Ficção,

Já temos o culpado

O povo brasileiro acha que é um povo elevadíssimo, feliz, simpaticão e queridão, mas não sabe de nada

01nov2017 | Edição #7 nov.2017

O povo brasileiro não sabe interpretar as notícias de um telejornal. O povo brasileiro não entende nada do que vê na televisão, do que vê nas ruas, não sabe de nada, de nada. O povo brasileiro não sabe interpretar os acontecimentos políticos, não sabe o que é Esquerda, Direita, Deputado Federal, Continente, Estado, nem imagina o que seja Desenvolvimento Sustentável, não sabe nem por que o Holocausto foi uma coisa tão horrível assim. O povo brasileiro acha que o safado do Direitos Humanos é quem quer soltar bandido da prisão. O povo brasileiro acha que quem estuprou tem que ser estuprado. Nunca passou pela cabeça do povo brasileiro a existência de um Inconsciente Coletivo. O povo brasileiro não toma consciência de nada. O povo brasileiro nunca foi conscientizado. O povo brasileiro não sabe o que é Cultura. O povo brasileiro acha que Cultura é esses filme chato que ninguém entende, exposição de quadro e teatro, que o povo brasileiro acha mais chato que filme chato, a não ser que seja uma peça escrota com um artista da televisão que faz novela. O povo brasileiro acha que teatro bom é teatro ruim, que música boa é música ruim, que candidato político bom é candidato político ruim. O Pelé tinha razão: o povo brasileiro não está preparado para votar. O povo brasileiro nunca soube que, para ganhar uma eleição, um candidato tem que arrumar muito dinheiro para botar a campanha eleitoral dele na televisão, no rádio, aquela cara dele lá, naqueles papeizinhos, aquela cara que o povo brasileiro acha que é a cara de um homem de bem, porque o povo brasileiro acha que homens de bem usam gravatas e têm aquele cabelinho ou aquela careca de deputado federal e ele, o candidato, com aquela cara meio gordurosa, tem que comprar uns apoios políticos, uns prefeitos do interior, uns latifundiários, uns nomes da Cultura, uns cabos eleitorais, uns caras para levar dinheiro daqui pra lá, de lá pra cá, na meia, na cueca, com aquela cara de homem digno de gravata e um relógio assim.

O povo brasileiro é burro. Acha que a mulher dele é a melhor do mundo, a bunda dele é a melhor do mundo

O povo brasileiro não sabe que para ganhar a grana para pagar a eleição dele, o futuro prefeito de sua cidade, o futuro governador do seu estado, o futuro presidente do seu país, tem que prometer a bancos, empreiteiras, indústrias poluidoras, organizações criminosas em geral, agronegociantes e mineradoras devastadores das florestas e dos rios – já que o povo brasileiro acha que florestas e rios, esses negócio de Meio Ambiente é tudo coisa de hippie velho, de ecochato – e um monte de vantagens, um monte de lucros que ele, o seu chefe municipal, estadual, federal vai tirar do dinheiro do orçamento do Saneamento Básico, por exemplo, que é o dinheiro que o povo brasileiro pagou em impostos, para ter como escoar sua grande produção de coliformes fecais e todo tipo de coisa nojenta para longe do rio que fede perto da casa dele. O povo brasileiro não sabe o que é Saneamento Básico. O povo brasileiro acha que o Meio Ambiente é um safado pior que os Direitos Humanos, que fica cuidando de jacaré e de índios que não servem pra nada, enquanto tem tanta gente humana passando necessidades porque é vagabunda e não quer trabalhar. O povo brasileiro vê o Presidente da República, o Senador da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado, Governadores, Prefeitos, na televisão, negociando dinheiro, subornando uns aos outros, e esses caras todos continuam decidindo as parada todas do país, decidindo o próprio alto salário acima da inflação e o baixo salário de quem trabalha limpando a sujeira cheirosa que esses caras de gravata fazem e têm seus impostos descontados direto na carteira em mais de 27%. O povo brasileiro acha que o governo do partido que o povo acha que é de esquerda foi de esquerda, só porque, durante o governo de esquerda que não era de esquerda, quando os bancos, as empreiteiras, agronegociantes e organizações criminosas em geral bateram todos os recordes de lucratividade, a Nova Classe Baixa Alta que o governo que não era de esquerda inventou, saiu por aí comprando Croc-Chips-Bits-Burguers coloridos de tela plana e comendo picanha no rodízio e atropelando pessoas nos feriados com o carro financiado e pagando tudo com cartão de crédito, indo para a praia ouvir música ruim no alto-falante do carro, alimentando o pior tipo de capitalismo possível, esse tipo de capitalismo selvagem alimentado por um povo burro com dinheiro no bolso, com cartão de crédito no bolso. O povo brasileiro é muito burro. O Índice de Desenvolvimento Humano do povo brasileiro é baixíssimo. O povo brasileiro não tem sensibilidade para perceber que é uma aberração o Brasil ser uma das maiores economias do mundo e, ao mesmo, ter um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano do mundo. O povo brasileiro acha que é um povo elevadíssimo, todo feliz, todo malemolente, simpaticão, queridão. O povo brasileiro não percebe que é um povo de baixa qualidade. A parte do povo brasileiro que está na Classe Alta, uma Classe Alta que é tão burra, tão ignorante, que, na verdade, é uma Classe Alta Baixa, não associa, em sua cabeça imbecil, o imposto que sonega com o menor bandidinho, que devia baixar a maioridade dele que é para ele ser estuprado na cadeia que ele merece, que pega a mulher do cidadão de bem da Classe Alta Baixa e dá um tiro na cara dela, no sinal. E o povo brasileiro pobre, quando é criança, vai na escola pública ruim e toma um tiro na cabeça, no meio da aula. O povo brasileiro acha que o importante é que as pessoas que querem cheirar cocaína e fumar maconha não cheirem cocaína e não fumem maconha, nem que, para isso, toda semana uma criança pobre tome um tiro na cabeça de uma bala perdida da polícia ou da arma que os “cara da polícia vendeu” para um bandido. O povo brasileiro acha que a música dele é a melhor do mundo, que a mulher dele é a melhor do mundo, que as praias dele são as melhores do mundo, que a alegria dele é a melhor do mundo, que a bunda dele é a melhor do mundo. O povo brasileiro come cocô, paga caro e acha gostoso.

Quem escreveu esse texto

André Sant’Anna

Escritor e roteirista, é autor de O Brasil é bom (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.