História, Política,
Macron, um itinerário intelectual
Historiador e ex-professor do presidente francês percorre sua formação, das jovens aspirações literárias ao encontro central com o filósofo Paul Ricoeur
09nov2018 | Edição #3 jul.2017A eleição de Emmanuel Macron para a Presidência da República foi um sensacional toque de juventude para a França. Apesar do clima deletério, dominado pelo decadentismo, pelos lamentos generalizados sobre o declínio e a escalada das crispações identitárias e populistas, esse acontecimento foi uma surpresa divina.
Todos os cientistas políticos consideravam maluca a aposta em Macron. Mas, à maneira de Danton e de sua audácia, nada fez Macron recuar, convencido de que podia recolocar a história em marcha. Além de suas qualidades excepcionais — as quais pude avaliar em pessoa, pois foi meu aluno na Sciences Po [Instituto de Estudos Políticos de Paris] —, o que fez a sua força me parece residir na solidez de sua formação intelectual. Seu percurso profissional e político é conhecido: graduação em filosofia e em ciência política. Diplomado em 2001, entra na ENA [Escola Nacional de Administração, que formou quatro presidentes e sete primeiros-ministros]. Sai de lá em 5º lugar em sua turma e entra no estreito círculo da elite da Inspection Générale des Finances.
Em 2007, o presidente Nicolas Sarkozy instaura a Comissão Attali, da qual ele se torna relator-adjunto, ganhando admiração das quarenta estreladas personalidades que faziam parte do comitê. Em setembro de 2008, passa a integrar o banco de negócios Rothschild & Cie, onde realiza operações particularmente felizes. Em 2010, entra na arena política e se junta à equipe de campanha de François Hollande, quando as suas chances pareciam inexistentes (ele não tinha mais do que 3% das intenções de voto). A partir da entrada de Hollande no Palácio do Eliseu, em 2012, Emmanuel Macron foi nomeado secretário-adjunto do novo presidente. Até então uma figura dos bastidores, ele já é o homem-chave do poder.
Quando é nomeado ministro da Economia no governo do primeiro-ministro Manuel Valls, em agosto de 2014, passa ao primeiro plano. Sob a luz dos holofotes, o público descobre a juventude e o talento de um jovem ministro que consegue tudo. Relegado a um escalão inferior na reforma ministerial de 11 de fevereiro de 2016 pelo premiê, que suporta cada vez menos sua crescente popularidade, Emmanuel Macron lança a sua própria corrente no dia 20 de fevereiro de 2016, com as suas iniciais em (En Marche!). Sai do governo no final do verão de 2016 e, em 16 de novembro lança, em Bobigny, sua candidatura à eleição presidencial, fixando como meta “redescobrir a esperança em nosso país”.
Escritor enrustido
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Macron insiste no papel central da avó, uma professora primária, na base de sua formação intelectual. Ele passou boa parte da infância em certa solidão, mergulhado no mundo dos livros. Sua avó lhe transmitiu verdadeira paixão pela literatura, que ocupa “um lugar central” em sua vida. Ele não cessará de dizê-lo e repeti-lo em entrevistas e encontros políticos. No livro de seu programa de governo, Révolution (XO Éditions, 2016), ele conta como a avó o iniciou, muito cedo, na leitura e na literatura. “Desde os cinco anos, era com ela que eu passava longas horas depois da escola, aprendendo gramática, história, geografia… E a ler. Passei dias inteiros lendo, em voz alta, ao lado dela, Molière e Racine, Georges Duhamel, autor meio esquecido que ela adorava, [François] Mauriac e [Jean] Giono.”
Apaixonado por literatura, o jovem Macron também amava a música. Fez dez anos de piano e obteve o terceiro prêmio no conservatório de sua cidade natal, Amiens. Seu talento nesse campo valeria ao futuro ministro o qualificativo de “Mozart do Eliseu”. Também se apaixona pelo teatro, e é por aí que ele começa uma relação com aquela que era sua professora, Brigitte Trogneux. Não somente atua, mas se dedica a escrever peças de teatro, que ele dirige em parceria com sua futura esposa.
