Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A batalha da memória

Há cinquenta anos assistimos a um conflito entre as formas de narrar as violências da ditadura no Brasil, em que os livros são as principais armas

22abr2021 | Edição #45

Em janeiro de 1970, o papa Paulo 6º recebeu dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, em reunião no Vaticano. O tema era um dossiê que chegara às mãos do pontífice cinco dias antes: o Livre noir: terreur et torture au Brésil (Livro negro: terror e tortura no Brasil). O documento reunia relatos sobre casos de tortura e assassinato ocorridos no Brasil, que vivia naquele momento o auge da violência da ditadura militar. Dali em diante, as críticas internacionais sobre as violações dos direitos humanos no país se multiplicaram, assim como o incômodo dos militares com as denúncias. Naquele mesmo ano, o ditador Emílio Médici mandou preparar o Livro branco — um evidente contraponto ao Livre noir.

A disputa entre o relatório de d. Hélder e o contrarrelatório de Médici era o primeiro capítulo de uma história que passou pelos anos de chumbo, pela redemocratização, por toda a Nova República e chega à crise dos dias atuais. Trata-se de um conflito em torno das formas de narrar e representar o que aconteceu entre 1964 e 1985 no Brasil. Um embate pela memória sobre o passado ditatorial, em que os livros são as principais armas.

O Livro branco de Médici tinha o objetivo de alimentar os agentes da ditadura com um discurso unificado para responder às denúncias de tortura. Caracterizando os opositores do regime como “terroristas”, a narrativa construída ao longo de suas quase duzentas páginas estava sempre no limiar entre negar violência e justificá-la. Ao mesmo tempo, as críticas que circulavam em outros países eram rebatidas como se fossem resultado de uma conspiração do Movimento Comunista Internacional com o intuito de prejudicar a imagem do Brasil. Naquele início dos anos 1970, o regime estava no auge de sua legitimidade, sustentada tanto pela repressão e pela censura quanto pelo chamado “milagre econômico”. Nessa conjuntura, o livro nem precisou vir a público.

Na segunda metade da década, já no contexto da abertura “lenta, gradual e segura”, denúncias de tortura começaram a aparecer para o grande público dentro do país. Um importante ponto de inflexão se deu em julho de 1978, quando o jornal Em Tempo publicou trechos de um documento escrito por presos políticos três anos antes. Era sinal de que algo realmente estava mudando. Esses novos ventos colocavam no centro do debate político nacional uma nova demanda: a anistia. Comitês de luta por uma anistia “ampla, geral e irrestrita” foram criados em vários estados, reunindo amplos setores da oposição ao regime. Com eles, as denúncias passaram a vir acompanhadas de reivindicações sobre o esclarecimento dos crimes e a responsabilização dos seus autores.

Nascia também uma bandeira que seria desfraldada muitas vezes pelos militares: a luta contra o “revanchismo”. A expressão, que passou a frequentar os relatórios de órgãos repressivos, servia para atacar qualquer iniciativa de trazer à tona a memória e a verdade e demandas por justiça e reparação. Para as Forças Armadas, a anistia, aprovada em agosto de 1979, não devia significar apenas a garantia de impunidade: devia ser também a imposição do esquecimento.

Nunca mais

Não à toa, foi enorme a indignação dos militares quando, em 1985, veio a público o livro Brasil: nunca mais. Elaborado com apoio dos religiosos Jaime Wright e dom Paulo Evaristo Arns e financiamento do Conselho Mundial de Igrejas, a obra resultava de um audacioso projeto posto em prática por advogados de presos políticos. Clandestinamente, eles fotocopiaram todos os processos movidos contra opositores do regime que haviam tramitado no Superior Tribunal Militar (stm). O jornalista Ricardo Kotscho e o frade dominicano e ex-preso político Frei Betto ficaram encarregados de traduzir a enormidade de dados obtidos em um livro de linguagem clara e acessível.

Surgiu assim o famoso livro de capa vermelha, com título em letras amarelas garrafais, que traz, a partir de documentos oficiais, provas irrefutáveis das torturas levadas a cabo pela ditadura. Brasil: nunca mais, cuja publicação foi adiada após a morte de Tancredo Neves, veio à tona em 1985, quatro meses depois da chegada de José Sarney à Presidência da República, o primeiro civil a ocupar o cargo desde 1964. A obra se tornou um sucesso imediato e passou a ocupar as listas de mais vendidos. A primeira edição, de 5 mil exemplares, não chegou a durar 24 horas nas livrarias.

