornalismo de Berkeley, onde me diplomei pouco antes de completar 23 anos, trabalhei numa revista, larguei a revista e sem querer acabei virando escritora free-lancer, que é, de modo geral, como me sustentei nas três últimas décadas. Publiquei um livro aos trinta anos e depois mais um — hoje, já são vinte.

Logo no início da minha amizade com uma escritora feminista mais velha, autora de muitos livros influentes, ríamos dos caras que conhecíamos e que ficavam chateados por publicarmos tanto. Pareciam achar que precisavam ser mais bem-sucedidos que a pessoa por quem se sentiam atraídos; que, de algum modo, o nosso trabalho criativo era um ato de agressão ou de competição. Não acho que as mulheres se relacionem com os homens dessa maneira (embora um romancista certa vez tenha me dito que a ex-mulher dele o fazia se sentir feito um cavalo de corrida no qual ela estava apostando). A piada era: “se eu soubesse que ia te conhecer, teria queimado os meus manuscritos”. Ou, como eu diria mais tarde, rindo: “na sua opinião esse livro faz o meu cérebro parecer grande?”. Meninos podem ser estigmatizados como nerds ou bitolados, mas jamais correm o risco de ser vistos como inteligentes demais. Já as meninas, sim, e por isso muitas aprendem a esconder a inteligência, ou simplesmente abandoná-la, ou desvalorizá-la, ou duvidar dela. Ter opiniões fortes e ideias claras é incompatível com ser charmosamente solícita.

Aquilo que no homem é confiança não raro aparece como competitividade na mulher; aquilo que no homem é liderança, na mulher é autoritarismo; a própria palavra mandona, assim como vagabunda ou neurótica, raramente é usada para se referir a homens. Décadas atrás, conheci uma mulher que era campeã mundial de artes marciais. A família do marido dela vivia perplexa com o fato de que ele não poderia dar uma surra nela. Não que achassem que ele quisesse fazer isso, mas intuíam que, de algum modo, ele era emasculado porque não tinha essa capacidade, porque ela não o fazia se sentir poderoso desse jeito abominável. Já ele, é preciso dizer, parecia não estar nem aí para isso.

Na condição de garota, eu gostaria que a minha inteligência e a minha obra intelectual fossem consideradas como um bem incontestável e uma fonte de orgulho, em vez de algo que exigisse delicadeza de minha parte para não chatear nem ofender ninguém. O sucesso pode conter um fracasso implícito para mulheres heterossexuais, que deveriam ser bem-sucedidas como mulheres fazendo os homens se sentirem divinos em seu poder. Na análise de Virginia Woolf: “Por todos esses séculos, as mulheres serviram como um espelho que tivesse o poder mágico e delicioso de refletir a figura do homem com duas vezes o tamanho do original”.

Conheci um monte de homens brilhantes cujas esposas se dedicaram à carreira deles e viveram sob a sua sombra, e em muitos círculos casar-se com um homem bem-sucedido ainda é considerado o auge da realização de uma mulher. Algumas dessas mulheres floresceram, mas não foram poucas as que pareciam diminuídas no papel de assistente pessoal e aia. Caso se divorciassem, elas se divorciariam da identidade que elas ajudaram a construir e manter. Muitas mulheres ficaram em casa e cuidaram dos filhos enquanto os homens empreendiam aventuras e realizavam seus feitos. Elas ainda existem. Ninguém pergunta a esses homens heterossexuais, com carreira brilhante e família, como conseguem conciliar tudo, pois já se sabe: a razão é a mulher.

A primeira edição da revista Ms, em 1972, publicou um ensaio simbólico intitulado “Por que quero uma esposa”. É uma lista terrível, com todas as coisas que a mulher deve fazer para o marido e os filhos, a mulher vista como uma espécie de serviçal comandada por si mesma. Ainda nos dias de hoje: um dos meus melhores amigos me contou que fica impressionado com as reações de sorrisos e elogios quando ele sai com o filho pequeno, como se ao cuidar de uma criança ele ganhasse uma espécie de crédito especial. Como se tudo que os homens fazem pelos filhos, fora a parte econômica, fosse um bônus; e como se nada do que as mães fazem fosse suficiente. Eis uma das razões que levariam uma mulher a querer ser homem (e que explicam por que a decisão de ter filhos costuma significar algo inteiramente diferente para a mulher do que para o homem, a menos que tenha aquela coisa ainda rara: um parceiro cujo compromisso com o trabalho seja de fato igual). Se eu fosse homem, ou se tivesse uma companheira mulher, é bem possível que fizesse escolhas muito diferentes sobre casamento e filhos.

