Literatura,
Ser mulher na Coreia do Sul
Romance de escritora sul-coreana mostra o sexismo e a misoginia na sociedade de seu país e vira febre entre artistas do k-pop
05set2022 | Edição #61O livro Kim Jiyoung, nascida em 1982, da autora feminista e coreana Cho Nam-Joo, definitivamente não é uma ficção. Na realidade, a obra se assemelha mais à vida real do que o esperado, e poderia facilmente ser um retrato da vida de tantas outras mulheres, brasileiras ou não.
A história gira em torno da titular Kim Jiyoung, uma mulher comum com uma vida comum. Até mesmo seu nome é comum: foi um dos mais aplicados em meninas na Coreia do Sul durante a década de 80 — algo que poderia ser facilmente comparado às milhares de Marias espalhadas pelo Brasil.
Resumidamente, Jiyoung vive com o marido em um apartamento nos arredores de Seul e acabou de ter uma filha, no auge de seus 33 anos. Quem lê um trecho assim pode até imaginar que a protagonista é uma mulher bem-sucedida, mas toda sua trajetória até este momento lhe custou muito.
Isso porque Jiyoung precisou largar sua carreira em ascensão em uma agência de marketing para criar a filha em tempo integral, algo comum e esperado pela sociedade coreana, já que as empresas não oferecem uma licença maternidade digna (são concedidos três meses apenas, em média).
O nascimento da criança, por sua vez, não é exatamente um acontecimento natural, tampouco é algo que Jiyoung veemente deseja; é planejado entre o casal para, de certa forma, diminuir a pressão gerada pela família do marido.
Todo o estresse gerado por questões de cunho patriarcal que a silenciaram por mais de três décadas de existência enquanto sua vida era influenciada de forma direta ou indireta por isso, causa em Jiyoung uma condição incomum: ela passa a conseguir, com certa frequência após o nascimento da filha, a personificar as vozes de pessoas vivas e mortas.
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É durante essas situações que a protagonista literalmente abre espaço para as diferentes figuras femininas que passaram por sua vida e a apoiaram de alguma maneira, como uma forma de extravasar suas frustrações, e claro, conseguir escapar da realidade, mesmo que brevemente.
E por conta disso, Jiyoung começa a se consultar com um psiquiatra para se tratar. A partir das sessões de terapia, o leitor é convidado a entender melhor sua história, desde o nascimento em 1982, em meio a uma família que sempre sonhou com a chegada de um menino, até pouco depois do parto da filha em 2014.
Mas o livro não é sobre uma mulher com a capacidade extraordinária de, digamos, encarnar outras pessoas. A obra é focada, na realidade, em sua trajetória. E sobretudo, na sociedade sexista e misógina que calou a ela e tantas outras mulheres desde sempre.
A narrativa, entretanto, brilha ao retratar de forma comum justamente esse e outros problemas, na vida comum de uma mulher comum, além de instigar questionamentos em âmbito universal.
O #MeToo da Coreia
A narrativa de Kim Jiyoung, nascida em 1982, flui de forma natural. As 176 páginas voam com a leitura leve, enquanto os eventos narrados são muito bem estruturados para acompanhar não apenas a angustiante trajetória da protagonista, mas também para entregar muitas informações sobre a Coreia.
Os fatos, embasados por artigos e notícias indicados nas notas de rodapé, tornam a experiência ainda mais completa, além de contrastar bem com as situações dolorosas que Jiyoung vive regularmente.
O livro, claro, também traz recortes fortemente baseados na vida da própria autora Cho, e mostra acontecimentos com os quais mulheres de todo o mundo conseguem se identificar. Alguns trechos chegam a ser sufocantes como, por exemplo (e sem entregar muito), a sequência em que Jiyoung é perseguida e, claro, julgada como culpada pelo lamentável ocorrido.
Por onde passa, Kim Jiyoung, nascida em 1982 é indicado como uma das maiores obras da última década e, não à toa, é altamente recomendado até mesmo por idols de k-pop — um fato que rendeu ao livro até mesmo o envolvimento indireto em polêmicas com anti-feministas da Coreia em 2018.
