Política,

A contrarreforma psiquiátrica

O movimento antimanicomial no Brasil é um dos mais ativos no mundo, mas as conquistas são lentas e os percalços, constantes

01maio2022 | Edição #57

O eixo monumental do Distrito Federal amanheceu avisando em seu asfalto: “Manicômios ainda existem”. A longa faixa cinza que atravessava a pista central era acompanhada pelo tecido branco pendurado em uma das passarelas de Campinas (SP), que reivindicava: “Por um sus sem manicômios”. Na Zona Leste da capital paulista, os bairros de Itaquera e São Mateus acordavam com o grito de “Contra todas as formas de manicômios”, firmado em letras vermelhas e pretas que contrastavam com o pano amarelo que servia de fundo. As manifestações de 18 de maio de 2021 marcavam mais um Dia Nacional de Luta Antimanicomial. 

O movimento que dá nome às lutas aglutina, desde a década de 80, coletivos que se organizam em torno de denúncias de torturas e maus-tratos vivenciados em hospitais psiquiátricos e asilos manicomiais, no passado e no presente. Eles apresentam proposições e novas alternativas para o cuidado em saúde mental voltado para pessoas com transtornos mentais e sofrimento psíquico, expandindo proposições de ações que garantam o bem-estar coletivo e a democratização das cidades, dos serviços e das instituições.

Ao longo de décadas, o movimento antimanicomial no Brasil construiu um dos mais importantes processos de Reforma Psiquiátrica do mundo, reunindo forças na produção de documentários, livros, exposições, blocos de Carnaval e grupos musicais que aproximaram a sociedade da loucura a partir de uma relação não mais vinculada ao perigo e à desrazão, mas à beleza e à arte. Essas iniciativas se conjugaram com inúmeros projetos de cooperativas e geração de trabalho que possibilitaram a formação de profissionais e garantiram a renda de pessoas que antes eram excluídas dos mercados formal e informal. 

Frantz Fanon na encruzilhada

No âmbito institucional, o país vivenciou a implantação de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial, dispositivos territoriais voltados para a atenção psicossocial grupal e comunitária, de base interdisciplinar. A esses serviços — em diferentes modalidades (adulto, infantojuvenil e voltado para as demandas de álcool e outras drogas) — somaram-se o Programa de Volta para Casa, os Serviços Residenciais Terapêuticos, os Leitos de Atenção Integral em Hospitais Gerais, as Unidades de Saúde da Família, os Consultórios na Rua, os Centros de Convivência, o SAMU e outras estruturas sanitárias públicas que passaram a se qualificar e se articular em torno de uma assistência em saúde mental estruturada a partir da construção de recursos para os indivíduos e suas famílias. 

Contradições

São conquistas importantes, mas vêm acompanhadas de contradições. Entre elas, nos anos 2000, a chegada das Organizações Sociais, que concretizaram arranjos contratuais com o setor privado e que prontamente representaram uma série de assédios trabalhistas. Nos anos seguintes, houve o financiamento público das Comunidades Terapêuticas, espaços majoritariamente religiosos e que, baseados na promessa da “cura das drogas”, foram alvo de uma série de denúncias de tortura, excesso medicamentoso, retirada de bebês, desrespeito à identidade de gênero e liberdade religiosa, trabalho forçado e violência física.

O golpe institucional que assolou o país alcançou o setor como um tsunâmi, fazendo com que movimentos sociais e intelectuais chamassem de Contrarreforma Psiquiátrica o completo redirecionamento da política de saúde mental até então em curso, especialmente por meio de medidas já apresentadas pelo governo de Michel Temer e que se aprofundaram após a eleição de Jair Bolsonaro. Nesse cenário (acompanhando a invisibilização de números de outras áreas), os dados oficiais deixaram de ser publicizados, como antes era garantido pelo documento Saúde Mental em Dados, informativo do Ministério da Saúde ausente desde 2015. Apesar disso, o Painel Saúde Mental — publicado em 2021 pela organização Desinstitute a partir de uma série histórica de gastos federais — comprova o aumento do financiamento de espaços asilares e o desinvestimento na rede de serviços territoriais. Entre elas, especialmente as ações voltadas para a geração de trabalho e renda e aquelas que se direcionavam à arte e à cultura passaram a se esvaziar, juntamente com a tentativa de descaracterização dos serviços residenciais.

Em 2019, 77% dos espaços psiquiátricos utilizavam contenção mecânica sem justificativa clínica

Após a suspensão da avaliação de espaços psiquiátricos asilares em 2014, quando cessou o Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares em Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), uma inspeção realizada em 2019 pelo Conselho Federal de Psicologia, em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Ministério Público do Trabalho e o Conselho Nacional do Ministério Público, fez achados alarmantes: 62% dos espaços visitados não garantiam alimentação suficiente e 77% dos locais utilizavam contenção mecânica sem justificativa clínica, que vinha acompanhada de impedimentos aos pacientes, como banhos de sol e comunicação com familiares.

No momento de fechamento deste texto, em um cenário de tantas perdas e precariedades, encontramo-nos também na semana de comemoração dos 21 anos da Lei 10.216 — conhecida por reformular a antiga legislação de saúde mental brasileira e abrir caminho para portarias e programas de desinstitucionalização. Neste 2022, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial lança o desafio da retomada das ruas, dos atos, das passeatas e do reavivamento das faixas e dizeres nos espaços públicos. 

É neste instante também que me lembro de uma manifestante, em uma ação de 2014, com um cartaz:  SOU A FAVOR DO CAPS, PERDI MINHA JUVENTUDE EM MANICÔMIOS. Sua memória também não deixa de nos reavivar o atual fortalecimento de associações de usuários e familiares, as iniciativas inovadoras que tomam os serviços e o renascimento das conferências populares de saúde mental, que estão ampliando a pauta da saúde mental por meio de conferências de mulheres, da população negra, dos povos indígenas e da população em situação de rua, entre tantas outras. Na Reforma Psiquiátrica brasileira, ainda há muitos e muitas que seguem firmes se organizando a partir da palavra de ordem que, há anos, se aglutina em: “Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais”.

Quem escreveu esse texto

Melissa de Oliveira Pereira

É co-autora de Luta antimanicomial e feminismos (Autografia).

Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.