Laut, Liberdade e Autoritarismo,
O duplo cerco à liberdade de expressão
No inquérito das fake news, o STF não diferencia uso e abuso da liberdade de expressão, mas lhe impõe um segundo cerco
19ago2020Em julho passado, Hélio Schwartsman registrou na Folha de S. Paulo que, em razão de sua ética consequencialista, torcia pela morte de Jair Bolsonaro, diagnosticado com Covid-19. O texto argumenta que a morte de Bolsonaro poderia significar a preservação de muitas vidas, além de benefícios nas políticas de meio ambiente, cultura e ciência. O ministro da Justiça pediu abertura de investigação de Schwartsman por crime de calúnia e difamação contra o presidente da República.
Pouco antes, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por dez a um, ir contra a ação proposta pela Rede Sustentabilidade que pedia o fim do inquérito das fake news. O ministro Dias Toffoli instaurou o inquérito em 2019 para investigar supostos crimes que “atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares”.
Entender os argumentos dos votos dos ministros neste julgamento ajuda a entender por que, no Brasil, um ministro da Justiça não se constrange em pedir abertura de inquérito para investigar Schwartsman. Ajuda também a entender por que, de forma frustrante, muitos no Brasil acreditam ser de fato controverso decidir se Schwartsman poderia ou não ter dito o que disse.
Faremos análise pormenorizada de duas listas de discursos que os ministros do STF apontaram como indícios de crime, ou seja, como abusos da liberdade de expressão. Um posicionamento bem fundamentado acerca da controvérsia que se instaurou em torno da legitimidade do inquérito das fake news e da maneira como o STF lida com a liberdade de expressão depende de análise do que os ministros têm ou não considerado como abuso de liberdade de expressão. A partir da leitura de muitas das manifestações dos ministros, queremos refletir sobre a cultura da liberdade de expressão no Brasil.
Discurso lícito ou indício de crime?
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Retiramos a primeira lista de discursos de decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes no fim de maio passado. Dentre outras definições, a decisão determinou o bloqueio das contas de alguns dos investigados no Twitter e no Facebook e foi executada recentemente. Nas manifestações contrárias ao STF, os ministros foram chamados de golpistas, burros e vagabundos. Eles são também acusados de matar o povo de fome, trabalhar para bandidos e de rasgar a Constituição. Segundo algumas das mensagens, Toffoli teria jogado a imagem do tribunal na lama, e o inquérito das fake news que instaurou seria ditatorial. As mensagens mais problemáticas dizem que um ministro mereceria julgamento militar por traição da pátria, e que os crimes de genocídio e lesa-pátria cometidos seriam pagos em vida.
Apesar de algumas dessas mensagens utilizarem linguagem de acusação, essas manifestações não podem ser confundidas com crimes contra honra. Ainda que alguém afirme que um ministro é responsável por “rasgar […] a Constituição”, ou que outro deva ser julgado por tribunal militar sob acusação de traição à pátria, não se pode deduzir que se atribuiu de forma falsa um crime a qualquer pessoa. Não se pode dizer que houve calúnia. Os discursos atribuem aos ministros responsabilidades genéricas, construídas com termos correntes na crítica política.
Nenhuma autoridade pública possui direito à boa reputação. Autoridades possuem direito de não terem fatos específicos atribuídos falsamente contra si. No entanto, o cidadão tem o direito de fazer críticas veementes ao trabalho das autoridades públicas: pode condenar publicamente aquilo que em sua concepção é um péssimo trabalho dos ministros; pode opinar que ministros traem suas responsabilidades profissionais e pode afirmar que um ministro do STF deveria ser julgado por um tribunal militar. Um cidadão pode ainda expressar a visão de que a Corte não compreende bem a Constituição. Embora todos tenham obrigação de se submeter às decisões do STF, que são definitivas, o Tribunal não detém o monopólio da interpretação constitucional no debate público. Qualquer pessoa tem direito de expressar um ponto de vista sobre a Constituição, ainda que seus argumentos possam ser estapafúrdios e equivocados.