Isso porque desde o lançamento do livro em 2016, muitos artistas da indústria de entretenimento coreano estão lendo e recomendando Kim Jiyoung, nascida em 1982. Foi o caso de Irene, do grupo de k-pop Red Velvet, que simplesmente afirmou ter gostado da obra da autora Cho, em uma entrevista.
Apenas isso foi o suficiente para atiçar a ira dos anti-feministas — um movimento, infelizmente, bastante comum na Coreia. Depois disso, eles começaram a protestar contra a cantora, queimando fotos dela em redes sociais (algo que mancha não apenas a imagem de Irene, como a da agência e a de seu grupo também).
Entretanto, isso não deu certo, pois o boicote apenas impulsionou o sucesso do livro escrito por Cho, além de conquistar outros artistas como o RM do BTS e a Sooyoung do Girl’s Generation. Os dois afirmaram em público que apoiam a obra. E as atrizes Hong Eun-Hee e Park Shin-Hye, e o comediante e empresário Noh Hong-Chul, mais tarde fizeram o mesmo.
Com toda a receptividade positiva de grandes nomes da indústria, Kim Jiyoung, nascida em 1982 poderia facilmente ser considerado um equivalente coreano do movimento #MeToo, que apoia a luta contra o assédio e agressão sexual, e cresceu viralmente a partir de outubro de 2017. Um livro escrito por uma feminista coreana que se tornou um símbolo feminista na Coreia.
A comprovação do sucesso da obra, inclusive, se dá na forma de uma adaptação para os cinemas estrelada por Jung Yu-mi e Gong Yoo (ambos de Invasão Zumbi), que estreou em 2019 sob o título Kim Jiyoung, born 1982.
Nova corrente da “onda hallyu”
É comum que quando se fala da Coreia, o termo “onda hallyu” seja citado. Explicando brevemente, o nome é usado para se referir aos quatro pilares da indústria de entretenimento coreana que têm conquistado cada vez mais admiradores pelo mundo: o artístico, o culinário, o cultural e os produtos de cuidado pessoal.
Apenas nos últimos cinco anos as produções coreanas para TV, música e cinema estão dominando os rankings, listas e premiações. É o caso do BTS e do BlackPink como maiores e mais lucrativos grupos da história da música moderna, ou do longa-metragem Parasita que marcou o Oscar de 2020 após levar a estatueta mais importante da noite como melhor filme.
O mercado de produtos de beleza e a culinária também fazem sua parte, atiçando cada vez mais entusiastas. E quando se fala em séries, o maior exemplo é Round 6, que se mantém no topo da lista das produções mais assistidas da Netflix desde sua estreia em setembro de 2021 (até o momento); enquanto os k-dramas lentamente caem no gosto do público.
E agora, é chegada a hora da literatura. O crescimento no surgimento de autores/as da Coreia nas prateleiras brasileiras é nítido e se reflete nas mais recentes demandas das editoras. E o aumento na procura pode ainda ser um reflexo das adaptações para TV e cinema.
Um bom exemplo é o k-drama Tudo bem não ser normal que, após estrear na Netflix, trouxe junto uma coleção inspirada nas publicações mostradas na série. Além disso, Pachinko, outro best-seller internacional de uma autora coreana, ganhou recentemente sua primeira temporada no serviço de streaming Apple TV+.
Leitura de milhões
Kim Jiyoung, nascida em 1982, por sua vez, já ganhou um filme e poderia facilmente ser adaptado para uma série também. Mas sendo uma criança promissora da onda hallyu, o livro é um marco por si só. E com mais de 1 milhão de exemplares vendidos em todo o mundo, fica difícil não querer conferir por conta própria como a autora Cho conseguiu capturar e cativar (muitas vezes de uma forma não agradável) tantas pessoas.
Caso você ainda não esteja convencido/a, deixo um último dado sobre o livro: a autora Cho consegue o brilhante feito de remexer o leitor com uma frustrante reviravolta. O resultado não poderia ser outro: o sentimento ao terminar a leitura de Kim Jiyoung, nascida em 1982 é de angústia, mas a raiva também gera um aprendizado que será marcado para sempre na memória de seu público.
Autoras japonesas contemporâneas abordam a estranheza de viver em um mundo moderno que ainda é ditado pela tradiçãop
Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.