Flip, Poesia,
Sou todo ecos
Poucos foram tão persistentes no empenho para que a poesia fizesse parte da vida cultural e tão bem-sucedidos nessa viagem toda
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Não resta dúvida: quase quatro décadas depois de sua morte, Paulo Leminski (1944-1989) continua sendo um dos nomes incontornáveis da poesia recente no Brasil. E há algo ainda mais admirável nessa constatação: o poeta curitibano não é lembrado apenas como um grande nome do passado; bem diferente disso, é uma presença viva na paisagem mais atual. A oportunidade de vê-lo agora na vitrine da Flip só confirma que a poesia de Leminski é nossa contemporânea em dois sentidos precisos: é a porta de entrada de muitos (jovens e não apenas jovens) leitores no universo da poesia e o motivo pelo qual muitos se tornaram e se tornam poetas.
Essa presença de Leminski não tem a ver com a ausência de outros grandes autores depois de sua partida. Pelo contrário, a animação vivida pela poesia brasileira desde os anos 1990, até essa efervescência mais recente — marcada por uma ampliação das vozes e perspectivas que passaram a ser representadas —, poderia ter significado o escanteamento de um poeta tão identificado com as reviravoltas dos anos 60 aos 80. No entanto, no caso de Leminski, temos visto que, se a atenção à poesia aumenta, também aumentam os holofotes sobre sua obra.
Leminski nos anos 80 em frente à Editora Criar, em Curitiba (Julio Covello/Acervo da família)
As sucessivas reedições de seus livros, o crescente interesse acadêmico por sua obra, a paixão de tantos leitores de diferentes gerações, o charme pop de sua imagem tão reproduzida em fotos e caricaturas. Não são poucos os leitores para quem a palavra “poeta” remete àquele cara bigodudo, de óculos nerds e jeito extravagante, ora vestindo camisa florida ou um quimono, ora com uma camiseta engraçada ou até mesmo pelado. Tudo isso coloca Leminski num lugar especial para um poeta num país em que tanto se repete que a poesia é para poucos, que os livros de poesia não vendem, que há mais poetas que leitores etc. Sim, podemos debater essas afirmações, mas Leminski será o contraexemplo.
Depois do lançamento de Caprichos & relaxos em 1983 — primeira edição comercial de sua poesia, por uma editora, a Brasiliense, que estava no centro das atenções para quem queria ler as vozes mais vivas do momento —, Leminski viveu bem pouco, mas produziu muito e conseguiu curtir uma certa onda de sucesso. Sua poesia ganhou algumas reedições já naquela época; a Brasiliense embarcou no seu ritmo e colocou na praça quinze trabalhos de sua autoria em quatro anos; suas canções foram parar no rádio e na TV, gravadas por gente de destaque; publicou semanalmente resenhas e artigos nos periódicos nacionais de maior alcance; enfim, sem recuar de suas ideias “in-úteis”, fez chover no piquenique da cultura brasileira, como sempre quis.
Sem recuar de suas ideias ‘in-úteis’, ele fez chover no piquenique da cultura brasileira
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É fácil dizer que Leminski está presente, e muito mais presente que a inumerável maioria dos poetas, ao menos entre os leitores. Mas a pergunta aqui é outra: o que fica de Leminski para quem escreve poesia depois de Catatau, Caprichos & relaxos, Distraídos venceremos? Como a poesia de Leminski sobrevive “dentro” das centenas de livros lançados a cada mês por aqui? Aí, sim, a coisa fica mais difícil, porque é sempre muito delicado rastrear como um poeta, mesmo com o alcance e a influência de Leminski, permanece nas gerações que o sucedem — ainda mais quando o corpo-obra do influenciador ainda nem esfriou. Um bom poema leva anos…
Seguir o caminho mais evidente, buscando as vozes que parecem talhadas à sua imagem e semelhança (as cópias do traço mais “leminskiano” de Leminski), não me parece o melhor a fazer. É claro que seu estilo — a fala coloquial, o humor transparente, as rimas ligeiras, o misto de capricho e relaxo — ecoa fortemente desde os anos 80, mas muito desse “jeitão” não se pode atribuir apenas à influência de Leminski, porque é comum à geração surgida na virada dos anos 60/70 (para delimitar um pouco, por mais que Leminski não a integre, basta pensar na antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Teixeira e lançada em 1976).
Constatar a influência de Leminski sobre autores específicos, salvo naqueles que a reivindicam abertamente, é tarefa sujeita a grandes riscos, porque o que nos parece “leminskiano” aqui e ali pode ser resultado de outras “combinações”, até mesmo diretamente daquelas de que Leminski se considerava fruto (e aí temos um balaio agitado em que cabem poesia concreta, Tropicália, Oswald de Andrade, canção popular, rock, haicai etc.). Nas palavras do próprio poeta, “literatura é telepatia com todo um passado”. Segundo ele, era absurdo falar em originalidade, no sentido individual, se “os homens fazem literatura há mais de 2 mil anos, em centenas de idiomas, em todos os quadrantes”. Cada autor que surge, por mais que se apresente ou seja identificado como herdeiro disso ou daquilo, “continuador” desse ou daquele legado ou tradição, está acima de tudo trabalhando numa “variante de todas as obras anteriores”.