A transição era propícia para publicações sobre os anos de chumbo. Se é fato que já não havia Censura capaz de retirar livros de circulação, é também verdade que os órgãos de informação mantinham olhar vigilante sobre tudo o que era produzido. Numa demonstração de que a chegada de um civil à Presidência não representaria, por si só, grandes mudanças nas instituições, o Serviço Nacional de Informações (sni) passou a elaborar relatórios sobre o tema.

Para os militares, ‘Brasil: nunca mais’ seria a ‘pedra de toque de uma campanha revanchista mal dissimulada’

No segundo semestre de 1985, o sni produziu um relatório intitulado “Propaganda Adversa — Literatura”, no qual mencionava, ao lado do bnm, livros como Olga, de Fernando de Morais, Vlado: retrato da morte de um homem e de uma época, de Paulo Markun, e Onde está meu filho? História de um desaparecido político, escrito por cinco jornalistas. Para o sni, havia uma “promoção exagerada” desses livros em jornais e revistas. A literatura brasileira, na visão do órgão, estava “voltada para uma posição muito mais política do que intelectual ou cultural”. E Brasil: nunca mais seria a “pedra de toque de uma campanha revanchista mal dissimulada”.

Para o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, era o momento do contra-ataque. O general decidiu que as Forças Armadas deveriam retomar o que fora feito no início dos anos 1970 e retribuir as denúncias de Brasil: nunca mais com as mesmas armas. Com isso, tirou da gaveta um projeto que já existia desde pelo menos 1984 — o Orvil.

Com o nome oficial de As tentativas de tomada do poder, o Orvil — “livro” ao contrário — deveria ser o inverso de Brasil: nunca mais. Em quase mil páginas, repletas de reafirmações das fantasiosas versões oficiais para os assassinatos cometidos pelo regime, a obra apresenta três momentos em que as esquerdas teriam tentado subverter a ordem: na “Intentona Comunista” (1935), com João Goulart (1964) e com as guerrilhas urbana e rural (anos 1970). O insucesso comunista se explicaria pela atuação das Forças Armadas, sempre mobilizadas para defender a nação dos inimigos internos.

O texto afirmava que desde a derrota da luta armada estava em curso uma quarta tentativa — caracterizada como “a mais perigosa”. A novidade seria a estratégia: no lugar de armas, narrativas. As denúncias de violações dos direitos humanos seriam elemento central da nova atuação das esquerdas, e um caso paradigmático desse tipo de iniciativa seria a exploração do “suicídio” de Vladimir Herzog. O “revanchismo” ganhava, com isso, uma carga extra — era agora o centro da mais nova “tentativa de tomada do poder”. Com indisfarçável ressentimento, concluía o Orvil que “enquanto os insurgentes tiveram sempre quem lhes cantasse as façanhas em que foram vitoriosos, os mártires, os legalistas calaram-se e amargaram os apodos injuriosos”.

O general Leônidas não teve autorização de Sarney para publicar a obra, elaborada entre 1985 e 1988. Nesse ínterim, porém, dois outros livros vieram à tona e cumpriram o papel de cantar as façanhas dos militares.

Em 1986, Marco Pollo Giordani, que serviu no doi-Codi do Rio Grande do Sul, publicou Brasil: sempre. A capa era quase idêntica à de Brasil: nunca mais — em vez de vermelha, a cor do fundo era verde. O conteúdo, porém, era parecido com o do Orvil. Com o detalhe de que o militar esboçava ainda uma explicação sobre a “debilidade” do caráter do brasileiro, razão pela qual o país seria tão suscetível às ameaças do comunismo. “Penso que o negro, o índio e o mestiço, com esporádicas exceções — e lhes destacando as virtudes afetivas — são castas de rendimentos inferiores.”

O segundo livro que se propôs a responder à “campanha revanchista” foi escrito pelo ex-comandante do doi-Codi de São Paulo Carlos Alberto Brilhante Ustra. Acusado pela atriz e então deputada federal Bete Mendes(pt) de ter sido seu torturador, o militar respondeu publicando Rompendo o silêncio, em março de 1987. Embora não tenha tido o mesmo sucesso que Brasil: nunca mais nas livrarias, a obra também frequentou as listas de mais vendidos — inacreditavelmente, na seção de “não ficção”.

