Desigualdades,
Desemprego high-tech
O que os economistas pensam sobre a mecanização no mercado de trabalho (ou ‘Como aprendemos a deixar de amar os robôs e passamos a nos preocupar’)
01fev2022 | Edição #54“Vai trabalhar, vagabundo!” foi, em uma tradução livre, a maldição que o Deus cristão jogou sobre nós quando fomos chutados do Paraíso. Por milênios, ganhar o pão com o suor do rosto foi mais uma punição do que uma promessa. Já a partir da Revolução Industrial, tudo mudou e a falta de emprego passou a ser uma ameaça para os trabalhadores. O medo do desemprego se revelava na oposição a tecnologias específicas: tecelões temiam a máquina de fiar; os acendedores de lampião, a luz elétrica; os charreteiros, os automóveis.
Economistas amam a tecnologia. Afinal, ela tornou o mundo mais rico do que poderiam sonhar nossos antepassados. A inovação permanente tornou o trabalho mais produtivo, permitiu a persistência do crescimento econômico e, mesmo que de forma desigual, melhorou a situação dos trabalhadores. Apesar disso, até nos países mais ricos, eles seguem preocupados com o impacto da tecnologia nos seus empregos. Hoje estão disponíveis na Amazon mais de duas dúzias de livros com a expressão “Future of Work” (futuro do trabalho) no título, e a maioria foi lançada na última década. Por que tanta preocupação?
Além da ameaça do desemprego típico das crises econômicas, uma outra passou a pairar sobre nossa cabeça: a automação. Perder o emprego para uma máquina ganhou sua própria definição, o tal desemprego tecnológico. Não se perde apenas um emprego, mas sim todas as oportunidades futuras de retornar à mesma ocupação, que deixa de existir.
No passado, quem mais sentia a ameaça do desemprego tecnológico eram os trabalhadores fabris. Hoje, o potencial da automação se estende para setores agropecuários e de serviços. As novas tecnologias de automação permitem que, por exemplo, um drone identifique pragas e aplique pesticidas em áreas contaminadas, com pouca ajuda humana. No setor de serviços, até as ocupações milenares passaram por rápidas mudanças. Um professor da Universidade de Bolonha do século 11 que fosse parar em uma aula do fim do século 20 reconheceria o que estava acontecendo. Porém, se o viajante no tempo tivesse o azar de cair em 2020, ele teria mais dificuldades em entender as aulas on-line, o YouTube e as malditas reuniões virtuais. Se isso aconteceu com uma atividade tão tradicional quanto o magistério, é sensato arriscar que se repetirá com outras ocupações.
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Uma enorme produção acadêmica recente tem discutido os impactos da automação sobre o mercado de trabalho. Salvo um ou outro sensacionalista, a produção atual é bem mais matizada e foge dos extremos da tecnofilia ou da tecnofobia. Ninguém defende que “automação será nossa salvação e todos seremos felizes para sempre”, que ficaremos todos desempregados ou que um hal 9000, um Skynet ou um Borg qualquer nos transformará em robota (escravos, em tcheco). Um consenso é que o impacto da automação será mal distribuído.
Revoluções tecnológicas nunca atingiram todos os trabalhadores da mesma maneira e não há motivos para supor que com a automação será diferente. Na pesquisa em economia, já nos anos 60, Zvi Griliches e Jan Tinbergen consideravam que os trabalhadores mais escolarizados teriam maior aptidão para usar novas tecnologias. Essa hipótese seria usada posteriormente para explicar o aumento da desigualdade de rendimentos a partir dos anos 80. Nessa visão, o capital humano seria complementado pela tecnologia, fazendo os mais qualificados terem ganhos salariais em razão de ganhos de produtividade.
A realidade mostrou que a dicotomia de trabalho qualificado vs. não qualificado era insuficiente para entender as mudanças do mercado de trabalho. Foi preciso ir além e olhar para os tipos de tarefas executadas pelos trabalhadores em suas ocupações. A partir dos anos 2000, influenciados pelas pesquisas dos economistas David Autor e Daron Acemoglu, os estudiosos da área criaram tipologias para entender o impacto da tecnologia. Uma classificação bastante útil distribui as tarefas em dois eixos: o das rotineiras/não rotineiras e o das manuais/não manuais. A automação atingiria cada uma dessas quatro combinações de forma distinta.