Leitor incansável, orgulhoso de sua formação erudita e de sua antena sempre pronta para captar as conexões entre culturas e gerações, era natural para Leminski imaginar que cada linha de sua autoria participaria dessa longa conversa que, atravessando as bibliotecas, se espalhava do Oriente ao Ocidente, do passado ao futuro, sem limites, sem fronteiras e, principalmente, sem medo. É nesse sentido que ele afirmará que poesia é “a liberdade da minha linguagem”.
Trama de influências
Leminski se lançou muitas vezes nesse debate sobre a complexa trama das influências. Um dos temas recorrentes de seus ensaios/anseios é a “tradição”, ou melhor, como um poeta deve lidar com tudo que veio antes de si — e aí entravam suas aguerridas posições sobre vanguarda, ruptura, “paideuma”, invenção etc. No amplo arco desses temas, teve opinião inquieta, não raro controversa, mas a preocupação com o “novo” sempre o acompanhou e foi um dos principais motivos das tantas polêmicas em que, com indisfarçado prazer, costumava se envolver. Leminski tinha verdadeiro pavor da “desinformação”, da ignorância de quem escreve sem ter lido o que foi escrito antes; mas essa relação com o que veio antes nunca pode ser uma forma de manter-se lá atrás: o dever de quem escreve é aproveitar suas viagens ao passado (como leitor) para se mover em direção ao futuro (como escritor).
Poucos foram tão dispostos e generosos quanto Leminski para mergulhar nas poéticas e culturas mais variadas e sair de lá alardeando seus feitos; basta lembrarmo-nos das biografias que escreveu; de suas traduções acompanhadas de ensaios que desdobravam as obras; dos infinitos “textos-ninja” e resenhas que espalhou por aí. Poucos foram tão persistentes no empenho para que a poesia fizesse parte da vida cultural. Poucos foram tão bem-sucedidos nessa viagem toda.
Por essas e outras, passando os olhos pela incomensurável e variadíssima estante dos livros de poesia lançados nas últimas décadas (assim o digo porque não vou me arriscar a citar nomes diante do horizonte formado por essas dezenas de milhares de lombadas), seria possível dizer que muita coisa ali se deve à militância e à competência de Leminski para dizer o que a poesia pode ser — viva, revolta, livre.
A grande influência (ou o grande exemplo?) de Leminski foi uma espécie de libertação da poesia
Enfim, se quisermos mesmo perseguir suas pegadas mais evidentes, podemos apostar que sua divulgação apaixonada do haicai é sentida naquilo que ele mesmo chamou de “miniaturização da poesia brasileira”; seu humor parece ter lembrado aos poetas que eles também podem brincar (Leminski não fugia de uma piada, de um duplo sentido, de um trocadilho); seus “caprichos & relaxos” desarmaram boa parte da sisudez dos poetas. Mas essa forma de ver a permanência de Leminski deixaria muita coisa importantíssima de fora, porque, ao lado da economia e ligeireza do haicai, tem algo caudaloso como o Catatau, que ainda estamos começando a entender até onde pode chegar; por trás do humor mais fácil de pegar, ele soube ser, como poucos contemporâneos, doloridamente triste; e tantas vezes soube fazer o capricho parecer relaxo, e vice–versa, que é impossível não se desorientar ao seguir seus passos — haja vista as reviravoltas que ocorrem entre seus livros reunidos em Caprichos & relaxos e deles para Distraídos venceremos, depois para La vie en close, até as últimas palavras que escreveu.
Talvez o mais interessante seja imaginar que a grande influência (ou seria melhor dizer o grande exemplo?) de Leminski foi uma espécie de libertação da poesia, porque ele soube ser rebelde não apenas com relação ao que detestava (toda e qualquer amarra para sua paixão pela linguagem), mas também porque nunca se dobrou servilmente até ao que mais amava. Nenhuma amarra ou “credencial” lhe interessava; era o impulso — o salto à frente — que ele queria. Nada mais.
Terremoto
Depois do terremoto que foi — e ainda é — sua passagem pela poesia brasileira, quase nada ficou no mesmo lugar: Leminski moveu as peças do passado mais distante, reconfigurou o horizonte em que sua geração se formava, soltou as rédeas do futuro. Causou uma onda que não sabemos bem a que praias ainda vai chegar. Vivíssimo, paira como uma ideia brilhante sobre nossa poesia — a radicalíssima ideia de que a poesia ainda não disse tudo e deve achar formas de dizer muito mais. “É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz. E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de todos, da poesia à prosa. Subversivamente.”
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Sou todo ecos”
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