A despeito das mentiras e paranoias que Orvil sustentava, seus autores estavam certos em um ponto. Para a nascente democracia, a disputa pela narrativa do que fora a ditadura seria fundamental. Se o país enfrentasse o trauma e promovesse políticas públicas para acertar contas pelos crimes cometidos pelo Estado, a sociedade poderia desenvolver uma memória socialmente compartilhada de repúdio ao regime iniciado em 1964. Do contrário, se o silêncio e o esquecimento fossem o caminho adotado, então as Forças Armadas seguiriam como eternas guardiãs da lei e da ordem, capazes de intervir na vida política quando julgassem necessário.

Memória histórica

Na primeira metade dos anos 90, pesquisadores da fgv começaram a publicar obras que registravam as memórias de militares sobre a ditadura. A leitura da realidade presente em Orvil deu o tom. Na introdução de Anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão, Celso Castro, Gláucio Ary Dillon Soares e Maria Celina D’Araujo identificavam que havia uma percepção compartilhada entre os entrevistados de que “se [os militares] venceram a guerra contra as organizações da esquerda revolucionária, foram derrotados na luta pela memória histórica do período”.

O diagnóstico era tão falso quanto a versão de que Herzog teria se suicidado no doi-Codi. Quando o livro da fgv foi publicado, havia quase dez anos que os militares tinham saído do poder, e até então o Estado não havia implementado nenhuma política pública para lidar com as violências do passado. Como falar de vitória das esquerdas nas batalhas de memória?

Foi apenas em 1995 que foi aprovada a Lei 9.140, voltada para reconhecer a responsabilidade da União sobre pouco mais de cem casos de assassinatos e desaparecimentos forçados e criar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Era o início de um processo vagaroso, cujo segundo grande passo se deu no início dos anos 2000, com a criação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Perseguidos políticos e torturados foram incluídos entre os grupos aptos a receber reparação por violências do passado, ao lado de mortos e desaparecidos.

Eram avanços, mas não vitórias definitivas dos familiares de vítimas da ditadura e das organizações de direitos humanos. Pelo contrário: esses atores viam as iniciativas como profundamente limitadas. De todo modo, foram suficientes para gerar insatisfações profundas nos militares, que enxergavam nessas políticas a confirmação daquilo que já se sabia: os comunistas seguiam seu plano de tomar o poder a partir do descrédito das Forças Armadas. Era preciso intensificar a batalha da memória.

A virada do século assistiu a uma profusão de livros em primeira pessoa escritos por militares que participaram da repressão durante a ditadura

Assim, a segunda metade dos anos 1990 e o início do novo século assistiram a uma profusão de livros em primeira pessoa de militares que participaram da repressão, como mostra levantamento feito pela historiadora Clarissa Grahl em pesquisa de mestrado. Foram criadas entidades civis, tais como o Grupo Terrorismo Nunca Mais — em óbvia alusão aos Grupos Tortura Nunca Mais. Para a batalha, os militares buscaram aliados em outras áreas do debate político. Dentre eles, dois nomes se destacaram.

Na imprensa, um articulista cuja carreira começara nas páginas de astrologia passou a dedicar textos e mais textos para questionar se “não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de slogans pejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?”, como escreveu em coluna para O Globo de 19 de janeiro de 1999. Chamava-se Olavo de Carvalho. No parlamento, quem ganhou mais projeção foi um ex-militar, cuja carreira política teve início após ser acusado de ter um plano terrorista para colocar bombas em quartéis. Um dos poucos deputados a tentar barrar as leis que criaram as comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos, seu nome era Jair Bolsonaro.

O apoio também veio de dentro das próprias Forças Armadas. Em 2003, a Bibliex, editora do Exército, começou a publicar os volumes iniciais de 1964: 31 de março, no âmbito do Projeto de História Oral do Exército. Cada um dos quinze tomos, que abarcam entrevistas com quase 250 militares, vem com apresentação de Jarbas Passarinho. Atacando diretamente as comissões criadas pelo Estado brasileiro para acertar as contas com o passado ditatorial, o ex-ministro da Educação de Médici se lamentava do “revanchismo dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versão que destrói os fatos”.

