Quadrinhos,

Um super-herói contra o Caveira Laranja

Autor de 'Maus' compara o rival do Capitão América a Donald Trump e tem ensaio censurado pela Marvel; leia o texto na íntegra

20ago2019 | Edição #26 set.2019

No remoto e incivilizado século 20, as revistas em quadrinhos eram vistas como lixo subliterário para criancinhas e adultos com limitações intelectuais — mal escritas, desenhadas nas coxas e com impressão abominável. Martin Goodman, fundador e publisher do que hoje se conhece como Marvel Comics, uma vez disse a Stan Lee que não fazia sentido tentar deixar as histórias mais elaboradas do ponto de vista literário nem se preocupar com a evolução dos personagens: “Basta enfiar ação aos montes e não usar palavras demais”. De fato, é um marvel — uma maravilha — que essa fórmula esteja na origem de obras com tanta repercussão e vitalidade.

Pode-se creditar o formato da revista em quadrinhos a um representante comercial, Maxwell Gaines, que estava à procura de um jeito de manter as rotativas dos jornais circulando quando, em 1933, republicou, em formato meio-tabloide, as tiras mais populares dos jornais. Só para experimentar, tascou um adesivo de 10 cents num punhado desses panfletos, que logo esgotaram ao serem postos à venda numa banca. Não demorou para que alguns editores reunissem as famosas tiras em revistinhas — e assim surgiu a demanda por conteúdo inédito a ser produzido ao mesmo preço baixo dos panfletos. Boa parte do material inédito eram imitações de terceira categoria das tiras de jornal, ou então histórias de aventura, de detetive, faroeste ou ambientadas na selva. Como já ressaltou Marshall McLuhan, todo meio incorpora o conteúdo do meio que o precede até encontrar a sua própria voz.

Aqui entram Jerry Siegel, adolescente aspirante a escritor, e Joe Shuster, jovem metido a artista — ambos judeus desajustados, alienados e meio nerds, muitas décadas antes que isso fosse minimamente cool. Eles sonhavam com fama, riqueza, olhares de admiração das garotas e tudo o que uma tira nos jornais poderia lhes dar. Os dois desenvolveram a ideia de um alienígena super-humano, vindo de um planeta moribundo, que lutava pela verdade, pela justiça e pelos valores do New Deal do Presidente Franklin D. Roosevelt.

Essa ideia foi rejeitada pelas agências de distribuição de tiras por ser ingênua, juvenil e nada sofisticada, até que Gaines comprou treze páginas de amostras do Superman para a Action Comics, a 10 dólares cada — os honorários incluíam todos os direitos sobre o personagem. A criação de Siegel e Shuster não só foi o molde do novíssimo gênero que passou a definir o meio, mas também a vida deles virou o paradigma trágico do criador que não recebe os rendimentos da sua criação, que ficam concentradas nas mãos dos editores.

É praticamente consenso que o Superman inaugurou a era de ouro dos quadrinhos, em junho de 1938, com a sua estreia na Action Comics n. 1, publicada pela editora hoje conhecida como dc Comics. Siegel e Shuster criaram um novo arquétipo — mais precisamente, talvez, um novo estereótipo —, e, por volta de 1940, assim que o gênero incipiente já demonstrava que conseguia fazer as crianças gastarem milhões de moedinhas por mês, enxames de imitadores catapultaram aos céus hordas de heróis em quatro cores, todos eles em busca do ouro da era dourada.

A ingenuidade juvenil de Superman parecia ser parte de seu apelo, que convocava os rapazotes a um tipo de história inovadora e particularmente infantil, cuja fantasia era mais displicente com a lógica que a maior parte da prosa dos livros de pulp fiction, e que era apresentada em visual diagramático, com cores primárias e secundárias capazes de transformar cada página em uma cortina de teatro prestes a revelar novos pontapés nos olhos e mais… ação.

Goodman, editor de livros de pulp fiction escandalosos que seguia os ventos de qualquer modismo, foi um dos primeiros a entrar na onda dos super-heróis, e causou sensação imediata com a primeira edição da Marvel Comics, em outubro de 1939. (À primeira tiragem, de 80 mil exemplares, seguiu-se uma reimpressão de 800 mil cópias.) O conteúdo vinha da Funnies, Inc., estúdio de quadrinhos que entregava gibis completos, da ideia à arte-final, para qualquer editora de primeira viagem que quisesse investir pouco. Essas “oficinas” tinham alguma coisa em comum com as grandes confecções do Garment District, onde trabalhavam muitos dos familiares dos artistas. Geralmente produzidas em empreitada enquanto se batia o ponto com muitas mãos (roteiristas, desenhistas, arte-finalistas, letreiristas), com todos atacando as páginas quase que ao mesmo tempo, as revistas eram feitas em esquema similar a fábricas de fundo de quintal do que de um ambiente artístico.

