Política,

A farra dos robôs

Notícias e perfis falsos, políticas públicas vacilantes e ambiguidades da Lei Eleitoral prometem eleições agitadas em 2018

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Melvin Redick era só mais um simpatizante de Donald Trump em Harrisburg, na Pensilvânia, Estados Unidos. Bastante ativo nas redes sociais, seu perfil no Facebook não levantava suspeitas: na foto, lá estava ele sorrindo ao lado da filha. Como muitos americanos, Melvin compartilhou o link para um site que expunha e-mails e informações prejudiciais à Hillary Clinton e a outras figuras da cena política, dizendo que ali estava “toda a verdade escondida” sobre a então candidata democrata.

Todos temos uma verdade escondida. A de Melvin Redick era o fato de que ele nunca existiu. A pessoa na foto não era Melvin, mas Charles Costacurta, um vendedor de Jundiaí (SP). A farsa foi descoberta por alguém que notou um elemento incontestavelmente brasileiro na foto do perfil: a tomada de três pinos. Com as imagens de Charles, a página foi criada para espalhar desinformação e controvérsias na rede.

Perfis falsos não são novidade. Através de robôs ou de contas criadas com a identidade de terceiros e operadas por humanos, circula desinformação nos debates políticos mais controvertidos. Com uma programação simples e várias opções disponíveis na internet, os robôs em redes sociais podem ser instruídos a sempre retuitar postagens de um perfil, aumentando artificialmente uma polêmica. Quanto mais sofisticados se tornam os “bots” sociais, usados por empresas para finalidades como o atendimento a clientes, mais parecidos com humanos vão ficando os robôs no debate político.

Vladimir Putin disse à imprensa estrangeira, em evento em São Petersburgo, não acreditar que hackers possam alterar de modo significativo o cenário eleitoral de outros países. Todavia, interpelado sobre a hipótese de terem impactado a eleição presidencial americana, Putin disse que “hackers são pessoas livres, como os artistas que acordam de bom humor e vão pintar”, e completou “eles acordam, leem algo que está acontecendo nas relações entre Estados e, se tiverem inclinações patrióticas, podem tentar dar a sua contribuição na luta contra aqueles que falam mal da Rússia”.

As acusações de interferência russa nas eleições marcaram o primeiro ano de mandato de Trump. Com o avanço das investigações, empresas de tecnologia entraram de vez no campo de atenção do Congresso. Uma audiência pública com o objetivo de desvendar as táticas de desinformação reuniu Facebook, Google e Twitter em um debate acalorado com os parlamentares.

O Facebook revelou que 126 milhões de americanos (quase metade da população) visualizaram propaganda paga com dinheiro russo durante as eleições. As peças não raro procuravam prejudicar a candidata do partido democrata e fomentar a desinformação. Um anúncio, por exemplo, dava instruções sobre como votar de casa, por SMS (o que não é permitido nos Estados Unidos).

Os provedores podem remover conteúdos, mas como remover vídeos que circulam por aplicativos de mensagem?

Ainda segundo o Facebook, a empresa russa Internet Research Agency (IRA) postou cerca de 80 mil mensagens com objetivo de gerar polêmica, alcançando 29 milhões de pessoas entre janeiro de 2015 e agosto de 2017. Elas se espalharam ao serem curtidas, compartilhadas e seguidas por usuários reais. A empresa afirmou ter deletado do Instagram mais de 170 contas que, juntas, postaram cerca de 120 mil conteúdos ligados à tarefa de desinformação. No Twitter, mais de 131 mil mensagens tiveram a origem identificada em campanhas russas. No YouTube, mais de mil vídeos.

Nas audiências públicas, foi revelado que a ira teria conseguido até organizar um protesto e sua manifestação contrária para o mesmo dia, hora e local em Houston, no Texas, em maio de 2016. O primeiro protesto, chamado “Parem com a Islamização do Texas” foi organizado pelo Coração do Texas, grupo do Facebook com mais de 250 mil seguidores. Um antiprotesto foi marcado para o mesmo local por perfis controlados por usuários russos através do grupo “Mulçumanos Unidos da América”, com 300 mil seguidores na rede social.

Será importante acompanhar os acontecimentos depois das audiências públicas. Se, por um lado, não se consegue afirmar o quanto esses episódios foram decisivos para a eleição, a sua mera existência e o debate que gerou apontam para a necessidade de compreender melhor a relação entre internet e campanhas eleitorais. 

