Literatura infantojuvenil,

A invasão ilustrada da Coreia do Sul

Além do K-pop, do cinema e do streaming, onda cultural sul-coreana cresce também no mercado editorial brasileiro

01mar2023 | Edição #67

A Hallyu, a onda cultural sul-coreana, chegou ao Brasil também na literatura infantil. O fascínio pela produção do país asiático transpassou a música, a novela, o cinema, as séries, o idioma e ancorou no livro ilustrado, onde palavra e imagem percorrem itinerários imprevisíveis.

Segundo Luis Girão, especialista em literatura infantil sul-coreana e tradutor, as editoras brasileiras publicaram, em 2021 e 2022, treze títulos da Coreia do Sul, e outros sete estão previstos para 2023. Para comparação: de 2008 a 2020, os brasileiros tiveram acesso a apenas nove.

Entre os autores sul-coreanos que chegaram por aqui neste período, uma se destaca: Suzy Lee. A renomada ilustradora e teórica do chamado livro-imagem é o nome mais conhecido no Brasil. Ela tem sete obras publicadas no país: cinco livros-imagem, um título teórico e o livro ilustrado A tela de Yulu (Cai-Cai, 2021), em que assina o trabalho com o premiado escritor chinês Cao Wenxuan.

Primeiro vieram Onda (2008), Espelho (2009) e Sombra (2011), publicados inicialmente pela Cosac Naify e agora pela Companhia das Letrinhas. As obras compõem a chamada Trilogia da Margem, em que Suzy explora a margem central como estrutura narrativa. Em Espelho, por exemplo, a margem que divide a página esquerda da direita também separa o que é real (a menina) do que é reflexo (a imagem da menina refletida no espelho). 

Os autores sul-coreanos fazem uma literatura de soco, a ilustração tem um impacto físico

Esses livros também deram origem ao ensaio A trilogia da margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee, publicado pela Cosac Naify em 2012. Mais recentemente, foram lançados pela Companhia das Letrinhas Rio, o cão preto (2021) e Linhas (2022).

Suzy é uma autora reconhecida ao redor do mundo. Ela foi a primeira sul-coreana a vencer o prêmio Hans Christian Andersen, espécie de Nobel da literatura infantil — em 2022, foi laureada na categoria Ilustração. Nascida nos anos 70, estudou pintura na Universidade Nacional de Seul e fez mestrado em artes do livro na Universidade das Artes de Londres. Atualmente, mora em Seul.

Força imagética

Nos últimos anos, outra autora tem conquistado leitores brasileiros: Heena Baek. Ela estudou tecnologia da educação em uma universidade sul-coreana e animação de personagens no Instituto de Artes da Califórnia. Trabalhou como animadora nos Estados Unidos e voltou para a Coreia do Sul, onde publica livros ilustrados bastante singulares.

Por aqui, desembarcaram Balas mágicas (Companhia das Letrinhas, 2022) e Eu sou cachorro (Amelì, 2022), em que Heena utiliza nas ilustrações a mesma técnica de esculpir personagens e cenários do stop motion. Ela mesma produz os bonecos, cuida da iluminação e os fotografa, adotando ângulos inusitados. Foi justamente essa habilidade que conquistou o comitê-diretor do Alma (Astrid Lindgren Memorial Award), que concedeu-lhe a premiação em 2020.

Em Balas mágicas, o adorável menino Dong-Dong compra balas-bolinha que lhe permitem ouvir falas e sentimentos não verbalizados. Ao chupar uma bala cor de rosa que vira bola de chiclete, ouve a avó já falecida que traz uma mensagem afetuosa. Para tê-la sempre por perto, ele gruda o doce embaixo da mesa.

“Os autores sul-coreanos fazem uma literatura de soco: a ilustração tem um impacto físico. É uma literatura imaginativa, crua, quase sem verniz. Eles são diretos. Aqui temos um filtro moral que não há na Coreia do Sul”, diz Girão. Esse é um dos motivos para que parte dos livros não seja publicada no Brasil. “Tem um título, por exemplo, em que o filho se alimenta da mãe, comendo-a. Nós temos uma trava moral para esse tipo de imagem.”

Eles representam o cotidiano com poética e humor bastante característicos

Thaisa Burani, idealizadora da Cai-Cai, editora que busca trazer aos leitores brasileiros a produção oriental, concorda que pode haver uma barreira para a publicação de alguns títulos. “Há autores que abordam temas como o suicídio, que por aqui é inimaginável nos livros para crianças. A literatura não ocidental é feita de outro imaginário, outra estrutura de pensamento, outros valores.” Thaisa também lembra que muitas narrativas parecem inacabadas. “Eles não precisam de um desfecho, de um final.”