Já escrevi sobre homens que explicam coisas — que presumem que sabem algo, quando não sabem, e que a mulher com que falam não sabe, quando ela sabe

Não raro, ouvimos declarações que sustentam ser generoso por parte de um homem tolerar o brilhantismo ou o sucesso da mulher, embora um número crescente de casais hétero esteja renegociando isso, conforme as mulheres se tornam as principais provedoras ou ganham mais que os parceiros (Leonard foi exemplar no apoio ao trabalho da esposa, Virginia Woolf, que acabou superando o dele). No entanto, cresci sabendo que devia estar na plateia, sem participar da ação nem ser o centro das atenções.

Já escrevi sobre homens que explicam coisas — aquela dinâmica em que alguns homens presumem que sabem algo, quando não sabem, e que a mulher com quem estão falando não sabe de algo, quando ela sabe. O ensaio que escrevi em 2008 sobre esse tema circula sem parar, aparentemente porque fez sentido para muitas mulheres, e talvez para alguns homens. A palavra mansplaining hoje existe em mais de trinta idiomas, segundo um artigo do ano passado, e percebo que, no bojo dessa ideia, está uma dinâmica em que as mulheres são eternamente plateia. Não há indícios de que o mansplaining irá desaparecer. Há pouco tempo, uma conhecida me contou o seguinte: “Uma vez um homem me perguntou se eu conhecia o programa Bracero [para trabalhadores rurais mexicanos nos Estados Unidos]. Quando eu disse ‘conheço, claro, a minha dissertação de mestrado foi sobre esse programa’. Ele respondeu: ‘Pois então, vou te contar como é’, e eu disse ‘não, eu é que vou te contar, seu filho da puta!’. E então o jantar azedou”.

Assim como a maioria das mulheres, mesmo passada a idade em que estranhos exigiam que eu sorrisse para eles, deparei com desconhecidos que vinham descarregar em cima de mim suas teorias ou histórias intermináveis, sem reciprocidade na conversa, se é que “conversa” é o termo certo para essa via de mão única. Conhecemos essa realidade a partir dos estudos sobre como os meninos são mais requisitados na escola e criados para falar mais em reuniões, interrompendo mulheres bem mais que aos homens.

Nos anos 1990, a artista Ann Hamilton deu a seus alunos levíssimas pranchas de compensado de 1,2 x 2,4 metros, que eles deviam levar aonde quer que fossem ao longo de uma semana. O exercício os tornou conscientes de como se transita no espaço; sentiam-se esquisitos, sempre correndo o risco de trombar em pessoas e coisas, provavelmente se desculpando a toda hora. Às vezes é assim que parece ser o sucesso para as mulheres: um enorme trambolho que parece estar atrapalhando o caminho de outras pessoas, e pelo qual volta e meia você acaba pedindo desculpas. As frases que às vezes são usadas para qualificar homens que se relacionam com mulheres bem-sucedidas — “ele tira isso de letra”, “ele não se importa com essas coisas”, “ele é ok em relação a isso”, “ele é habilidoso”, “ele é legal” — são lembretes de que o sucesso feminino pode ser considerado um tipo de intromissão ou comportamento inadequado.

Como será a sensação de ter um sucesso que não contenha nenhum tipo de fracasso, que não seja esquisito nem exija desculpas, algo que você não precise subestimar? Como será ter um poder que acentue e não diminua o quão atraente você é? (A própria ideia de que a impotência seja atraente é estarrecedora — e real.) Ann Hamilton teve uma carreira tremenda, que em parte veio da magnitude de escala e ambição do trabalho dela, desde o princípio, o que parecia excepcional quando ela surgiu na cena artística, em fins dos anos 1980. Lembro de todas as alunas de belas-artes que conheci naquela época, que faziam coisas mínimas e furtivas para expressar algo sobre a sua condição, incluindo a falta de espaço que elas se sentiam livres para ocupar. Como pensar grande quando você não deve atrapalhar, abusar da hospitalidade, ofuscar nem intimidar? Quando perguntei sobre o projeto do compensado, muito tempo atrás, Ann me escreveu o seguinte: “Ainda estou tentando romper o hábito de pedir desculpas — embora não hesite muito em pedir ajuda nos projetos —, pedir algo para mim mesma traz de volta o velho ‘por favor me desculpe’”.