Vídeos no WhatsApp

“Oi pessoal desse grupo de WhatsApp.” Com essa frase, Aécio Neves, então candidato à presidência, abria um vídeo que circulou intensamente a partir de 9 de outubro de 2014. Filmando com o celular na posição vertical, o candidato procurava se comunicar diretamente com os eleitores usando o aplicativo mais baixado pelos brasileiros. O vídeo viralizou e, no segundo turno do último pleito, anunciou o tom das eleições de 2018.

Vídeos compartilhados certamente terão destaque. Candidatos (e eleitores) devem produzir conteúdo com mensagens eleitorais que vão dominar a discussão dentro e fora da rede. A reforma da Lei Eleitoral para 2018 trouxe como novidade a possibilidade de propaganda paga na internet, através do impulsionamento de conteúdo, para que mensagens políticas sejam mais visualizadas, tanto nas redes sociais como em provedores de busca. A propaganda eleitoral impulsionada deve promover o candidato e suas pautas, além de se abster de ataques a adversários. Mesmo com essa limitação, é possível a criação de narrativas para convencer o eleitor de que certo candidato é a melhor escolha. E se os fatos narrados não forem verdade ou atingirem terceiros?

A Lei Eleitoral afirma (no artigo 57-B, §4º) que o provedor na internet deve ter um canal de comunicação com os seus usuários para receber denúncias, e que não responde pelo conteúdo impulsionado pelos candidatos. Só com ordem judicial o provedor poderá ser responsabilizado, caso não retire o conteúdo do ar. O mesmo raciocínio já existe de forma geral no Marco Civil da Internet.

Isso não impede que, uma vez notificados pelos usuários, os provedores removam o conteúdo impulsionado caso ele viole os termos de uso da plataforma. Não são obrigados a remover antes da ordem judicial, mas podem fazê-lo, como já acontece com qualquer material. Mas como remover os vídeos que circulam por mensagens instantâneas? No caso de ataques à honra de um candidato, há como evitar que ele circule? Não existe bala de prata que retire o vídeo da rede. Os aplicativos em geral são criptografados e não armazenam conteúdo, de modo que os materiais enviados só sejam acessíveis para o remetente e seus destinatários.

Um artigo (57-I) da Lei Eleitoral prevê a indisponibilização do acesso a conteúdos na rede, que pode ser determinada pelo Poder Judiciário, a pedido de candidatos, partidos ou coligações. Acontece que o parágrafo segundo do mesmo artigo explicita que o provedor, uma vez condenado, deve informar aos usuários que a indisponibilidade do serviço se deu por desobediência à legislação eleitoral. Ora, “indisponibilidade de serviço” é diferente de tornar “o conteúdo indisponível”. Estaríamos rumo a uma nova crise de bloqueio de aplicativos?

Uróboro eleitoral

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal está para decidir sobre a questão do bloqueio de aplicativos no Brasil. A última ordem judicial que interrompeu o aplicativo WhatsApp foi revertida por decisão do ministro Ricardo Lewandoski em 2016, mas ainda resta ao tribunal analisar duas ações em curso sobre o tema.

Outro destaque da Lei Eleitoral é a possibilidade de o direito de resposta ser exercido na internet. Para as redes sociais, a Lei deixa claro que a resposta deverá ser postada pelo usuário ofensor. Caso a ofensa tenha sido amplificada por um impulsionamento, a resposta deverá ser impulsionada de forma equivalente.

Não raro há abuso no exercício do direito de resposta, gerando nova ofensa, que geraria novo direito de resposta. Esse uróboro eleitoral pode se acirrar na rede. Antes mesmo da popularização da internet, os tribunais já se viam às voltas com casos semelhantes. Em um dos mais folclóricos, o Superior Tribunal de Justiça considerou que o ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola teria abusado do direito de resposta. Ao ser acusado, em 1998, pelo ex-prefeito Cesar Maia de criar uma associação alcunhada “fetranscoca”, numa alusão ao narcotráfico, Brizola teve concedido o direito de resposta, que usou para qualificar seu ofensor como “pessoa sem caráter, que foi puxada pelos fundilhos das calças, um ‘desequilibrado’, ‘traidor’ e ‘fascista’”. O próprio STJ reconheceu que os predicados “transbordam os limites dos direitos de resposta e manifestação do pensamento”. Ambos terminaram condenados.

