Autoritarismo no sistema judicial brasileiro

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Autoritarismo no sistema judicial brasileiro

Desradicalizar a justiça passa por reformas que incidam sobre suas relações com a sociedade

01jan2025 • Atualizado em: 20dez2024 | Edição #89 jan

Em 2022, ocorreu no Brasil um dos episódios mais atrozes de violência cometida pelo sistema de justiça. Uma menina de apenas dez anos engravidou em consequência de um estupro cometido por um membro da própria família. Ao procurar o poder público para o aborto — legalmente assegurado neste caso —, a menina e sua mãe enfrentaram todo tipo de obstáculo. Tanto médicos e profissionais do sistema público de saúde quanto juízes, promotores e servidores da justiça atuaram de modo a quase impedir o procedimento. As gravações vazadas da audiência judicial, em que a menina e a mãe são interrogadas pela juíza e pela promotora, são uma aula de ilegalidades e de assédio à vítima.

Quando casos como esse são judicializados, é comum que o estupro seja naturalizado e a violência sofrida pela menina completamente esquecida diante da preocupação em proteger o feto. A juíza chega a perguntar se a menina queria, como presente de aniversário, escolher o nome do “bebê”. Não satisfeita, indaga se saberia dizer se o “pai”, estuprador, aceitaria dá-lo para adoção. Mesmo após a autorização judicial, a reação social e política insiste na deslegitimação da decisão e da norma jurídica que a fundamenta. A então ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de 2019 até 2022, respaldada por seu chefe, o ex-presidente Jair Bolsonaro, instrumentalizou o caso e pediu a abertura de investigações sobre o procedimento realizado, apoiada por manifestações furiosas de pessoas e grupos antiaborto na internet e nas redes sociais.

Não é novidade, infelizmente, a dificuldade que grupos sociais de extrema direita têm de enxergar a violência imposta a mulheres e meninas vítimas de estupros e a violação de um direito que a própria lei lhes assegura. Também não é novidade o caráter conservador e autoritário dos órgãos do sistema de justiça brasileiro, especialmente o poder judiciário, sobretudo quando interesses de grupos hegemônicos se deparam com os de grupos sociais vulnerabilizados. Há quem defenda que o Brasil vive em constante estado de exceção, que nunca viveu propriamente uma democracia.

A ascensão da extrema direita pode ter ajudado a renovar o autoritarismo das instituições de justiça

A consciência de que o autoritarismo está entranhado no funcionamento das nossas instituições políticas e na nossa própria formação não significa negar os significativos avanços da democracia e da institucionalidade nas últimas décadas. Admiti-los é importante para o devido contraste do governo Bolsonaro com os de seus antecessores e para evidenciar o desmonte de direitos promovido por sua administração. A despeito do cenário institucional de “terra arrasada”, mobilizações e resistências de atores sociais e políticos permitem imaginar realidades mais democráticas e, assim, pensar em soluções para o estado de injustiça social no país.

O episódio narrado, como tantos outros que poderiam ser listados aqui, também revela que o caráter conservador e autoritário do sistema de justiça não é homogêneo e constante. Casos assim são acompanhados não só por debates tensos na sociedade, mas por disputas no interior das instituições envolvidas. Basta pensar que, afinal, a vítima do estupro conseguiu fazer valer a lei e obteve a autorização judicial para o aborto. Mesmo assim, na última década esse jogo parece ter ganhado novos pesos e dimensões.

O contexto de ascensão política da extrema direita no Brasil e no mundo pode ter contribuído para renovar o autoritarismo histórico das instituições de justiça. O período do governo Bolsonaro não foi o início e nem o fim desse processo, mas um ponto de inflexão, que ensejou tentativas explícitas, incisivas e sucessivas — algumas bem-sucedidas — de derrubar as trincheiras montadas a partir da Constituição de 1988 para combater o arbítrio e a força ilegítimos. Difícil imaginar que o sistema de justiça tenha passado imune. Aparentemente, vemos o contrário, já que desde então a justiça retomou posto privilegiado no debate público nacional e recupera seu protagonismo na pauta acadêmica, sendo objeto de estudo de inúmeras pesquisas nas ciências sociais. Resta saber como se comporta diante do processo de radicalização autoritária que toma o país.

Supremocracia?

Algumas pesquisas responsabilizam em boa medida o sistema de justiça pelo desencadeamento da crise política recente e o recrudescimento de violações de direitos. A sanha no combate à corrupção por membros do poder judiciário e do Ministério Público, elogiada por alguns acadêmicos, também é interpretada como manifestação de populismo judicial ou da chamada supremocracia, pela qual tribunais se imputam a capacidade de ouvir e interpretar a voz das ruas, passando por cima das formas de deliberação política representativa e do debate público. Provavelmente teria prosseguido se o espraiamento desse fenômeno não houvesse causado a ruptura interpretativa de diversos outros parâmetros normativos e garantias constitucionais, fortalecendo práticas de constitucionalismo abusivo, de legalismo autocrático e de erosão constitucional.

Essas análises, esclarecedoras de comportamentos assumidos por órgãos do sistema de justiça, não são suficientes para explicar como eles têm sido afetados pelo fenômeno mais amplo da radicalização autoritária. O sistema de justiça não é simplesmente um conjunto fechado de órgãos burocráticos com funções jurídicas, integrados por profissionais de linguagem hermética que administram conflitos impondo regras de cima para baixo. 