O mercado recrutava moleques novatos, velhos picaretas em fim de carreira e — quando muitos dos garotos que atendiam a demanda crescente por gibis foram chamados para lutar na Segunda Guerra Mundial — até mesmo mulheres, pessoas não brancas e outros “intrusos”. (A propósito, esses “intrusos” continuaram a fornecer os estereótipos racistas e sexistas que há muito tempo têm sido a pedra de toque de toda essa indústria.)

Os outsiders

Neste momento, talvez valha a pena ressaltar (não por orgulho étnico, mas para jogar luz sobre a crueza e os temas específicos dos primeiros gibis) que os pioneiros dessa mídia embrionária que moravam em Nova York eram predominantemente judeus e de outras minorias. Não foram só Siegel e Shuster, mas toda uma nova geração de imigrantes e seus filhos — os mais vulneráveis às mazelas da Grande Depressão —, que acompanhavam de perto a ascensão do virulento antissemitismo na Alemanha. Foram eles que criaram os Übermenschen norte-americanos, que lutavam por uma nação que, ao menos nominalmente, receberia “seus fatigados, seus pobres, suas massas encurraladas que anseiam respirar liberdade…”, como dizem os versos gravados na Estátua da Liberdade.

Para citar apenas alguns dos judeus seculares que adotaram identidades secretas à la Clark Kent: Gaines nasceu Max Ginzberg; os pais de Goodman imigraram de Vilnius, Lituânia; Jack Kirby (nascido Jacob Kurtzberg), o dínamo que criou o Capitão América com seu compatriota Joe Simon, nasceu nos cortiços do Lower East Side, em Nova York; e Stan Lee, que se tornou o rosto da Marvel Comics, era primo da mulher de Goodman, nepotisticamente contratado como office boy aos dezessete anos, quando ainda se chamava Stanley Lieber. Embora não fossem benquistos nas altas rodas do meio publicitário e editorial, todos eles acharam o seu nicho ali, no fundo do tacho.

Imaturos, os artistas daquelas fábricas de quadrinhos descobriram as possibilidades do novo formato sob a pressão de vida ou morte dos deadlines. Foram se aprimorando ao copiar uns aos outros e ao roubar direto dos mestres dos quadrinhos de aventura de jornal: Alex Raymond (Flash Gordon, Agente Secreto X-9), Hal Foster (Tarzan, Príncipe Valente) e Milton Caniff (Terry e os Piratas).

Por outro lado, Carl Burgos (nascido Max Finkelstein), afirmaria, orgulhoso: “Se quisessem Raymond ou Caniff, podiam ir atrás de Raymond ou Caniff. Aquele desenho tosco era só meu”. As habilidades no desenho desse escritor-artista, então rudimentares, apoiavam-se em sua capacidade intuitiva para a narrativa visual e foram aplicadas a um personagem inspirado, que ele criou como atração principal da Marvel Comics n. 1: o Tocha Humana. O herói — um rastro de chamas vermelhas e amarelas — tinha tal intensidade gráfica que chamuscava os globos oculares dos leitores e incorporou a energia crepitante dos primeiros quadrinhos, antes que fossem domesticados.

William Blake “Bill” Everett, colega de Burgos na Funnies, Inc., era uma peça rara nos quadrinhos. Para começar, não era judeu. Vinha de uma família aristocrata de Massachusetts, com trezentos anos de tradição, e era descendente direto de seu xará poeta. Ganhou o status de outsider que o levou aos quadrinhos graças à personalidade de viciado — bebia muito desde os doze anos e fumava três maços de cigarro por dia —, ou foi a sensibilidade de outsider que o levou aos quadrinhos. Foi um dos artistas de maior talento a trabalhar nos gibis. O desenho fluía, ele ficava à vontade em gêneros diversos e tinha uma noção de design que levava o leitor a encontrar tesouros visuais ocultos na página enquanto seguia tranquilamente a história.