Quando deixa Amiens e se muda para Paris, aos 16 anos, o adolescente é habitado por personagens literários e está decidido a conquistar a cidade como um herói de Balzac ou Stendhal. Com essa idade, ele já escreveu um romance epistolar sobre a civilização inca e se enxerga como escritor. Confidencia que a escrita nunca deixou de contar para ele, que gosta de repetir para si mesmo que “não põe nada acima da escrita”. Ou ainda: “Se não escrevo, não ajo”.
O futuro presidente confidenciou aos jornalistas como foi marcado para sempre pela linguagem clássica “e seu ritmo de uma sutileza infinita”, qualificada como “perfeição absoluta, cujo exemplo é, para mim, Bérénice, de Racine”. Mais tarde, ele se identifica com o herói stendhaliano Fabrice del Dongo, que se joga na estrada com uma “inconsciência arrogante”. Emociona-se, às lágrimas, pelo desespero em René de Chateaubriand e é perturbado pela descoberta de Viagem ao fim da noite, de Céline, que foi “um choque estético e emocional”; o protagonista “Bardamu nunca mais me abandonou”, declara.
A vocação precoce de homem de letras, de escritor, será no entanto contrariada pelo único revés que enfrentou em sua marcha ascencional, o da École Normale Supérieure, berço da intelectualidade parisiense.
Encontro decisivo
Sem conseguir entrar na École Normale Supérieure, ele se inscreve em filosofia na Universidade de Nanterre e na Sciences Po. É lá que ele, por meu intermédio, conhece Paul Ricoeur, que precisava de um jovem doutorando para ajudá-lo a fechar o aparato crítico de seu livro publicado em 2000: A memória, a história, o esquecimento (Editora Unicamp).
Esse encontro é decisivo e vai muito além do pedido inicial, meramente braçal: “Jamais me esquecerei das horas que passamos juntos, em Murs Blancs, em Châtenay-Malabry. Eu o ouvia. Não ficava intimidado. Era, devo confessar, por causa da minha completa ignorância: Ricoeur não me impressionava porque eu não havia lido. A noite caiu, não acendemos a luz. Ficamos conversando com uma cumplicidade que havia começado a se instalar. Naquela noite, começou uma relação única, na qual eu trabalhava, comentava os textos dele, acompanhava suas leituras. Durante mais de dois anos, aprendi ao lado dele. Não tinha nenhuma titulação para desempenhar aquele papel. Sua confiança me obrigou a crescer. Graças a ele, li e aprendi a cada dia”.
De fato, quando Emmanuel Macron encontra Ricoeur já tem grande interesse por filosofia. Já está marcado pela leitura dos clássicos: Kant, Aristóteles e Descartes. Está seduzido pela capacidade proporcionada pela especulação filosófica de modelar uma relação diferente com o mundo.
Ao mesmo tempo, começa a fazer um DEA [diploma de estudos aprofundados, equivalente ao mestrado] sobre Hegel. Sob a orientação de Étienne Balibar, a cujas aulas assiste na Universidade de Paris Nanterre, ele realiza um trabalho sobre Maquiavel, orientando-se cada vez mais na direção da filosofia política.
A preocupação de Macron é compreender
o mundo para transformá-lo. Em 2015,
ele disse que a ‘filosofia política permite
tensionar o real com conceitos para iluminá-lo’
Sua preocupação é compreender melhor o mundo para agir nele e transformá-lo no sentido de uma emancipação da humanidade: “A filosofia política permite, com efeito, tensionar o real com conceitos, iluminando-o”, afirmou em entrevista ao Le 1 Hebdo, em julho de 2015. Isso recorda a frase de Hegel segundo a qual o exercício filosófico indispensável, toda manhã, é a leitura do jornal. Na entrevista, concedida ao ex-diretor do Le Monde, Éric Fottorino, Macron assinala a importância para ele, no plano intelectual, do encontro: “Em seguida, conheci Paul Ricoeur, que me reeducou no plano filosófico”.