Duas outras mensagens – um chamado às Forças Armadas e à “ucranização” – junto daquelas que falam em derrubar ministro, talvez possam ser consideradas de diferente categoria. Seriam mensagens que o direito brasileiro, ao se restringir equivocadamente à análise do significado das palavras do discurso, qualifica como ameaça e incitação a crime. A linguagem de convocação à ação ilícita, contudo, é corrente no debate público, inclusive em textos clássicos estudados pela ciência política (o Manifesto Comunista é um bom exemplo). Linguagem de ameaça também.
Para que as expressões possam ser punidas como crime, precisam criar situação real de intimidação, ou modificação real dos riscos de uma ação ilícita iminente. Sem essas distinções, o direito passa a operar como fiscal da civilidade e como instrumento da censura de manifestações políticas lícitas. Indícios de ilicitude são aferidos por meio de análise do contexto em que as mensagens foram emitidas. Esses indícios devem ser demonstrados antes de medidas agressivas a direitos fundamentais, como busca e apreensão e afastamento da inviolabilidade de domicílio, serem implementadas para confirmação de um possível ato ilegal.
A compreensão do contexto do discurso importa para analisar a segunda lista de fatos apontados no voto do ministro Gilmar Mendes como indícios de crime a justificar o inquérito. Esses fatos podem ser divididos em três grupos de naturezas distintas. Em um deles, Gilmar menciona incidente de arremesso de bomba na residência de um dos ministros e incidente de arremesso de objeto não especificado em membro do tribunal. O segundo grupo reúne falas em defesa do estupro e da morte das filhas dos ministros, disparo de tiro pelas costas deles e incêndio do plenário da corte com a presença de seus membros. No último grupo há alegações sobre a ligação de boa parte dos ministros ao narcotráfico internacional e de ligação de Alexandre de Moraes com organização criminosa e com plano de atentado com atirador de elite.
Os fatos narrados no primeiro grupo, se o objeto envolvido no incidente for apto a causar lesão corporal, têm clara natureza criminosa. Mas não são fatos relacionados a discursos. Por isso, não são capazes de justificar o inquérito que abarca apenas crimes cometidos via discurso.
Já o segundo grupo traz, mais uma vez, hipóteses equivocadamente classificadas como ameaça ou incitação sem análise do contexto de fala e da probabilidade de que aquilo que as palavras mencionam de fato ocorra. Por mais chocante que seja desejar que coisas ruins aconteçam aos ministros e seus familiares, os discursos devem ser interpretados como formas de externalização de sentimentos de raiva se não houver evidência adicional de que se trata de esforço efetivo de intimidação.
Palavras podem manifestar apenas desejo genérico e exasperado de que outros pratiquem crimes. Sem que haja probabilidade de que esses crimes ocorram, não se deve reconhecer nessas palavras incitação punível pelo direito. As manifestações são claramente execráveis e ofensivas mas nem por isso ilegais.
No terceiro grupo, há atribuição de fatos aos ministros que, se falsos, devem ser vistos como ilícitos por afetarem injustamente a reputação dos ministros. Diferente das acusações vagas de prática de fake news, os casos desse terceiro grupo dizem respeito a fatos falsos específicos. Um inquérito da abrangência do defendido no julgamento – que não foi instaurado para investigar este ou aquele fato, mais quaisquer fatos que preencham condições bastante amplas – é desnecessário para investigar fatos tão específicos e pontuais.
Portanto, nenhum dos três grupos de discursos é capaz de fundamentar a investigação em andamento hoje no tribunal, seja porque neles não há crimes de fala (porque desejar mal é prerrogativa do cidadão), seja porque os crimes são de outro tipo (de tentativa de homicídio, talvez), seja porque, dentre os muitos discursos investigados, há alguns que são ilícitos mas que podem ser enfrentados de modo menos espalhafatoso e autoritário.
Riscos à democracia
Não negamos que atos ilícitos contra os ministros do STF possam ter ocorrido, nem que não mereçam investigação. Grande parte daquilo que os ministros apontam como abusos da liberdade de expressão, no entanto, demonstra o deslocamento do tribunal na democracia brasileira.
