Memória,
Um mundo inteiro na vida
Uma homenagem à editora, tradutora e amiga Heloisa Jahn (1947-2022), que atravessou tantas histórias
13jul2022 | Edição #60Conheci Heloisa Jahn no início dos anos 80, na editora Brasiliense, quando ela já era editora e tradutora experiente e eu, uma franga de dezenove ou vinte anos cursando o segundo ano de letras na USP. Cheguei lá pelas mãos da Maria Emilia Bender, que havia sido minha professora de português no segundo colegial — ela, na época, tinha 26 anos, dava aulas de minissaia e óculos escuros e incluía na bibliografia Cortázar e Caio Fernando Abreu. Eu tinha dezesseis e fiquei fascinada por ela. Maria logo se bandeou para a área editorial. Pouco depois de entrar na faculdade, fui atrás dela em busca de emprego, louca pra ganhar meu dinheirinho e ficar independente. Maria se tornou uma mestra da vida inteira. Mas essa é outra história.
Helô entrou mais tarde na minha vida. Quase não me lembro dela na Brasiliense, onde Luiz Schwarcz era o diretor. Passei a trabalhar como assistente da Maria Emilia, na área de divulgação, escrevendo releases e textos de quarta capa. Estes dias me lembrei que o primeiro texto de quarta capa que fiz foi do livro de poemas eróticos do Verlaine, traduzidos pela Helô.
Fiquei um ano na Brasiliense. Saí para terminar a faculdade, enquanto fazia frilas para a editora PPP. No fim dos 80, Luiz me chamou para trabalhar na editora que havia criado, a Companhia das Letras. Ficava ainda na rua Barra Funda, nos fundos da gráfica Cromocart, da família dele. Depois veio mais um intervalo, em que trabalhei brevemente na editora Globo, levada pela Maria Emilia, e na Folha de S.Paulo. Durante esse período também “vivi experiências” na Europa, numa viagem que muitas moças de classe média como eu faziam, arranjando namorados e bicos de trabalho. Nesse meio-tempo a Maria Emilia foi para a Companhia das Letras. Quando voltei, ela me chamou, mais uma vez. Meu cargo era, então, de editora júnior, como se dizia. O outro “editor sênior”, além da Maria, era o Claudio Marcondes. Logo que o Claudio saiu, entrou novamente em cena a Helô, que é aonde eu queria chegar.
Helô e eu tínhamos uma diferença de idade de dezessete anos, ainda maior do que a que eu tinha em relação à Maria Emilia. Com o tempo fui perdendo minha condição de mascote e virei sênior. Formamos, a partir daí e modéstia à parte, um belo trio de editoras. Maria era a diretora editorial.
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Helô chegou de mansinho e aos poucos fui percebendo que seu jeito despretensioso escondia uma bagagem imensa. Trabalhamos lado a lado por quinze anos, durante todo o período em que ela esteve na Companhia das Letras. Quando ela saiu e virou freelancer, já estava devidamente enraizada, para sempre, no meu coração.
Um tempo depois ela foi convidada a ser editora na Cosac Naify. Em 2012 foi minha vez de sair da Companhia das Letras. Helô imediatamente me chamou: “Eu me sinto muito sozinha aqui na Cosac, sou muito mais velha que todo mundo. Vem trabalhar comigo, tem espaço para mais uma editora, vamos montar juntas uma estante de literatura brasileira”. Eu havia recebido outra proposta, tentadora, mas como resistir ao apelo da Helô, à perspectiva de trabalhar de novo com ela?
E lá fui eu rumo à Cosac, uma aventura que durou meros dois anos, pois a editora acabou fechando. Ficamos, eu, Helô e mais um bando de gente, desempregados. Ela por um tempo se culpou por ter me levado pra lá, mas era uma enorme bobagem. A verdade é que embarcamos juntas num navio que já vinha fazendo água, mas que, quisemos acreditar, estava funcionando bem. Brincávamos que éramos da turma das otárias, nunca das espertas. A experiência na Cosac não foi em vão — juntas, publicamos alguns livros maravilhosos e ali aprendi a ser mais autônoma. Helô, com seu convite, está na origem deste meu segundo momento de crescimento profissional e quiçá mesmo do terceiro, que aconteceu em 2018, quando Beatriz Bracher e eu montamos a Chão Editora.
Pura fraternidade
Muitos acham que o que nos unia era uma relação do tipo maternal. Mas era pura fraternidade. Helô era antes de tudo parceira, solidária, amiga pro que desse e viesse. Nunca me tratou com superioridade, ainda que me superasse em muitos aspectos. Acho que vibrávamos num diapasão parecido. Se sua generosidade e poder de acolhimento eram enormes e notórios, tinha também momentos de fragilidade e contava muito com o apoio dos amigos. Ser amiga da Helô era uma movimentada via de mão dupla, um processo ativo de dar e receber. Ela dominava como poucos a arte da amizade. Eu, que sempre fui uma amiga meio preguiçosa, aprendi muito com ela também a ser amiga.
Ela era uma ouvinte especialíssima. Sempre disponível e superinteligente, às vezes fazia comentários inusitados, ou até desconcertantes — como a excelente psicanalista que poderia ter sido. Mas também gostava de falar de si, de contar tantas e tantas histórias da sua vida, de dividir alegrias e aflições. Falávamos de qualquer coisa, não só de livros. Os encontros eram em geral na casa dela, o papo rolando enquanto tomávamos um vinho e ela pilotava o fogão, de onde saíam pratos maravilhosos. Havia muita risada, inclusive conversas marotas sobre sexo e antigos namorados. Entre outras coisas, ela era mestra em dar apelidos. Os meus eram, por ordem de uso: (Lucrecia) Martel, Martina (Navratílova), Martoca. Às vezes me chamava também de “mein Schatz”.
Ser amiga da Helô era uma movimentada via de mão dupla, um processo ativo de dar e receber
O privilégio de ter convivido com ela foi de ordem profissional e pessoal. Ela era um mundo inteiro na minha vida. Sem nunca termos papos de professora e aluna, aprendi, na convivência, milhões de coisas. Escrevia divinamente. Até e-mails e mensagens de WhatsApp eram inspirados. Seu senso de humor era benévolo, não corrosivo, e aparecia inclusive em mensagens para dizer que não andava muito bem: “Hoje não estou muito famosa”. Só ouvi essa expressão dela e do meu pai, português. Dele eu herdei o uso de algumas palavras lusas, que ela adorava adotar. Logo que ouviu de mim, adotou imediatamente a “pildra” (cama tosca, catre). “Já na pildra?”
Era uma paz estar com ela. Jamais foi judicativa. Uma das expressões que usava, quando eu achava que precisava me desculpar por alguma coisa, era: “Não faz mal”, com o “faz” muito escandido, à maneira gaúcha, tudo dito em um tom doce. Com ela, entendi que para ser boa profissional eu não precisava deixar de ser tímida. Vê-la em ação me dizia que eu podia ser uma editora competente, pero sin perder la ternura jamás.
Desde que ela se foi, duas músicas vêm tocando em looping na minha cabeça. Uma delas se instalou imediatamente e também pode ter a ver com o nascimento do meu primeiro sobrinho-neto, que ela comemorou comigo alguns dias antes de partir. A letra diz que “a hora do encontro é também despedida”. A outra surgiu nos últimos dias: “Depois de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo da delicadeza”. Agora, quando subo a alameda Campinas e entro na Paulista — meu caminho da roça —, parece inacreditável que ela já não esteja lá, no 19º andar do edifício São Carlos do Pinhal, sempre de braços abertos para me receber.
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.