O escritor e ilustrador Roger Mello, vencedor do prêmio Hans Christian Andersen de ilustração em 2014, diz que os sul-coreanos se debruçam sobre o cotidiano e trabalham para representá-lo com poética e humor bastante característicos. “A Coreia do Sul tem uma qualidade extrema na produção visual, um diálogo com o contemporâneo.” Roger, que viajou para a Coreia do Sul pela primeira vez há quinze anos e desde então já esteve no país 24 vezes, reconhece nos autores sul-coreanos a marca de serem muito estudiosos e metódicos em seu ofício. “Eles pesquisam linguagens e cores com esmero. Buscam uma paleta que passa pela tradição e pela experiência e fazem combinações diferentes.”

Incentivo do governo
Segundo Girão, a grande leva de autores sul-coreanos pelo mundo é resultado do forte investimento governamental no desenvolvimento da cultura de uma forma geral e da literatura infantil de maneira específica. Há, por exemplo, universidades especializadas em ilustração para literatura e em livro ilustrado.

“Após a Guerra da Coreia, que dividiu o território em norte e sul, os sul-coreanos passaram a enxergar a cultura e os livros como uma forma de resistência. Nos anos 80, artistas plásticos foram chamados pelo governo para ilustrar contos folclóricos redigidos por escritores em ascensão, e a ilustração entrou em uma fase de grande destaque”, diz Girão. A participação de dois ilustradores na Bienal da Ilustração da Bratislava, em 1992, abriu as portas da Europa para os sul-coreanos. Mas foi só vinte anos depois que a Coreia do Sul entrou para o International Board on Books for Young People (IBBY), a mais importante organização internacional do livro para crianças e jovens.

“Hoje o livro ilustrado é uma forma de arte nacionalmente reconhecida na Coreia do Sul. Após serem publicadas, as obras são transformadas em exposição, musical, tema de workshop. E os autores têm reconhecimento similar ao de artistas plásticos, bem diferente do que ocorre no Brasil”, afirma o tradutor. Mello segue o mesmo tom. Diz que a arte, especialmente a narrativa, em seus mais diversos campos, é muito prestigiada na Coreia do Sul. “O país é um dos grandes motores criativos do mundo. Atualmente, o trabalho dos coreanos desperta, na Feira de Bolonha, intenso interesse, ao lado dos de iranianos, poloneses e portugueses.”

Girão é apontado no mercado como o principal promotor no Brasil dessa onda cultural na literatura infantil. Sua ligação com a Coreia do Sul começou despretensiosa, ainda na adolescência. Era o começo dos anos 2000, ele morava em Fortaleza quando ouviu pela primeira vez uma música coreana em uma daquelas máquinas de dança que ocupavam os shoppings. Curioso, se interessou pelo idioma e pela cultura.

Em 2005, reuniu-se com amigos e colocaram no ar um site para divulgar uma banda sul-coreana, dando início ao que se tornaria o primeiro veículo a tratar dessa cultura no Brasil. Junto com a faculdade de design gráfico, passou a estudar a língua. Entre 2010 e 2012, trabalhou como designer para uma gravadora sul-coreana chamada Pastel Music, de música indie. No trabalho remoto, sua missão era criar ilustrações a partir de melodias, não de letras. Foram suas primeiras traduções. A onda sul-coreana mundial explodiria, de fato, em 2012, com o alastramento do estilo musical K-pop.

Girão conheceu o trabalho de Suzy Lee em 2013, conectando seu interesse por ilustrações com a cultura sul-coreana. Seu conhecimento da língua o aproximou da autora, com quem se corresponde até hoje. Em 2014, mudou-se de Fortaleza para São Paulo para cursar mestrado em semiótica com foco no livro-imagem e, em 2016, começou a se aprofundar na literatura infantil sul-coreana, da qual se tornou profundo conhecedor.

Em 2019, passou a integrar um grupo de alunos egressos da Universidade de São Paulo (usp) que traduzia contos folclóricos sul-coreanos como forma de estudo. Esse coletivo deu origem à Ara Cultural, que conecta a produção do país asiático às editoras brasileiras, apresentando títulos e fazendo traduções cuidadosas. Desde 2020, Girão ministra na usp cursos de extensão em literatura infantil da Coreia do Sul, lotando turmas, atraindo editores e deixando dezenas de interessados na fila de espera.