Não é difícil encontrar histórias de horror sobre mulheres que têm suas ideias roubadas por outros, que não são promovidas ou que são assediadas

Sei que as coisas estão mudando e que as mulheres mais jovens têm tido experiências diferentes, mas as mais velhas do que eu têm histórias terríveis para contar, e ainda não escapamos totalmente dessa sombra. Ruth Bader Ginsburg, ministra da Suprema Corte dos Estados Unidos, diz que, quando chegou à faculdade, nos anos 1950, “o reitor pediu que cada uma de nós dissesse o que estava fazendo na escola de direito, ocupando um lugar que poderia ser de um homem”.  Há alguns anos, Hillary Clinton disse a um entrevistador ter encontrado oposição semelhante, nos anos 1960, por parte dos rapazes que fizeram o exame de admissão na escola de direito de Harvard na mesma época que ela. Um deles chegou a acusá-la de homicida por suas ambições: “Se você pegar o meu lugar, vou ser convocado, vou para o Vietnã e lá vou morrer”. Ele não concebia que ela tivesse o direito de competir; nem que aquela vaga, que ainda não tinha sido levada por nenhum dos dois, não fosse mais dele do que dela. E o problema não está só no topo da pirâmide: mulheres encanadoras, eletricistas e mecânicas me contaram que são tratadas como incompetentes, intrusas ou ambas as coisas no campo em que trabalham.

Não é difícil encontrar histórias de horror contemporâneas sobre mulheres que não conseguem se pronunciar em reuniões, que têm as suas ideias roubadas por outros, que não são promovidas como deveriam porque não são homens, que são assediadas e apalpadas ou que, no mundo dos engravatados, não são convidadas para os momentos sociais entre executivos. Em 2017 o Vale do Silício teve uma hemorragia de histórias de assédio sexual e discriminação, e o que se conclui delas é que as empresas de tecnologia toleram mais o assédio do que as pessoas que o denunciam. Em agosto, um funcionário do Google, num relatório que se tornou infame, insistiu que a paisagem profundamente desigual nos empregos engravatados do Vale do Silício é resultado da superioridade do homem, nada mais, nada menos.

Ainda temos um longo caminho a percorrer. Uma jovem, matriculada numa faculdade só de mulheres, me contou que se sentia exultante por estar num ambiente intelectual em que nenhum rapaz brilhante dominasse as conversas em sala de aula do jeito que faziam no colégio dela; outra alegria era ir para casa caminhando pelo campus às três da manhã sem ter que pensar em segurança. (Mulheres cometem ataques sexuais, mas os números são ínfimos, se comparados aos dos homens.) As mulheres também são alvo no mundo digital: em 2016, num breve experimento no Twitter, a jornalista Summer Brenner pegou emprestada a foto de perfil do irmão e reduziu o seu nome às iniciais — o assédio que ela sofria na internet caiu para quase zero. A mulher pode aspirar a ser homem só para se ver livre da perseguição dele.

Se eu fosse homem… Não gostaria de ser outra pessoa tanto quanto gostaria de, vez ou outra, ser tratada como outra pessoa, ou ser deixada em paz, como aconteceria se eu fosse alguém diferente. Em particular, gostaria de poder caminhar sozinha na cidade, nas montanhas, sem ser incomodada. Você não consegue vagar feito uma nuvem solitária quando precisa sempre conferir se tem alguém te seguindo, ou estar preparada para o caso de alguém passar e te agarrar. Já fui insultada, ameaçada, cuspida, atacada, apalpada, assediada, seguida; conheço mulheres que já foram tão ferozmente perseguidas que precisaram se esconder, às vezes durante anos; outras mulheres que conheço foram sequestradas, estupradas, torturadas, esfaqueadas, apedrejadas, dadas como mortas. Isso tem impacto no senso de liberdade delas, para dizer o mínimo.

Questões de sobrevivência

Uma pequena parte da minha consciência está eternamente ocupada com essas questões de sobrevivência, toda vez que me vejo sozinha e fora de casa, embora tenha visitado lugares — Islândia, Japão, naturezas selvagens extremamente remotas, onde os ursos eram a única ameaça — onde senti que não precisava me preocupar com isso. Caminhadas solitárias são o momento em que muitos escritores — Wordsworth, Rousseau, Thoreau, Gary Snyder — conceberam e criaram boa parte de sua obra; eu também fiz isso, mas fui interrompida tanto por fatores externos como por esse radar interno, sempre pensando na minha segurança.

Sei que o fato de ser branca muda o equilíbrio da balança para o outro lado; ser branca me permite ir a lugares aonde uma pessoa negra não pode ir; numa resposta curta à pergunta “como seria minha vida se eu tivesse nascido negra?”, seria diferente em quase todos os aspectos imagináveis.