Arquivos

A partir de 2005, já no primeiro mandato de Lula (pt), uma nova discussão surgiu no governo federal. Era o debate sobre a abertura dos arquivos do regime, no qual tinha protagonismo a ministra-chefa da Casa Civil, Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-presa política torturada. O tema das indenizações pagas pelas comissões federais ganhava contornos polêmicos. Juntando o ataque às reparações com críticas mais gerais a outras políticas públicas, os militares difundiam a ideia de “bolsa ditadura”.

O avanço das políticas de memória e reparação indignava o conjunto dos militares. Para um deles, no entanto, a situação parecia ainda pior. Carlos Alberto Brilhante Ustra respondia, desde junho de 2005, a uma ação na Justiça, movida pela família Teles. Cientes dos limites impostos pela Lei de Anistia, os autores do processo, que haviam sido torturados por Ustra, moveram a ação declaratória na área cível. Como era impossível buscar justiça, que pelo menos a memória e a verdade fossem preservadas.

Se o teatro de operações da nova batalha era o campo da memória, seria lá também a resposta de Ustra. Em 2006, o militar publicou seu segundo livro: A verdade sufocada. Na primeira página da obra, havia uma “Homenagem aos companheiros do Projeto Orvil”. Ao longo do livro, o torturador reproduz passagens inteiras de Orvil. “Com mentiras e meias-verdades”, escreveu Ustra para justificar a publicação do material, “órgãos da imprensa escrita, falada e televisada, partidos políticos, professores e outros formadores de opinião, vêm, há anos, deturpando os fatos e falseando a história, pois somente eles têm voz e vez.”

Embora seus fragmentos havia muito circulassem por aí, a existência do Orvil veio a público pelas mãos do jornalista Lucas Figueiredo, em 2007. No mesmo ano, uma cópia digital integral — na verdade, sem a página de número 772 — foi colocada no site do Grupo Terrorismo Nunca Mais.

Com isso, a lógica se inverteu. Naquele mesmo ano, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos fechou a primeira etapa de seu trabalho e entregou um relatório que ampliava o número de vítimas oficialmente reconhecidas de 136 para 356. O livro, intitulado Direito à memória e à verdade, trazia trechos do Orvil como forma de comprovar violações dos direitos humanos cometidas por agentes da ditadura.

A virada da década intensificou a guerra. A publicação do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (2009), o julgamento da validade da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal (2010), e, por fim, a criação da Comissão Nacional da Verdade (cnv, 2011) tiveram impacto enorme entre os fardados. Em 2013, em meio aos trabalhos da cnv, o Orvil finalmente chegou às livrarias, décadas depois de sua concepção inicial.

Mas, a partir daquele ano, o embate mudou de cenário.

É mais uma vez uma obra da fgv que nos ajuda a entender os capítulos mais recentes dessa história. Publicado no início de 2021, o livro General Villas Bôas: conversa com o comandante traz uma entrevista concedida ao pesquisador Celso Castro. No depoimento, o ex-comandante do Exército entre 2015 e 2019 deixa claro que a cnv representou um ponto de inflexão na relação das Forças Armadas com o poder civil. Para ele, havia, no contexto de atuação da comissão, um inaceitável risco de “revisão da história”.

A despeito de propalarem que as esquerdas eram vitoriosas nas disputas de memória, os militares sabiam que estavam assegurados pelo intransponível limite da anistia — como garantia de impunidade e de esquecimento. A cnv parece ter despertado neles a crença de que essa barreira poderia ser quebrada. E aqui o Orvil ressurge como verdadeira profecia autorrealizável. Se a cnv era o estágio final da tentativa de tomada do poder, seria preciso, então, trocar as armas.

A disputa que tinha os livros como armas já não tem lugar. Voltamos à velha tradição das armas contra os livros

O momento mais simbólico dessa mudança foi o dia 17 de abril de 2016, quando Jair Bolsonaro dedicou seu voto no impeachment de Dilma à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”. A declaração fez com que as vendas de A verdade sufocada disparassem — e Ustra chegou novamente à lista dos mais vendidos.

Em junho de 2020, quando Bolsonaro já era presidente, em uma das crises relacionadas à pandemia, o governo federal emitiu uma nota oficial afirmando: “As Forças Armadas do Brasil não cumprem ordens absurdas, como por exemplo a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder”. Para o grande público, os termos não diziam nada em especial. Para os leitores do Orvil, eles dizem tudo. A disputa que tinha os livros como armas já não tem lugar. Voltamos à velha tradição das armas contra os livros.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Lucas Pedretti

É historiador e doutorando em sociologia na UFRJ.

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.