Seu anti-herói alienado, Namor, o Príncipe Submarino, foi o precursor de uma série de personagens perturbados que povoariam o universo Marvel algumas décadas depois. Nos anos 1940, o Príncipe Submarino era singular — em forte contraste com os vigilantes benfeitores de queixo reto que viviam na vizinhança mais zelosa da dc. Jamais à vontade, nem no oceano nem nos ares, Namor era soberbo, arrogante e mais volátil que o Tocha Humana, seu oposto complementar. Água e fogo combinaram-se para levar a Marvel Comics ao ponto de fervura.

Capitão América

Em fins de 1940, mais de um ano antes de Pearl Harbor, enquanto os nazistas atacavam Londres com a Blitzkrieg, Simon, um frila visionário da Funnies, Inc., foi contratado por Goodman para escrever, desenhar e editar diretamente para ele. Simon mostrou-lhe a ideia da capa de um novo super-herói que ele e Kirby haviam concebido — um herói vestido com a bandeira dos Estados Unidos, com os bíceps gigantes e o abdômen de aço, que invade um quartel-general nazista e derruba Hitler com um cruzado no queixo. Goodman começou a tremelicar, sabendo do impacto que uma revista assim teria, e essa ansiedade continuou até que a primeira edição de Capitão América, datada de março de 1941, chegasse às bancas. Goodman estava apavorado que alguém fosse matar Hitler antes que a revista saísse!

O Capitão América era como um cartaz de alistamento de recrutas, uma figura que enfrentava supernazistas de verdade, enquanto Superman ainda se batia com pistoleiros mequetrefes, fura-greves, senhorios mesquinhos e Lex Luthor — e os Estados Unidos ainda não tinham certeza sobre embarcar no conflito ou não. Não é à toa que a revistinha de Simon e Kirby fez enorme sucesso, vendendo quase um milhão de exemplares por mês durante a guerra. Mas nem todo mundo era fã em 1941 — segundo Simon, a organização pró-nazista Federação Germano-Americana e o Comitê America First (contra a entrada norte-americana na Segunda Guerra Mundial) bombardearam a sede da editora com cartas raivosas e xingamentos por telefone, aos berros de “Morte aos Judeus!”. O prefeito Fiorello La Guardia, super-herói da vida real, ligou para tranquilizá-lo: “O município de Nova York cuidará para que ninguém lhe faça mal”.

Os pioneiros dessa mídia embrionária eram predominantemente judeus e de outras minorias

As figuras hipercinéticas de Kirby, com músculos hipertrofiados, deixavam a anatomia humana no chinelo. Os personagens dele eram belicosos, seriíssimos, obstinados e raivosos, explodiam no requadro irregular de cada quadrinho e nas panorâmicas das páginas duplas. Sua arte definiu o tom da ação super-heroica não só durante os tempos de guerra, mas até hoje.

Sei que Kirby foi uma figura original e versátil, tanto como quadrinista quanto como genuíno herói de guerra, mas confesso que o gênero de super-herói que surgiu a partir do molde definido por ele é um ponto cego para mim. Quando eu tinha doze anos, os super-heróis eram a minha metadona — eu era profundamente viciado em revistas de humor como a Mad e em velhas tiras de jornal que descobri nos volumes encadernados da biblioteca pública que frequentava. Eu dava preferência a coisas mais adultas, como Pato Donald e Luluzinha. Dá para ver que eu amo o formato dos comics — páginas cheias de palavras e imagens comixadas, colidindo umas com as outras, aquele monte de caixinhas que você precisa comparar e contrastar para espremer o suco narrativo; e adoro as bizarras idiossincrasias da linguagem dos quadrinhos, com qualquer sotaque.

Fim de uma era

Os que consideram os super-heróis a quintessência dos quadrinhos datam o final da era de ouro em algum ponto dos anos 1940, no pós-guerra, quando o interesse pelo gênero esmaeceu. Desiludidos, os soldados, que já não constituíam uma audiência ávida e cativa, devem ter notado que não foi o Capitão América que venceu a guerra. Capaz que tenham sido os russos! Seja como for, os soldados desmobilizados superaram o vício nos gibis ou voltaram a atenção para outros gêneros. Gibis policiais, de caubói, românticos, de terror e de guerra vicejaram, geralmente com conteúdo mais adulto — e mais lúgubre —, pensado para leitores mais velhos.