A inteligência artificial já gera ilustrações ou mesmo poemas de qualidade aceitável
No eixo rotineiras/não rotineiras, percebeu-se que tarefas repetitivas em ambientes estáveis podem ser codificadas. Fechar embalagens em uma linha de montagem ou contar dinheiro em um banco são automatizáveis com relativa facilidade. Outras tarefas exigem constante improviso e adaptação: limpar ambientes, por exemplo, exige habilidades, insumos e movimentos bastante diversos e não estruturados. Nem as máquinas mais sofisticadas superam esse desafio tão bem quanto os humanos.
No outro eixo, algumas tarefas exigem força ou habilidade manual, e outras são intensivas em cognição, análise e interação social. Notem que há tarefas não manuais, mas que são repetitivas. Um recepcionista executa muitas tarefas não manuais, mas que se repetem. Igualmente, há ocupações manuais que não são repetitivas. Dirigir um caminhão é um trabalho manual, mas que deve se adaptar às imprevisibilidades do trânsito e ao comportamento por vezes agressivo dos demais motoristas.
Os beneficiados diretamente pela automação seriam aqueles cujas ocupações requerem o uso de criatividade na solução de problemas, inteligência social para comunicação e interação com equipes. Um médico não só se beneficia do acesso mais rápido ao conhecimento como pode — ou poderá — usar a inteligência artificial para complementar os diagnósticos com maior precisão. Um advogado pode usar a tecnologia para auxiliá-lo na elaboração do texto das suas peças processuais. A automação libera tempo para que ele foque nas tarefas de maior valor cognitivo.
No extremo oposto estão as ocupações exercidas em ambientes controlados e que requerem pouca inovação, como a maioria das tarefas rotineiras do setor industrial. Nelas, os robôs tomam o lugar do trabalhador. Mas no setor de serviços também há muitas tarefas não manuais e repetitivas. Até pouco tempo atrás, a emissão de uma passagem aérea exigia um agente de viagem. Hoje, isso é feito por nós mesmos, com alguns cliques (geralmente mais do que gostaríamos).
Nos países desenvolvidos já se identificou uma polarização do mercado de trabalho decorrente da automação. Ela teria impacto nos empregos intermediários, com crescimento no número de trabalhadores em ocupações de mais alta qualificação e produtividade, e também nos de mais baixa qualificação e menores rendimentos. Diaristas seguem com demanda em alta, torneiros mecânicos perdem espaço e arquitetos recebem salários cada vez mais altos. O resultado imediato é um aumento da desigualdade de rendimentos.
Previsões
Qual será o impacto da automação no Brasil? A polarização do mercado de trabalho se repetirá? Estudos recentes têm contribuído para a compreensão dos efeitos da automação sobre os trabalhadores brasileiros. Assim como no resto do mundo, o percentual estimado de empregos automatizáveis varia, mas pode-se dizer que cerca de metade dos trabalhadores exerce ocupações que sofrerão transformações tecnológicas.
Para pesquisadores da Universidade de Brasília e do Ipea, 55% da mão de obra formal, ou seja, 46 milhões de brasileiros, desempenha atividades automatizáveis. Pesquisadores da IDados acreditam em 58%. Já uma pesquisa da ufrj projeta 60% do emprego. Essas pesquisas importaram, em alguma medida, as estimativas de automação de autores internacionais. Construindo as próprias estimativas com técnicas de machine learning, nossos estudos na Enap e puc-rs identificaram até 45% dos trabalhadores formais do setor privado e até 20% dos servidores federais exercendo ocupações automatizáveis. Isso representa mais de 14 milhões de trabalhadores, sendo 7 milhões nos serviços, 6 milhões na indústria e 1 milhão na agropecuária. (Curiosamente, esses estudos só foram possíveis graças às novas tecnologias. Muitos exigem técnicas e capacidades computacionais que se tornaram acessíveis faz pouco tempo.)