Foi em um desses cursos que Isabel Malzoni, da editora Caixote, se encantou pela literatura sul-coreana e, após ouvir uma leitura entusiasmada do professor, decidiu publicar o primeiro título estrangeiro, Consegue ouvir meu coração? (2022), de Jo A-ra.

“Procuro obras que se relacionam com o universo da infância, como esse, um livro-imagem que trata de bullying e que tem forte ligação com a música. Ele não tem texto verbal, mas é cheio de sons, de provocações”, diz Malzoni. “O que me atrai é o lugar que a produção cultural e a literatura infantil têm naquela sociedade. Há um grande investimento na criação e, ao longo da história, o livro foi uma forma de resistência, de promover uma vida melhor às crianças.”

Listãozinho

Uma seleção de livros infantojuvenis de autores sul-coreanos lançados no Brasil
 

Balas mágicas. Heena Baek.
Tradução de ARA Cultural
Companhia das Letrinhas • 48 pp • R$ 64,90

Dong-Dong costuma brincar sozinho enquanto os outros meninos jogam bola. Um dia, o garoto sai em busca de novas bolinhas de gude e encontra numa loja um saco de balas-bolinha. Elas têm tamanhos, estampas e cores diferentes, o que o deixa fascinado. Em casa, Dong-Dong começa a chupá-las, e a cada bala-bolinha que põe na boca passa a ouvir do sofá, do cachorro, da avó já falecida e do pai falas e sentimentos não ditos ou demonstrados, em contraste ao seu cotidiano silencioso. 

Eu sou cachorro. Heena Baek.
Tradução de ARA Cultural
Amelì • 42 pp • R$ 70

A história foi publicada depois de Balas mágicas, mas se passa alguns anos antes e reúne os mesmos personagens: Dong-Dong, o pai, a avó e o cachorro Bolinha, aqui protagonista. A narrativa é do cão, que conta como entrou para a família, descreve um pouco do seu cotidiano e de seus sentimentos, nem sempre muito afetuosos, sobre o menino.

Consegue ouvir meu coração? Jo A-ra.
Tradução de ARA Cultural
Caixote • 48 pp • R$ 54

Nesta história narrada apenas com imagens, a autora conta um dia na vida de um menino solitário. Ele caminha até a escola, onde enfrenta uma situação de extrema violência. Sente raiva, se recolhe. No pátio, o canto dos pássaros o faz se perceber de outra forma. A partir daí, elementos musicais espalhados pelas páginas contrastam com sua solidão inicial. A obra é toda cinza, desenhada com grafite. 

A tela de Yulu. Cao Wenxuan.
Ilustrações de Suzy Lee
Tradução de ARA Cultural
Cai-Cai • 48 pp • R$ 68

O pai de Yulu queria ser pintor, mas se torna dono de uma loja de tecidos. Sem ter o sonho realizado, passa a incentivar a filha, talentosa, a pintar. Após sugerir que a menina faça um autorretrato, sai com ela em busca do tecido ideal. Em casa, ela faz uma pintura surpreendente, mas ao acordar se depara com um resultado inesperado. O enredo se desenrola nas inúmeras tentativas de Yulu conseguir o autorretrato desejado.

Rio, o cão preto. Suzy Lee.
Tradução: ARA Cultural 
Companhia das Letrinhas • 80 pp • R$ 54,90

Suzy Lee utiliza poucas frases e muitas imagens para contar a história do cão Rio, em que o preto do lápis contrasta com o branco das páginas e da neve. O cachorro tem dono, mas vive confinado em uma gaiola, com fome e sede, quando é resgatado pela vizinha. Sem espaço, ela arruma novos tutores, Montanha e Mar, que logo lhe dão o nome de Rio. Ele já não tem fome, sede nem tédio. É cuidado, amado e brica na neve. Até que Montanha e Mar precisam partir. 

Linhas. Suzy Lee.
Companhia das Letrinhas • 48 pp • R$ 54,90

No livro ilustrado, sem texto, Suzy Lee trabalha com a página dupla e brinca relacionando a linha desenhada por uma artista, com um lápis grafite, com as traçadas por patinadores no gelo. Em meio a manobras, saltos e giros no ar, os rabiscos no papel vão ganhando diversas formas.

Quem escreveu esse texto

Bia Reis

Jornalista e mestre em história e estética da arte, trabalha no Instituto Todos pela Saúde.

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.