Para mim, a era de ouro acabou em 1954. O pânico moral que se construiu sob a falsa premissa de que os quadrinhos transformariam as crianças em delinquentes juvenis levou  à queima de gibis e a audiências no Senado, acabando com várias editoras e trazendo sérios prejuízos para as que restaram. Super-heróis pasteurizados tiraram os quadrinhos da uti em 1956 (data hoje considerada como o início da era de prata), mas eles nunca mais reconquistariam a presença que tinham durante seu apogeu — pelo menos na forma de revistas. Como filmes, eles conquistaram o mundo!

Naquela era de ouro, se você quisesse ver um carinha de capa passar voando por cima de um arranha-céu, ou então destruir Nova York, os quadrinhos eram o mecanismo mais prestativo. No século 21, graças ao milagre dos efeitos especiais, milhões de pessoas mundo afora, que nunca leram um gibi nem ouviram falar de graphic novels, vão aos cinemas multiplex para idolatrar as novas divindades que personificam o dna dos quadrinhos.

Os jovens judeus que criaram os primeiros super-heróis conjuraram redentores míticos — quase divinos — e seculares para lidar com as ameaçadoras desordens econômicas que os rondavam na Grande Depressão, e que definiram as premonições a respeito de uma guerra mundial iminente. Os quadrinhos possibilitavam que o leitor fugisse para a fantasia de se projetar em heróis invulneráveis.

Auschwitz e Hiroshima fazem mais sentido como cataclismas de sombrias histórias em quadrinhos que como fatos da realidade. No mundo de hoje, demasiado real, o vilão mais nefando do Capitão América, o Caveira Vermelha, está vivo nas telas, e um Caveira Laranja assombra os Estados Unidos. O fascismo internacional também se agiganta (como os seres humanos esquecem rápido — estudem os gibis da era de ouro, garotos e garotas!) e as desordens que se seguiram ao colapso econômico global de 2008 ajudaram a nos trazer a um ponto em que o planeta em si parece estar à beira do colapso. O Armagedom soa plausível em alguma medida, e todos nós viramos crianças indefesas, com medo de forças maiores do que podemos conceber, em busca de trégua e de respostas nos super-heróis que voam pelas telas no nosso santuário dos sonhos.

Enquanto o conteúdo das hqs sequestrou o nosso cinema, a forma artística dos quadrinhos — engenhosamente disfarçada de graphic novel — infiltrou-se no que sobrou da nossa cultura literária. Quando a Folio Society, vetusta editora de luxuosos livros ilustrados desde 1947, decidiu lançar uma compilação deluxe dos quadrinhos da era de ouro da Marvel, convidaram a mim, romancista gráfico e estudioso dos gibis, para escrever uma apresentação. Talvez tenham suposto, equivocadamente, que eu fosse dar uma colherinha de respeitabilidade à empreitada.

Entreguei o texto em fins de junho, substancialmente idêntico ao que publicado aqui. Pesaroso, um editor da Folio Society me disse que a Marvel Comics (evidentemente, coeditora do livro) vem tentando manter-se “apolítica” e não deixa que as suas publicações tomem posições políticas. Fui convidado a alterar ou remover a frase que se refere ao Caveira Vermelha, caso contrário a apresentação não poderia ser publicada.

Não penso que eu seja particularmente politizado em comparação com colegas de ofício, mas, quando me convidaram a deletar uma referência relativamente anódina a um Caveira Laranja, percebi que talvez eu tenha sido irresponsável ao ser jocoso com a medonha ameaça existencial em que vivemos e peguei a minha apresentação de volta.

Uma reportagem reveladora apareceu fortuitamente no meu feed de notícias esta semana. Fiquei sabendo que o presidente bilionário e ex-ceo da Marvel Entertainment, Isaac “Ike” Perlmutter, é amigo de longa data de Donald Trump, além de ser conselheiro não oficial dele e sócio do elitista clube Mar-a-Lago de Palm Beach, na Flórida, frequentado por Trump. E que há pouco tempo Perlmutter e sua esposa doaram 360 mil dólares (o máximo permitido) cada um ao Caveira Laranja e seu “Comitê de Arrecadação pela Vitória de Trump” para 2020.

Também tive que aprender, mais uma vez, que tudo é político… assim como o Capitão América dando um soco no queixo de Hitler. (Tradução de Érico Assis)

Quem escreveu esse texto

Art Spiegelman

Cartunista ganhador do prêmio Pulitzer em 1992 pela graphic novel “Maus”

Matéria publicada na edição impressa #26 set.2019 em agosto de 2019.