Política,

Por uma tradução não binária

O uso de uma linguagem que não se restringe ao binarismo de gênero é fundamental para que todes possam existir por meio das palavras

11set2023

No Brasil dos últimos anos, vimos dezenas de projetos de lei estaduais visando proibir o uso da linguagem não binária em escolas e em documentos oficiais, profissionais que a adotam serem perseguides, ataques a instituições públicas e empresas. Infelizmente, o rechaço não é só por parte de conservadories, mas de outros segmentos sociais, inclusive feministas. Em artigo para o Suplemento Pernambuco, Dri Azevedo, escritore trans não binárie, apontou que esse “talvez seja o reflexo de uma sociedade que prefere continuar alheia às discussões políticas, produções teóricas, narrativas e memórias de pessoas transgênero, transexual, travesti, não binárie e gênero dissidentes”.

O tema é urgente. Há alguns meses, fiz a revisão técnica sobre a linguagem não binária da história em quadrinhos Gênero queer, de Maia Kobabe, publicada pela Tinta-da-China Brasil e traduzida por Clara Rellstab. Uma tradução atenta e cuidadosa que contempla a não binariedade envolve duas questões principais: a relação de uma língua com sua estrutura gramatical de gênero e, além disso, como diferentes morfologias e sintaxes se colocam em relação umas às outras em duas línguas. Por mais desafiador que seja, isso é necessário tanto para acolher vozes trans, quanto, sobretudo, para impactar uma organização de mundo que precisa ser transformada.

Ativistas, escritories e acadêmiques têm se mobilizado, mas ainda há inúmeras barreiras a serem enfrentadas, sendo uma delas as convenções editoriais sobre as normas linguísticas. Lembro quando, em 2019, eu, Julia Raiz e Emanuela Siqueira — nossa coletiva Pontes Outras — estávamos traduzindo Bash back! Ultraviolência queer para a crocodilo edições em parceria com a n-1. A antologia de ensaios de vozes queers anarquistas trazia pluralidades não binárias em inglês. Com isso, pudemos falar em português brasileiro sobre outres, forasteires contra a norma classista, racista, cis-heterosexista e capacitista. Traduzir naquela conjuntura editorial — o livro em si, as editoras em questão, nossa ética de tradução — possibilitou escolhermos essa linguagem, que não costuma ser permitida no meio editorial — mesmo as identidades não binárias e as várias formas de torcer a linguagem existindo há muito tempo.

Quatro anos se passaram e o debate avançou, mas a prática também enfrentou enorme resistência e ainda enfrenta desafios. A desconsideração e a invisibilização da existência não binária é só uma das expressões da transfobia estrutural e institucional, a mesma que impede o acesso de pessoas trans aos mais diversos empregos e aos direitos civis de uma vida digna, que as isola de relacionamentos e redes de apoio e as agride e mata. Sabemos que a linguagem é apenas um dos elementos de tantas mudanças sociais que precisam acontecer, mas não menos importante, pois é constitutiva de sua manifestação. É por isso que precisamos falar sobre linguagem não binária também em tradução.

Sintaxe opressora

Sucintamente, podemos dizer que a linguagem não binária propõe novos itens lexicais (os termos criados por pessoas não binárias) e uma outra sintaxe, incidindo nos morfemas marcadores de gênero (-o/-a) para incluir uma terminação não binária, isto é, nem gramaticalmente feminina, nem masculina. Em vez de todos e todas, todes. Essa linguagem inclui pessoas não binárias, mas também desmantela uma sintaxe opressora que divide as formas de falar sobre o mundo em palavras marcadas pelo feminino e pelo masculino. Como afirma o linguista Danniel Carvalho: “Gênero, como as demais categorias gramaticais, é apenas uma ilusão, ou emprestando de Roman Jakobson, uma ficção técnica, ou, ainda, um delírio de uma lógica genealógica eurocêntrica, nas palavras de Maurice Olender”.

A atribuição de gênero às palavras, que têm ressonâncias cognitivas com relação ao gênero como categoria da experiência social, é uma convenção arbitrária. Linguistas afirmam que mudanças gramaticais no nível lexical (novas palavras) são mais fáceis de serem incorporadas do que as que ocorrem no nível sintático (outras formas de flexionar palavras). No entanto, se não nos colocarmos ativamente diante da linguagem, a norma calcada em opressões estruturais prevalecerá. E todes saem perdendo.

O uso do gênero gramatical masculino como neutro é uma estrutura machista de várias línguas

Ao considerar as demandas da tradução, essa questão se desdobra. No artigo que escrevi com Olga Castro para o ainda inédito Estudos de tradução & questões LGBTQI+ (Devires), afirmamos que em algumas línguas, como o inglês, a marcação de gênero se restringe a pronomes e alguns poucos substantivos. Em outras, como a nossa, afeta pronomes, substantivos e adjetivos. Em inglês, não há diferença entre todas, todos e todes, sempre é everyone. Em outras, como o polonês, até verbos têm flexão de gênero. Nessas diferenças entre línguas, encontramos uma tensa negociação de visões de mundo.

Não é possível fazer uma orientação geral para uma tradução não binária, cada relação entre línguas integrará complexidades próprias de seus contextos e da finalidade da tradução. O que ressalto aqui é a necessidade de uma sensibilidade crítica e uma intervenção ativa sempre que possível para não reproduzirmos padrões linguísticos opressores. Mas podemos falar sobre as possibilidades do português brasileiro elaboradas por pessoas não binárias, sejam elus ativistas, artistas e/ou pesquisadories, para que todes possam se acostumar com elas.

Para começar, não existe apenas uma proposta de linguagem não binária, mas inúmeros sistemas de pronomes — ile, elu, ili, elo e assim por diante — como no inglês — em Gênero queer, por exemplo, Maia Kobabe prefere os pronomes Spivak, no qual he, she, his, him e her são substituídos por e, eim, eir. Como dissidências de gênero, não existe o desejo de que se formulem regras rígidas e sim que haja abertura para outras formas de expressão.

Hoje no Brasil é comum o uso do pronome elu, mas muites usam ile e outras variações. Encontramos os sufixos -e, -u e -i como possibilidades de escapar do binário -a/-o. Nos plurais usa-se -ies para evitar o -es masculino (como em “professores”). Assim, encontramos: “elu é muito queride”, “minhes amigues estão animades” ou “es tradutories estão atentes”.

Nos últimos anos, a linguagem não binária tem sido mais adotada quando os textos traduzidos envolvem personagens que assim se identificam, como em textos literários e séries de plataformas de streaming. A Netflix conta atualmente com um “Guia de linguagem não binária em português do Brasil” para a legendagem e dublagem. Porém, essas estratégias ainda se restringem a casos que envolvem personagens dissidentes de gênero. Fora desse contexto, ainda impera o uso do masculino genérico — o uso do gênero gramatical masculino como representante do neutro, o que é uma estrutura machista de várias línguas, como a nossa — e do binário gramatical.

É fundamental adotarmos linguagem não binária em nossas páginas, vidas e também entre diferentes línguas, amplamente, para que todes possam existir também por meio das palavras.

Quem escreveu esse texto

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