Marcado pelo ensino althusseriano de Balibar, Macron se liberta de suas aporias graças a Ricoeur, que o fez recomeçar do zero. Torna-se íntimo de Murs Blancs, um grande parque com diversas casas, comprado coletivamente por Emmanuel Mounier (o fundador da revista Esprit e do personalismo) e por um grupo de famílias protestantes (Domenach, Marrou, Fraisse e Ricoeur) que vivia em uma comunidade laica, formada em torno da revista.
É lá que Macron toma conhecimento do manuscrito de Ricoeur sobre a história, discute-o com ele e o informa sobre suas “notas de orientação”. Sem cerimônia, dá conselhos editoriais a Ricoeur: “Definir com mais precisão o conceito de cronosofia”. Sugere referências: “Não podemos citar, no tema do acontecimento, Paul Veyne e seu discurso inaugural no Collège de France?”. Chega a fazer juízos críticos como este, acerca da epistemologia das ciências históricas: “Refazer. Precisar, desde o início, que o senhor apresenta hipóteses, formule claramente sua escolha pela história das mentalidades”.
Enquanto Ricoeur se encontra em sua casa de férias, em Préfailles, no verão de 1999, Macron lhe escreve, em 15 de julho, uma carta que atesta a força da união entre o filósofo e seu jovem assistente editorial, que não passa dos 24 anos. Depois de lhe dar conselhos, ele acrescenta: “Não veja, no entanto, nessas reflexões nenhuma presunção: sou feito uma criança fascinada na saída de um concerto ou de uma grande sinfonia, que martiriza o piano para extrair algumas notas; por força de lê-lo, de acompanhá-lo na análise, tenho a vontade, o entusiasmo de me arriscar”.
Contribuições maiores
Tomando distância daquele momento de encontro, em 2015 Macron assinalou três contribuições conceituais maiores. A seus olhos, ele deu início a um pensamento da representação na política. Em segundo lugar, terá sido daqueles que, ao lado de toda a equipe da revista Esprit, incorporaram a questão do mal, do trágico, da violência em sua reflexão como desafio à filosofia e à racionalidade, contribuindo assim para o pensamento antitotalitário. Em terceiro lugar, sugeriu a possibilidade de uma ação que não esteja inelutavelmente submetida às relações de verticalidade e de poder. Indagado, na mesma entrevista de 2015, sobre que lições conserva de seu convívio com Ricoeur para o exercício de suas funções políticas, que são as de ministro da Economia, Macron responde:
“Primeiro, sempre conservar a liberdade em relação ao que é dito, escrito ou afirmado. Ricoeur é disciplina. De pegar, toda manhã, o lápis, a página, e se perguntar como podemos reinventar o que escrevemos, revisitá-lo, redizê-lo de outra forma. Essa hermenêutica permanente me traz muita coisa. Também aprendi com Ricoeur, pelo avesso, sobre os acontecimentos de Maio de 1968, que ele viveu como professor na Universidade de Paris Nanterre [onde os protestos se iniciaram]. Estava muito infeliz com tudo o que não tinha dito e com as decisões que não tinha tomado naquele período. A lição que tirei disso é que há uma necessidade de dizer, de afirmar as coisas, e que é preciso ceder a essa necessidade.
Ricoeur ficou muito infeliz com tudo o que
ele não disse e não fez em Maio de 1968.
A lição que tirei disso é que há necessidade
de dizer, de afirmar as coisas
“O erro de muitos foi o de se deixar intimidar pela brutalidade do momento, de aceitar não dizer e não agir. Foi Ricoeur que me levou a fazer política, pois ele mesmo não fez. Ele me fez entender que a exigência do cotidiano, que anda lado a lado com a política, é a de aceitar o gesto imperfeito. Que é preciso dizer para avançar. É uma forma de alforria em relação à filosofia: oscilamos no tempo político aceitando a imperfeição do momento.” [Tradução de Paulo Werneck]
Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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