Política,

Um recorte da história de livros perigosos

Cronologia de violações à liberdade de expressão e censura de títulos no Brasil e no mundo

24fev2023

Desde que uma parte considerável da população mundial passou a ser alfabetizada e ter acesso à leitura, detentores de poder identificam a força das palavras e lançam tentativas de suprimir a liberdade de expressão e o acesso a livros e ideias. Por anos, a Bíblia não pôde ser publicada em outra língua que não o latim, para evitar que os leigos fizessem suas próprias interpretações do texto religioso. Ao longo do século passado, diversas perseguições estavam relacionadas ao conteúdo religioso ou ao posicionamento político das obras. Infelizmente, essa mentalidade persecutória não ficou no passado — desde julho de 2021, cerca de 1.650 títulos foram banidos em alguma instância pública nos Estados Unidos, atitude que repercute também no Brasil, principalmente em relação a obras que abordam temas como racismo, sexo, sexualidade e gênero.

1637
1º livro banido nos EUA

The New English Canaan, do advogado inglês Thomas Morton, é considerado o primeiro livro a ser explicitamente banido na história dos Estados Unidos. A obra traz críticas severas aos costumes puritanos e aos colonizadores da América do Norte e é considerada pelo governo “um ataque aos bons costumes” e “desafiador às autoridades vigentes”, além de herético. Um exemplar da primeira edição foi leiloado pela Christie’s por US$ 60 mil em 2019.

1922
Ulysses proibido

A obra-prima de James Joyce, Ulysses, tem a sua publicação e venda proibidas nos Estados Unidos. Segundo os censores, o romance tinha teor obsceno, além de conter pornografia e blasfêmia. Somente em 1933, por decisão do juiz John M. Woolsey, a proibição foi revogada. Na decisão, o juiz afirma que “embora descreva relações sexuais, mesmo que desagradáveis, a literatura séria deve ter a permissão de expressá-las”.

1937
Jorge Amado na fogueira

Em Salvador, Bahia, as autoridades do Estado Novo, ditadura comandada por Getúlio Vargas, queimam em uma fogueira 1,8 mil livros supostamente simpatizantes do comunismo. A maioria era assinada por Jorge Amado, incluindo 808 exemplares de seu recém-lançado Capitães da areia.

1953
Fahrenheit 451

Publicado em outubro de 1953, no auge da campanha de caça aos comunistas liderada pelo senador Joseph McCarthy, o romance de Ray Bradbury é um retrato distópico da sociedade norte-americana, no qual o pensamento crítico é reprimido e os livros são proibidos e queimados. O título é uma referência à temperatura de combustão do papel — 451º Fahrenheit (ou 233º Celsius) — e inspirou o nome da revista dos livros.

1968
Ditadura militar

É instaurado no Brasil o AI-5. Durante a vigência do Ato Institucional, são censurados no país cerca de quinhentos filmes, 450 peças de teatro, duzentos livros, cem revistas e quinhentas letras de música.

No ano da criação do Ato, uma bomba explode contra o portão da editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Os autores do atentado são simpatizantes da Aliança Anticomunista Brasileira, segundo panfletos encontrados no local. A editora teve dezenas de livros apreendidos pela polícia do Rio de Janeiro.

1970-76
Censura no Brasil

1970 É aprovado o decreto-lei que permite a censura prévia no país.
1972 O jornal O Estado de S. Paulo passa a ser censurado previamente por uma equipe instalada na redação.
1974 Rasga coração, última peça escrita por Oduvaldo Vianna Filho, é censurada.
1976 O romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, considerado “atentatório à moral e aos bons costumes”, é proibido de circular no Brasil. O jornal Opinião, que teve 221 dos seus 230 números feitos sob censura prévia, sofre um atentado a bomba.

1982
Resistência às proibições

A Semana dos Livros Proibidos é criada nos Estados Unidos. O evento surge como reação a um aumento repentino de ameaças à liberdade de expressão em escolas, livrarias e bibliotecas. Durante a Semana, até hoje realizada no mês de setembro, o Departamento de Liberdade Intelectual da Associação Americana de Bibliotecas apresenta listas de livros ameaçados compiladas a partir de reportagens e de denúncias de professores e bibliotecários de todas as regiões do país.

1986
Um Nobel em chamas

Durante a ditadura de Pinochet, no Chile, 15 mil exemplares do livro A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile, de Gabriel García Márquez, são queimados após serem confiscados no porto de Valparaíso. Os livros apreendidos deveriam ser entregues à editora chilena que publicava as obras de García Márquez, vencedor do Nobel de Literatura em 1982. A reportagem literária conta as complicações do cineasta Miguel Littín, que estava exilado desde o golpe de 1973.

1988-93
Versos satânicos

1988 O romance de Salman Rushdie é publicado.
1989 O aiatolá Ruhollah Khomeini emite um edito religioso recompensando quem matasse o escritor e seus editores por cometerem blasfêmia. Rushdie sofre tentativa de homicídio em Londres.
1991 O tradutor italiano de Versos satânicos, Ettore Capriolo, é atacado em sua casa em Milão. O tradutor japonês Hitoshi Igarashi é esfaqueado e morto na Universidade de Tsukuba, onde lecionava.
1993 O editor norueguês William Nygaard é baleado ao sair de sua casa, em Oslo.

2019
Beijo gay na Bienal

Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, então prefeito da cidade, manda fiscais da prefeitura recolherem a HQ Vingadores: a cruzada das crianças, que traz na capa dois homens se beijando. O prefeito anuncia que censuraria o livro, mas o STF derruba a medida que autorizava a prefeitura carioca a censurar obras no evento.

2021
Estados censores

Autoridades de 26 estados norte-americanos lançam ações para banir livros em escolas e bibliotecas públicas. Desde então, cerca de 1.650 títulos foram censurados. De acordo com a ong de defesa à liberdade de expressão Pen America, proibições atingem principalmente livros que abordam identidade racial e de gênero, sexualidade, temática lgbtqia+, justiça social, racismo, violência e suicídio. Defensores dos vetos alegam que os banimentos protegem as crianças.

2022
Ano desafiador

Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, é banido de salas de aula em Hudsonville, Michigan. A HQ Maus, de Art Spiegelman, sofre proibições no Tennessee. Gender Queer, graphic novel de Maia Kobabe em que ela conta se descobrir não binárie e não bissexual, torna-se o livro mais banido dos Estados Unidos. Em agosto, Salman Rushdie é esfaqueado no palco de um festival literário em Chautauqua, Nova York, prestes a falar, justamente, sobre liberdade de expressão.