Talvez vindos de um mundo em que o latinório, a mesura e a comenda preservam as pessoas da sinceridade de seus pares, ministros querem ser tratados com civilidade que cidadão nenhum tem o dever de adotar. Estão, inclusive, dispostos a preservar a própria respeitabilidade e honorabilidade por meio do direito. No entanto, em democracias reais, as instituições e autoridades não possuem direito à boa reputação. Devem construí-la por meio do convencimento ao cidadão.
As mensagens analisadas acima revelam o pressuposto de que expressões que negam a legitimidade do tribunal constituem crimes de expressão. A corte tenta nos ensinar que não é o povo quem, no debate público, forma sua opinião acerca de se o tribunal é ditatorial, genocida, se planeja golpe ou comete crimes contra a população. Em vez disso, seria o próprio Supremo quem delimitaria o conjunto de resultados aceitáveis dos debates em torno dessas questões, e ai de quem pisar fora das linhas.
Em contraste, há cerca de 220 anos, foi editada lei federal nos Estados Unidos para proteger a reputação dos Presidentes da República e das Casas do Congresso. Contra essa lei, James Madison argumentou que “é manifestamente impossível punir a intenção de levar aqueles que administram o governo a má reputação ou desprezo sem atacar o direito de livre discussão de pessoas e medidas públicas: porque aqueles que se engajam nestas discussões devem esperar e pretender excitar esses sentimentos desfavoráveis tanto quanto se pensa serem merecidos”. Em outras palavras, o que o STF hoje faz no inquérito das fake news é usurpar um aspecto do direito de expressão dos cidadãos.
O nosso ponto, porém, não é o de afastar a discussão sobre a legitimidade de abertura de inquérito pelo STF para investigação de crimes que atentam contra a existência do tribunal ou regularidade de suas atividades, em caso de omissão demonstrada de autoridades competentes como a polícia ou o ministério público. Não pretendemos contribuir para essa discussão neste ensaio. No entanto, não parece ter sido demonstrada omissão das autoridades a justificar um inquérito de amplo escopo, muito menos que o objeto do inquérito abarque apenas ameaças efetivas ao estado de direito e não críticas legítimas ao tribunal e a seus membros.
Devemos refletir sobre as consequências que a liberdade de expressão, não apenas dos críticos do Supremo, mas de todos os brasileiros, sofre nesse cenário. Nesse ponto, retomamos a iniciativa do ministro da Justiça contra Schwartsman. Se na concepção dos ministros do STF, xingá-los ou acusá-los de atentar contra a Constituição é ofensivo e, por isso, viola sua honra e o Estado de direito, a coerência leva a interpretar que alguém que defende que Bolsonaro morra expressa ideia ofensiva e por isso abusa da liberdade de expressão. O presidente da República é autoridade central no Estado brasileiro, assim como os ministros do STF.
Não se trata, por óbvio, de elogiar a atitude do ministro da Justiça. Ele usa, porém, da mesma régua aplicada pelo STF ao pedir investigação do colunista da Folha. O governo de Jair Bolsonaro mobiliza a Lei de Segurança Nacional sem constrangimentos para impor obstáculos a seus críticos, e o faz sem inovar na interpretação da liberdade de expressão em comparação ao que é feito em geral no Brasil, inclusive pelo STF. O Supremo, que deveria fornecer instrumentos jurídicos para proteger Schwartsman e quem quer que deseje a morte do presidente da República ou ministros do STF, é quem nos coloca em risco por tentar nos convencer de que age exclusivamente por motivos elevados.
A democracia brasileira passa hoje por uma crise grave que diz respeito não apenas a quem governará o país, mas a partir de quais regras: democráticas ou autoritárias. Há risco efetivo de deterioração democrática e o STF é parte das instituições ameaçadas. A nenhum democrata pode escapar que, mal ou bem, as iniciativas do Supremo têm sido bem-sucedidas em desacelerar a escalada autoritária de um governo presidido por um apaixonado pela ditadura. Ocorre que, além de lidar com este problema, o STF utiliza o instrumento do inquérito para censurar críticas, xingamentos e manifestações de sentimentos negativos.
Se há necessidade de autodefesa, isso não dispensa proporcionalidade e legalidade de meios, nem um compromisso efetivo com a liberdade de expressão.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
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