Literatura em língua francesa, Meu Baudelaire,
Charles Baudelaire e a moda
O poeta francês foi um dos primeiros pensadores a encontrar na moda um sentido maior de modernidade dos tempos
14jul2021 | Edição #47Considerado um marco na história da arte e das ciências humanas, em “O pintor da vida moderna”, publicado no Le Figaro em 1863, Charles Baudelaire analisou as aquarelas de Constantin Guys (1805-1892), artista que, mantido anônimo pelo poeta, até então havia recebido pouca atenção da crítica por se dedicar à crônica cotidiana.
Dos cafés luxuosos da nova burguesia aos ambientes mais mundanos, Guys registrou a vida ordinária da cidade de Paris — que sofria transformações urbanísticas radicais, sob o comando do Barão de Haussmann —, sempre privilegiando o retrato de situações agradáveis, aparências e hábitos correntes da sociedade parisiense.
Qual seria, então, o interesse de Baudelaire, que dedicou a vida a uma arte tão sofisticada como a poesia, por assuntos considerados fúteis, como a moda, a maquiagem, as carruagens?
O trabalho de Constantin Guys captava as mudanças que estavam ocorrendo no momento, às quais a arte tradicional não daria conta de representar de pronto. As reformas das ruas, a multidão, a velocidade, chapéus e penteados femininos, doces enfeitados nas vitrines luzidias, amores fugazes dos passantes: nas transformações materiais da cidade de Paris, mudanças espirituais se operavam e estas foram pressentidas por Baudelaire, que colocou a moda no centro da discussão sobre a modernidade e tornou a cidade a personagem principal de sua poética.
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Tratou da vida real e de suas misérias, muitas vezes abandonando temas caros à tradição da poesia, como o amor idealizado ou a natureza. Investigou a artificialidade, as desigualdades sociais e a crueza do cotidiano humano, no cenário proporcionado pela cidade mutante. A sólida Paris, naquele momento, mostrava-se vulnerável. Se tal símbolo de tradição desmanchava-se sob seus olhos, o que seria, então, perene?
Baudelaire se inclinaria a investigar a “beleza de circunstância”, temporal, fugaz
Baudelaire foi sempre um rebelde. Viveu de maneira pouco ortodoxa e dedicou-se de corpo e alma às suas convicções nada convencionais. E é a partir da descoberta da fragilidade da tradição que Baudelaire estabelece novos parâmetros para a apreciação artística, já que a modernização da vida também alteraria a alma e a percepção dos indivíduos.
Se a beleza valorizada até aquele momento era a “beleza geral”, eterna, clássica, Baudelaire se inclinaria a investigar a “beleza de circunstância”, temporal, fugaz, cujo valor está colado no tempo real do acontecimento, no agora. Daí a definição da modernidade e a nova concepção de beleza: “A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável (…)”.
Mundo moderno
O poeta foi um dos primeiros pensadores que encontraram na moda sentidos mais amplos do que aqueles da frivolidade e do luxo. Baudelaire discutiu a moda de forma a colocar o assunto no plano da estética e da cultura, permitindo estabelecer relações que até então não haviam sido aventadas. Para ele a moda tornou-se um signo que traduzia a emergência da vida moderna.
Sua poesia e sua prosa poética refinadas nos permitem experimentar emoções profundas, e, sobretudo nos ensaios críticos, também podemos perceber que os sinais emitidos pela moda viabilizam uma compreensão aguda dos movimentos da sociedade e da transitoriedade da vida.
Criada para ser exibida e admirada, a moda é uma manifestação efêmera por definição. Subproduto do capitalismo, a moda do século 19 reflete a riqueza das classes ascendentes e hegemônicas. É um símbolo da superação da natureza e termômetro do progresso individual. Evidencia a exclusão e concretiza sonhos. Marca a passagem do tempo, cristalizando estilos e salientando a decadência. Se a moda se revela no plano material, com suas golas e mangas, seus tecidos adamascados e suas amplitudes excêntricas, seu significado maior habita o intangível.
Outro aspecto da moda sobre o qual Baudelaire refletiu foi a artificialidade. Presente em toda a sua poesia, o choque entre a natureza e o artifício também está presente na seção “Elogio da maquilagem”, onde o poeta defende que a natureza seja transformada pela capacidade humana de criação, por seu pensamento e sua imaginação: “Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo”. Dessa maneira leva-nos à conclusão de que a beleza moderna, como a cidade moderna, necessita de uma construção artificial, para se realizar plenamente.
Se, por um lado, a moda nos mostra uma face banal e corriqueira, por outro, ela pode vir a oferecer sentidos mais densos para a compreensão das experiências humanas
Se, por um lado, a moda nos mostra uma face banal e corriqueira, que pode nos levar a discursos fúteis e vazios, por outro, ela pode vir a oferecer sentidos mais densos para a compreensão das experiências humanas, já que sua linguagem pode ser percebida como um elemento significativo na construção da estética e da identidade de uma sociedade. Perceber a moda como um acontecimento vivo, do tempo presente, deu a Baudelaire um ponto de vista original para encarar as manifestações estéticas. Naquele momento era urgente desvencilhar-se do passado e abrir lugar para o novo, embriagando-se com a realidade que pulsava.
Assunto polêmico, que até hoje incita debates calorosos, em sua defesa ou contra ela, a moda ainda não encontrou um ponto sólido de sustentação. Por seu caráter premonitório e fugaz, difícil de ser contido por um campo do conhecimento, a moda é um índice da vulnerabilidade identificada com a modernidade. A moda seria, para Charles Baudelaire, um aparato necessário para separar o homem antigo, ultrapassado, do herói moderno, com sua gravata no lugar da armadura.
Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França no Brasil.
Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.
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