Desigualdades,
A revolução silenciosa de Claudia Goldin
Primeira mulher a receber sozinha o Nobel de economia revelou as forças propulsoras por trás das desigualdades de gênero no mercado de trabalho
01jan2024 | Edição #77A habilidade da economista Claudia Goldin em descrever e analisar a história econômica das mulheres no mercado de trabalho permitiu uma melhor compreensão das dimensões econômicas das diferenças por gênero, bem como revelou as forças propulsoras por trás dessas desigualdades.
Em outubro de 2023, a contribuição de Goldin, professora na Universidade Harvard, fez dela a primeira mulher a receber sozinha o prêmio Nobel de economia. Anteriormente, apenas duas outras pesquisadoras — Elinor Ostrom, em 2009, e Esther Duflo, em 2019 — haviam sido laureadas, sempre em companhia de homens. Com doutorado pela Universidade de Chicago e passagem por algumas das melhores instituições de ensino do mundo, Goldin já havia se tornado, em 1990, a primeira mulher titular do departamento de economia de Harvard.
É um desafio apresentar de forma sucinta as principais contribuições de Goldin para a economia. Abordo aqui suas linhas de pesquisa em três grandes áreas, que geraram estudos precursores para a literatura sobre a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Nos três casos, ela partiu do arcabouço em que, a qualquer momento do tempo, os salários e o emprego das mulheres são resultados da interação entre a oferta e a demanda por suas habilidades.
A primeira dessas áreas consiste na análise histórica de longo prazo da situação das mulheres norte-americanas, ressaltando os avanços tecnológicos e educacionais e evidências demográficas importantes, como a queda da fecundidade. A análise, no entanto, vai além da investigação das especificidades do mercado de trabalho de um único país.
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Ainda sob uma perspectiva histórica, mas com ênfase nos determinantes das escolhas das mulheres, Goldin chamou a atenção para um dos fenômenos mais bem estabelecidos na literatura quando se trata de mercado de trabalho: o aumento vertiginoso da entrada das mulheres como força de trabalho a partir da segunda metade do século passado. A economista cunhou o termo “revolução silenciosa” para se referir ao resultado de transformações que influenciaram e ainda influenciam a oferta e a demanda de trabalho das mulheres.
Por fim, Goldin contribuiu para identificar, de maneira clara, alguns mecanismos determinantes da desigualdade de rendimentos por gênero associados à estrutura pouco flexível de algumas ocupações e suas respectivas formas de remuneração.
Evolução em U
A pesquisa de Goldin une história e economia e uma forte habilidade empírica para conectar os dois campos. Uma de suas primeiras e principais contribuições é uma análise reveladora da evolução do papel das mulheres e das razões pelas quais as diferenças de gênero em rendimentos e taxas de participação mudaram ao longo do tempo. Com riqueza de dados, a pesquisadora destrincha o porquê de a curva de evolução da participação feminina no mercado de trabalho, em grande parte das sociedades ocidentais, não apresentar uma tendência sempre ascendente ao longo dos últimos séculos — de fato, ela tem o formato de um U.
A partir de dados para um período de mais de duzentos anos nos Estados Unidos, Goldin mostra que, durante a transição de uma sociedade agrária para uma industrial ao longo do século 19, a participação de mulheres casadas no mercado sofreu uma queda significativa, em virtude da dissociação da atividade econômica do ambiente doméstico.
A partir do início do século 20, com as mudanças no comportamento reprodutivo, o acesso às tecnologias simplificadoras do trabalho doméstico, o desenvolvimento educacional e o crescimento do setor de serviços, essa tendência se reverteu e a participação feminina passou a subir.
O aumento da escolaridade foi o elemento fundamental na transição entre os dois cenários. No início do processo de industrialização e de formação do mercado de trabalho, o crescimento da renda familiar, combinado com a perda de valor da produção doméstica de bens e serviços, levou à redução da oferta do trabalho feminino. Posteriormente, o aumento da escolaridade abriu a possibilidade de trabalhos menos manuais e de menor estigma social, fazendo com que mulheres passassem a responder aos incrementos salariais com ampliação de sua oferta de trabalho.
A elucidação desses mecanismos pavimenta o caminho pelo qual a escolaridade e o tipo de ocupação se tornarão elementos centrais, em trabalhos posteriores, para estabelecer o papel das interrupções decorrentes do casamento e da maternidade sobre a capacidade das mulheres de se manter no mercado e sobre seus rendimentos.
A necessidade em conciliar carreira e família restringe a ascensão feminina no mercado
A pesquisa pioneira de Goldin conecta, além da educação, a fecundidade e a produtividade com a evolução das aspirações, da identidade e das escolhas das mulheres, assim como com as mudanças institucionais. Em um contexto mais abrangente, ela mostra que as normas sociais, barreiras institucionais e necessidades das mulheres em conciliar carreira e família restringem, e muitas vezes impedem, a entrada ou ascensão feminina no mercado de trabalho.
Em um estudo que trata das decisões entre casamento e a escolha profissional dessas mulheres, Goldin, em coautoria com Lawrence Katz, mostra que os contraceptivos orais geraram incentivos para o investimento em educação e o aumento da oferta de trabalho com maior qualificação.