Em resumo, mesmo utilizando técnicas diversas, os pesquisadores têm previsto que a automação pode atingir fatias mais do que expressivas do emprego dos brasileiros. Isso não causa surpresa, uma vez que boa parte dos trabalhadores se encontra ocupada naquelas tarefas rotineiras, justamente aquelas em que podem ser substituídos por máquinas.
Todas essas previsões devem ser lidas com muita cautela. Em primeiro lugar, existe uma diferença entre uma ocupação poder ser automatizada e efetivamente sê-lo. Os baixos salários e até mesmo empecilhos legais ou institucionais desaceleram a introdução das novas tecnologias no Brasil. Frentistas permanecem empregados não só por resistência dos consumidores, mas por terem proteções legais e salários relativamente baixos em relação aos custos dos equipamentos que os substituiriam.
Em segundo lugar, os estudos se baseiam no que aconteceu em períodos recentes, ou então na opinião dos especialistas. O problema é que a fronteira de atividades humanas que a máquina pode exercer avança de forma inesperada. Nas atividades criativas, os primeiros resultados são visíveis. A inteligência artificial já gera ilustrações ou mesmo poemas de qualidade aceitável. O resultado do trabalho das máquinas é inferior ao dos melhores do ramo, mas muitas vezes o medíocre já é suficiente. Em breve, jingles publicitários criados por software serão indistinguíveis dos compostos por humanos; sinfonias ainda terão que esperar mais um pouco.
Já as atividades que envolvem relações pessoais resistem um tanto à inovação. Os chatbots dos sites são ainda mais irritantes do que os serviços de atendimento ao cliente tradicionais, e é bem mais fácil cabular uma aula de ginástica no YouTube do que com o personal trainer.
Em meio a uma pandemia e uma crise econômica duradoura, a discussão sobre automação no Brasil pode parecer fora de tempo ou lugar. Certamente existem problemas mais imediatos. Em algum momento, contudo, o país voltará a sua anormalidade normal, e será preciso nos prepararmos para as mudanças trazidas pela automação.
Até a crise iniciada em 2014, havia uma tendência de queda da desigualdade na distribuição de renda, decorrente de mudanças estruturais no mercado de trabalho e de políticas públicas ativas. É pouco provável que forças distributivas sigam tão intensas nas próximas décadas. Os ganhos de produtividade são bem-vindos e mais do que necessários para o Brasil, mas um efeito colateral da automação pode ser o agravamento da desigualdade de rendimentos. Essa é a faceta perigosa da automação.
Como lidar com essas mudanças? Os estudos são corajosos nas previsões, mas bem menos nas recomendações de políticas públicas. A política mais óbvia seria a de retreinamento, para tornar os trabalhadores mais maleáveis às novas demandas de qualificação. A evidência a favor desses programas não é tão clara. Ao que parece, os detalhes do desenho e de implementação determinam seu sucesso ou fracasso. Programas já conhecidos como seguro-desemprego e transferência de renda deveriam ser ampliados para amortecer os efeitos nocivos das novas tecnologias. Por fim, os subsídios ao capital devem ser evitados, uma vez que podem gerar robotização excessiva, sem grandes ganhos de produtividade.
As previsões dos estudiosos de automação no Brasil e no mundo tendem a ser ilusoriamente precisas. Os números dão uma sensação de segurança para os leitores. A certeza é que, como sempre aconteceu, o futuro nos surpreenderá. Ninguém na época do bug do milênio poderia prever o surgimento de ocupações como YouTuber ou digital influencer. Os erros, contudo, não tornam inúteis as pesquisas sobre automação. Pelo contrário, permitem que, com o suor de nossos computadores, identifiquemos tendências gerais do mercado de trabalho e nos preparemos para as mudanças. Afinal, no longo prazo, estaremos todos vivos.
Nota do editor
Leia no site da Quatro Cinco Um uma seleção de referências bibliográficas utilizadas neste texto.
Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.