Como é passar a vida usando sapatos que te deixam menos firme e ágil? Algumas vestes podem ser divertidas e glamourosas, mas incapacitantes

Não faltam histórias de pessoas que se vestem do sexo oposto por razões práticas, não por uma questão de expressão da individualidade, assim como existem pessoas de cor que passam por brancas. Deborah Samson e Anna Maria Lane estão entre as mulheres que lutaram contra os britânicos na Guerra de Independência (1775-83) vestidas de homem, e mais mulheres fizeram o mesmo no exército da União, durante a Guerra de Secessão (1861-65). A romancista George Sand usou nome de homem para transitar no mundo literário da França do século 19 e roupas masculinas para circular por Paris. Ela não estava apenas se escondendo do assédio, mas aposentando sapatos perigosos e vários metros de tecido, que dificultavam andar por uma cidade de superfície muito irregular e imunda. Ela trocou esses aparatos frágeis por botas firmes e roupas resistentes, com as quais podia flanar com confiança, fizesse chuva ou fizesse sol, a qualquer hora da noite ou do dia, feliz da vida. Sylvia Plath, nascida um século depois, escreveu em seu diário, aos dezenove anos: “Ter nascido mulher é a minha pior tragédia. Sim, Deus, quero falar com todo mundo que puder, o mais profundamente que puder. Quero poder dormir num campo aberto, viajar para o Oeste, andar livremente à noite”.

Não são poucas as coisas que uma mulher usava, e ainda usa, que servem para impedir e confinar. No 11 de Setembro, mulheres que tentavam escapar do World Trade Center tiveram de fazê-lo descalças, ferindo os pés, porque o sapato lhes dificultava a mobilidade. Como é passar a vida usando sapatos que te deixam menos firme e ágil do que as pessoas à sua volta? Algumas mulheres usam roupas justas, que atrapalham o movimento, ou roupas frágeis, nas quais é possível tropeçar. Essas vestimentas podem ser divertidas e glamourosas, mas, como uniforme do dia a dia, são muitas vezes incapacitantes. 

Pessoas trans têm sido testemunhas notáveis de como o mundo passa a tratá-las de outro modo depois que fazem a transição. Li muitas histórias sobre uma mulher trans que descobre não ter mais direito à passagem livre na rua, que irão sempre trombar com ela; um homem trans descobre que parou de ser interrompido. O gênero molda o espaço — social, dialógico, profissional, assim como literal — que nos é dado ocupar. Quem nós somos, observo na qualidade de coautora de um atlas da cidade de Nova York, está marcado até na paisagem, na qual muitas coisas recebem nomes de homens e bem poucas nomes de mulheres, desde ruas e edifícios — Lafayette Street, Madison Avenue, Lincoln Center, Rockefeller Center — até bairros — os vizinhos Peterson, Levittown, Morristown. A nomenclatura da cidade parece ter encorajado os homens a imaginar coisas grandiosas para si mesmos, no papel de generais, capitães de indústria, presidentes, senadores. Eu e os demais colaboradores fizemos um mapa em que todas as estações de metrô de Nova York foram rebatizadas com o nome de uma grande mulher da cidade. 

No ano passado, num debate sobre esse tema com alunos da Universidade Columbia (cujo nome é uma homenagem a Cristóvão Colombo, claro), uma jovem negra comentou que havia caminhado curvada durante a vida inteira; mas que, numa cidade em que as coisas recebessem o nome de pessoas como ela, seria possível andar de cabeça erguida. Outra se perguntou se ela sofreria assédio sexual em bulevares que fossem rebatizados com nomes de mulheres. A superfície do mundo é irregular, sobra lugar para tropeçar e espaço para reinventar.

Gosto de ser mulher. Adoro observar e quem sabe até sorrir, ou conversar com as crianças que encontro nos parques, no supermercado ou em qualquer outro lugar; estou segura de que ninguém vai achar que sou uma psicopata ou uma sequestradora, e sei que isso seria mais complicado se eu fosse homem. Existem outras vantagens sutis no leque de expressões que me são permitidas nas minhas relações pessoais, inclusive na amizade, próxima, solidária e de emoções declaradas, com outras mulheres — e, pela vida adulta inteira, também na amizade com homens gays, muitos deles tendo quebrado corajosa, festiva e brilhantemente as regras de masculinidade e me ajudado a rir das lacunas entre o que somos e o que deveríamos ser. A libertação é um projeto contagioso, e o fato de ter crescido perto de pessoas que desmontaram e reconfiguraram a ideia de gênero ajudou a libertar até uma mulher hétero como eu. 

Portanto, eu não queria ser homem. Eu queria apenas que todo mundo fosse livre. [Tradução de Julia Bussius]

Quem escreveu esse texto

Rebecca Solnit

É autora de Os homens explicam tudo para mim (Cultrix).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.