Tribunais, Ministério Público, Defensoria Pública, magistrados, promotores, defensores, procuradores e advogados, assim como a própria Constituição, são elementos essenciais, mas não representam todo o sistema de justiça. Seus órgãos constituintes estão inseridos e em constante interação com a sociedade. Da mesma forma que regulam e conformam seu comportamento, são moldados por ela, num duplo movimento constitutivo capaz de produzir consequências das mais pacíficas e estruturantes às mais opressoras e violentas. As percepções e comportamento de cidadãos em seus cotidianos influenciam, mesmo que indiretamente, a consolidação de sistemas de justiça mais democráticos ou mais autoritários e excludentes.

Como apontou Geertz em O saber local (Vozes, 2014), o sistema de justiça pode ser visto como um sistema cultural, com a importante ressalva de não ser um mero espelho da “cultura” de uma sociedade. A cultura é heterogênea, mutável e permeada por tensões. A depender do contexto político e das oportunidades que se abrem a determinados grupos, forças sociais, políticas e jurídicas podem se autolegitimar em seus valores, abrindo espaço para a implementação de sua política de direitos.

No Brasil atual, observa-se o fortalecimento de determinados grupos religiosos cristãos e de extrema direita, que se disseminam e entram num processo de cofortalecimento com atores políticos e jurídicos estatais. Mas isso não se dá sem tensões com outros grupos, minorias subalternizadas (igualmente heterogêneas e conflituosas entre si) e com outros atores políticos e jurídicos presentes nas instituições do Estado na disputa pela interpretação do direito.

Corrosão democrática

A radicalização autoritária do sistema de justiça pode ser entendida, nesse sentido, como resultado de um desbalanceamento dessa dinâmica de interação, capaz de permitir que determinados grupos promovam a corrosão de mecanismos democráticos ou a tentativa de eliminação de grupos de vertentes distintas.

Um dos caminhos para desradicalizar o sistema de justiça seria, então, pensar em reformas que incidam não só sobre as estruturas e regras de funcionamento de instituições e atores estatais, mas justamente sobre as relações e interações que se estabelecem entre eles e a sociedade, em diferentes momentos e espaços: desde a confecção das leis até a aplicação e efetivação, nas práticas cotidianas e nas atuações institucionais. Igualmente relevante é compreender os contextos políticos que contribuíram para a abertura de manifestações e fortalecimento de concepções autoritárias, a fim de impedir a sua concretização.

Tendo por base uma concepção ecumênica de democracia — que entende o regime democrático a partir de seus aspectos tanto procedimentais quanto deliberativos e participativos —, três critérios podem ajudar na formulação de propostas de neutralização do sistema de justiça ante ameaças de radicalização autoritária: (i) o controle cívico-social sobre as instituições da justiça, (ii) a imparcialidade deliberativa de seus atores e (iii) a participação da sociedade nos espaços de construção e aplicação do direito.

Retomar o debate sobre fórmulas de controle externo do sistema de justiça parece revelar-se importante para seu fortalecimento e legitimação social, sobretudo diante das evidentes limitações do modelo atual. Já existe uma ampla literatura que analisa a experiência do Conselho Nacional de Justiça, mostrando que ele se transformou em algo bastante distinto do que se esperaria de um controle externo. Caberia compreender os pontos da resistência a esse controle e formular medidas que diminuam a desconfiança com relação a ele, pensando não só em políticas de maior transparência pública, mas de fortalecimento de órgãos como corregedorias e ouvidorias.

Mecanismos de participação social podem ampliar a consciência sobre o que faz o judiciário

Também é importante refletir sobre o que se poderia chamar de imparcialidade deliberativa dos órgãos de justiça. Esta seria um caminho para que a atuação judicial promova não apenas uma cultura jurídica de respeito à diferença, mas também formas de limitar a discriminação que os atores estatais reproduzem a partir de suas concepções e valores pessoais ao exercer suas funções. No caso que introduz esse texto, pode-se pensar, por exemplo, no acompanhamento da atuação de atores do sistema em processos que correm em segredo de justiça.

A questão da participação social, por sua vez, talvez seja o critério mais importante para reformas antiautoritárias do sistema de justiça, dado a relação direta entre instituições e sociedade. A literatura sobre populismo judicial descreve como o judiciário brasileiro tem procurado atuar como ente representativo, embora não democraticamente eleito. Nesse “faz de conta de representação”, tribunais têm, por exemplo, convocado audiências públicas para legitimar decisões em temas polêmicos, como o aborto, abrindo espaço de participação a atores sociais selecionados em suas deliberações. A despeito das críticas que se pode direcionar ao afã representativo, mecanismos de participação, com melhorias, podem ampliar a consciência pública sobre o que faz o judiciário e seus membros, impactando na formulação de controles sociais.

Ao mesmo tempo, é importante considerar algumas nuances que atravessam esses três critérios e que poderiam fomentar uma conclusão equivocada de que o que viria do Estado seria necessariamente ruim e autoritário e o que viria da sociedade seria bom e democrático. Nem o Estado nem a sociedade são entidades homogêneas e imutáveis, de modo que as propostas de reforma não devem essencializar interesses. A história já forneceu demonstrações suficientes de que a justiça popular pode ser tão ou mais violenta que a estatal, e que, por meio desta, também se pode lutar por mais direitos.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Celly Cook Inatomi

É doutora em Ciência Política.

Paulo Eduardo Alves da Silva

é pesquisador e professor da Faculdade de Direito da USP.

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Autoritarismo no sistema judicial brasileiro”