A vedação ao anonimato prevista na Constituição volta e meia é lembrada como argumento para proibir discursos na rede. Mas a regra constitucional não parece ter o sentido de obrigar que, ao lado de uma manifestação do pensamento, exista a identificação do autor. O que busca o mandamento constitucional é garantir os meios de gerar a identificação e consequente responsabilização.

O Marco Civil da Internet determina que os provedores devem guardar dados que permitam a identificação do dispositivo usado para postar fotos, vídeos e textos (número de IP, data e hora). Mesmo que esteja por trás de um perfil falso, consegue-se chegar ao autor da mensagem. É possível que o debate sobre o anonimato volte com força nas eleições de 2018. Será cada vez mais importante diferenciar o que é discurso anônimo (e vedado) daquele que se vale de pseudônimos. Não é por deixar de ter a autoria publicamente identificada que a mensagem será considerada anônima. Internet é rede de liberdades, mas também é rede de controle. Cada acesso, postagem ou comentário deixa rastros.

Ótica militar

Recentemente, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, anunciou que o combate às notícias falsas seria realizado durante o período eleitoral por um grupo de trabalho que une Exército, Polícia Federal, Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e outras entidades. A ótica militar, evidente no pronunciamento, chamou a atenção. É verdade que notícias falsas e desinformação podem desempenhar um papel relevante em eleições, mas será que a guerra contra esse fenômeno precisa ser levada ao pé da letra?

Talvez motivado pelo debate nos EUA e na França a respeito de manipulação russa em eleições, o ministério sugeriu, pelo que foi noticiado, o monitoramento de notícias falsas na rede. Seria o Exército o melhor agente para liderar o combate às notícias falsas? Parece faltar, no debate brasileiro, a valorização das experiências multissetoriais que tornaram nosso país conhecido no circuito internacional sobre governança da rede. O Comitê Gestor da Internet e o próprio processo de criação do Marco Civil da Internet indicam que os mais diversos atores devem tomar parte na construção da regulação e da governança da rede.

Na esfera privada, as plataformas se esforçam para conter a profusão de notícias falsas. Após as audiências públicas nos EUA, algumas empresas se comprometeram a criar meios que permitam a todos identificar quem pagou pela propaganda eleitoral impulsionada. É um primeiro passo. Questiona-se ainda a necessidade de ajustar o algoritmo de relevância das notícias nas redes sociais de forma a degradar ou suprimir conteúdos e fontes ligados às fake news.

Não se trata só de combater notícias falsas, mas de saber como robôs podem ser identificados e removidos

Duas perguntas surgem: por que as redes se tornaram um ambiente tão fértil para as notícias falsas? Como superar esse desafio? A primeira questão em parte pode ser explicada pela economia do clique — o estímulo para que notícias sejam chamativas, provocativas e induzam ao clique, já que é o acesso a páginas que gera remuneração. Uma peça relevante do quebra-cabeças foi a descoberta de que um grupo de jovens da cidade de Veles, na Macedônia, teria criado parte significativa das propagandas e sites que atiçavam eleitores de Trump. Usando os estímulos a notícias sensacionalistas, os Veles Boys se valeram da economia do clique para gerar patrimônio rapidamente a partir da baixa reflexão sobre o que é disponibilizado nas redes sociais. Assim, notícias falsas como a prisão de um parente de Obama, ou ainda a revelação de mais uma prova de que Michele Obama seria homem, receberam muitos cliques.

Quanto ao cenário brasileiro, segundo pesquisa recente da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV, 11% do debate travado no Twitter nas eleições de 2014 teve origem em robôs. Não se trata apenas de combater notícias falsas, disseminadas por perfis falsos (e operados por trolls), mas de ser capaz de identificar robôs e, se for o caso, desativá-los.

Resta a segunda pergunta: como resolver o problema? As eleições de 2018 no Brasil serão as mais digitais da história. Garantir que as notícias falsas não ganhem protagonismo é uma questão-chave. Mas isso não será alcançado só com monitoramento governamental ou por medidas unilaterais por parte das plataformas. O momento para a coordenação de esforços é agora. Os meses que antecedem o período eleitoral são cruciais para que esse diálogo aconteça.  

Quem escreveu esse texto

Carlos Affonso Souza

É diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (itsrio.org) e professor de história do direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.