Qual o mecanismo para tal efeito? Segundo eles, o acesso à pílula reduziu os custos de investimento em carreiras de longo prazo, e o maior controle sobre o planejamento familiar permitiu que as mulheres adiassem o casamento e investissem mais tempo na própria educação e carreira. O estudo também encontrou evidências de que a oferta de anticoncepcionais adiou a idade em que se casam.
A partir dos anos 70, o nível educacional das mulheres aumentou de modo considerável, principalmente no que diz respeito a graus mais elevados de qualificação (ensino superior, pós-graduação e programa técnicos profissionais). Esse crescimento nos investimentos de capital humano contribuiu para uma redução significativa da desigualdade salarial de gênero, principalmente nos anos 80.
Para explicar essa mudança ao longo do tempo, Goldin mostra diferenças geracionais expressivas em relação às escolhas das mulheres quanto ao investimento em capital humano e as expectativas e decisões sobre horizontes profissionais. A partir dos anos 70, elas, em especial as mais jovens, puderam investir mais em qualificação e no planejamento da carreira e ter uma perspectiva mais clara no âmbito profissional.
O aparecimento da pílula e a elevação significativa do nível de qualificação foram os catalisadores da última etapa do que Goldin chamou de “revolução silenciosa”, que se divide em quatro fases: a entrada das mulheres no mercado de trabalho; a expansão da educação feminina; a redução da taxa de fecundidade; e as mudanças referentes à própria identidade e à relação entre trabalho e família.
As três primeiras fases são compreendidas como o período de evolução que se inicia no fim do século 19. Nesse momento inicial, a identidade da mulher adulta era formada após o casamento. No fim dos anos 70, no entanto, elas começaram a ter horizontes profissionais claros e tomar decisões com mais autonomia. A fase revolucionária ainda está em curso.
Maternidade
Apesar da redução significativa nas desigualdades de gênero quanto à participação na força de trabalho, há algumas mais persistentes, como se vê em rendimentos. A maternidade é um dos pontos mais importantes para explicar essa persistência.
Em coautoria com Marianne Bertrand e Lawrence Katz, Goldin mostra a relevância que o ciclo de vida de uma mulher pode ter na desigualdade de rendimentos. Com base em dados de 1990 a 2006 de turmas de MBA da Universidade de Chicago, os autores demonstram que o momento em que ela tem um filho (principalmente, o primeiro) é revelador para explicar por que os rendimentos entre mulheres e homens podem divergir. Há uma penalização pela maternidade, ou seja, um impacto negativo sobre os rendimentos das mulheres que se tornam mães. Esse efeito perdura por pelo menos uma década e se deve majoritariamente à redução nas horas trabalhadas. No caso dos homens, os rendimentos podem até mesmo aumentar com o nascimento de um filho.
O estudo mostra de maneira inequívoca que as mulheres se defrontam com barreiras “invisíveis” que as impedem de ascender em cargos de liderança ou outras posições de destaque. Tal fenômeno ficou conhecido na literatura como “teto de vidro” (em inglês, glass ceiling) e tem como consequência a sub-representação delas na parte superior da distribuição de rendimentos.
Goldin também investigou a dinâmica da demanda por trabalho feminino, em linha com o arcabouço em que emprego e rendimentos das mulheres são determinados pela interação entre oferta e demanda. Nesse contexto, a economista aponta que uma explicação para o efeito da maternidade sobre a participação e os rendimentos delas é a forma como os trabalhos estão estruturados e remunerados. A falta de flexibilidade no local e na estrutura do trabalho é um fator que explica a penalidade pela maternidade.
Há uma penalização, um impacto negativo sobre os rendimentos de quem se torna mãe
Ao precisar de trabalho com estrutura mais flexível e com mais conforto para atender às demandas de cuidados, mulheres recebem uma penalização nos rendimentos. Homens, por outro lado, recebem um prêmio por estar disponíveis para atender às maiores jornadas e demandas.
Ocupações caracterizadas por um baixo grau de substituição entre trabalhadores, com maiores pressões em relação a tempo e às relações interpessoais, tendem a registrar um diferencial de rendimentos entre homens e mulheres bem mais alto do que se nota em ocupações em que a substituição entre trabalhadores é alta, com jornadas de trabalho mais flexíveis.
Portanto, apesar de identificar que educação e escolhas ocupacionais são relevantes para o diferencial de rendimentos entre homens e mulheres, Goldin chama a atenção para o fato de que esse diferencial é significativamente maior dentro de uma mesma ocupação (intra-ocupação) do que entre ocupações. O nascimento do primeiro filho é um evento fundamental para explicar o surgimento e a ampliação desse diferencial.
Em seu estudo mais recente, divulgado no mesmo dia em que o vencedor do prêmio Nobel foi anunciado, Goldin analisa a evolução dos direitos das mulheres norte-americanas desde o início do século passado e mostra que boa parte dos movimentos críticos se deu no período entre 1963 e 1973. Em sentido mais amplo, a obra de Goldin é extremamente relevante, e a descrição e o estudo dos fatores determinantes das desigualdades (de gênero, em particular) é importante não só por questões de equidade e justiça, como também para o desenho e a elaboração de políticas públicas, pois a busca pela diminuição da desigualdade de gênero é também a busca por mais eficiência e crescimento econômico.
Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.