Laut,

As mortes não contadas de jovens detidos

Pesquisa joga luz sobre a letalidade de adolescentes sob custódia estatal e a precariedade de informação sobre o problema

14set2023 | Edição #74

No dia 10 de abril de 2012, o adolescente L. J. V. foi arrastado para o vestiário da quadra esportiva de uma unidade de atendimento socioeducativo capixaba, onde foi atingido por golpes de cano e chutes desferidos por outros internos até sua morte. Uma testemunha relatou que “os suspeitos estavam bem à vista do agente socioeducativo” e que “o barulho do banheiro era alto, sendo possível ouvir sons de chute”. No dia e horário em que L. foi morto, havia só um agente em toda a unidade, reflexo do encerramento do contrato temporário de seguranças para esses locais.

Além de expor a crueldade e negligência que levaram à morte de L. J. V., o caso chama atenção para a invisibilidade das violações de direitos e das mortes em estabelecimentos de custódia de jovens. Essas raramente chegam ao conhecimento do grande público, e é nesse buraco que a pesquisa “Letalidade prisional: uma questão de justiça e de saúde pública” joga luz, trazendo apontamentos inéditos sobre a letalidade e os efeitos na saúde de adolescentes e adultos sob custódia estatal.

Em tese, privar um adolescente de sua liberdade deveria ser uma medida excepcional. A legislação prevê que, nesse tipo de caso, a pessoa adolescente que comete ato infracional pode se sujeitar ao cumprimento de medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. Leis federais determinam as regras e os critérios aplicáveis à execução dessas medidas. No entanto, cada estado é responsável por definir a estrutura administrativa de seus sistemas socioeducativos: órgãos que formulam políticas e definem o emprego de recursos, a relação com as Varas da Infância e Juventude e outras praxes de proteção e produção de informações.

Segundo o levantamento, 46 jovens em privação ou restrição de liberdade morreram em 2017

Na prática, grande parte das unidades de internação de adolescentes no país tem problemas estruturais e de gestão muito semelhantes àqueles que caracterizam os estabelecimentos penais de adultos, como superlotação e violação à integridade física e mental das pessoas custodiadas. A autonomia dos estados e Distrito Federal na organização administrativa dos sistemas socioeducativos (e também dos estabelecimentos penais de adultos) reflete diretamente na produção de indicadores mínimos das pessoas adolescentes custodiadas, impactando negativamente a formulação de políticas públicas compatíveis com as necessidades pedagógicas das medidas socioeducativas.

O “Levantamento nacional do atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei” é o principal instrumento de abrangência nacional com informações quantitativas sobre a execução de medidas socioeducativas. O mais recente — com dados nacionais referentes ao ano de 2017 — revela que 26.109 adolescentes e jovens entre doze e 21 anos eram atendidos em estabelecimentos educacionais e em semiliberdade, sendo 17.811 em medida de internação (71,8%), em sua maioria, do gênero masculino. Este dado indica a primazia na imposição de medidas privativas de liberdade em relação às demais, mesmo sendo consideradas excepcionais pela legislação. O juiz só pode decidir pela internação se concluir que medidas menos severas não são adequadas ao caso e a infração for grave e reiterada ou apresentar ameaça contra alguém. Ainda assim, a prevalência da internação é notada desde o início da série histórica dos dados, em 2009, apesar da previsão legal de excepcionalidade da medida, dos problemas estruturais que caracterizam as unidades e dos inúmeros relatos de violações de direitos.

Invisíveis

De acordo com o último levantamento, 46 adolescentes em privação e restrição de liberdade morreram em 2017, o que representa uma média de 3,8 óbitos por mês. Esse é o principal registro sobre letalidade de adolescentes privados de liberdade no país, divulgadas pelo governo federal. Mas este número de mortes carece de contextualização.

Todos os números apresentados aqui são o resultado de dados enviados pelos órgãos estaduais/distritais ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A despeito dos esforços federais na reformulação da metodologia e no desenvolvimento de instrumentos consistentes de coleta de dados, a consolidação dessas informações estaduais é bastante problemática.

O próprio levantamento reconhece que vários dados repassados “apresentaram importantes lacunas de preenchimento”. Tampouco se sabe como é feita a contagem das mortes em cada unidade federativa. Não há esclarecimentos sobre período de coleta, periodicidade de atualizações, número de unidades de atendimento abrangidas, entre outros critérios metodológicos. Os relatórios mais antigos não informam o percentual total de respondentes aos formulários aplicados. Logo, não é possível saber se os dados de mortes correspondem ao total de mortos no país ou apenas àquelas indicadas pelos estados consultados. Além disso, a categorização das causas da letalidade variam entre os estados e da base nacional sobre pessoas adultas privadas de liberdade, prejudicando comparações.

Diante desse cenário, a pesquisa coordenada por Natalia Pires de Vasconcelos e Maíra Rocha Machado e financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) investigou a fundo os dados sobre registro e contagem dos óbitos de pessoas adolescentes internadas. Quase nenhuma informação é pública, o que está disponível é pouco consistente e sem padronização. Nenhum estado ou o Distrito Federal têm informações públicas sobre o total de mortes de adolescentes e suas causas (como as categorias de causas presentes em bases prisionais), à exceção de São Paulo e Tocantins, que só disponibilizam boletins de óbitos causados por Covid-19.

Além das diferenças substantivas entre os registros de mortes nas unidades da federação, no âmbito de um mesmo estado podem existir informações divergentes. Dados coletados pelo órgão gestor do sistema socioeducativo nem sempre correspondem àqueles registrados pelo Ministério Público e Defensoria Pública. E, de todas as respostas recebidas, só três estados e o Distrito Federal informaram adotar planos e protocolos específicos de notificação de doenças e agravos, bem como de prevenção e atenção ao suicídio dos internados.

Diante desse apagão de dados consistentes e confiáveis sobre o número de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, especialmente as restritivas e privativas de liberdade, fica a pergunta: o que o Estado está fazendo com seus jovens? 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Carolina Cutrupi

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.