Crônica de Odessa,
Milhares de dias de guerra na Ucrânia
Em meio a uma ‘escalada’ da qual ouvem falar há meses, cresce entre os ucranianos a resistência ao terror bélico
03dez2024“Pode ir mandando fotos aqui e me contando. Especialmente sobre a guerra e sobre o que você não pode mandar no grupo da família.” Recebi essa mensagem às 14h21 de 19 de novembro de 2024, na estrada a caminho de Odesa — como os ucranianos preferem grafar, já que Odessa com “ss” é a forma usada pelos russos. Meu primo queria checar se estava tudo bem e me pedir relatos visuais da guerra na Ucrânia.
A mensagem alarmada tinha seu sentido preciso. Dias antes, o presidente Joe Biden havia autorizado o emprego de armas norte-americanas de longo alcance contra a Rússia. Logo em seguida, a Rússia viria a lançar um míssil balístico experimental de médio alcance contra a Ucrânia, chamado de Kedr. A propaganda russa tenta vender o Kedr como algo grandioso: “míssil intercontinental de longa distância” — o que foi desmentido pelos especialistas ucranianos. Ataques em série marcaram os últimos meses, em uma “escalada” da qual os ucranianos têm ouvido falar sem parar desde então.
O dia 19 de novembro marcou o que a mídia internacional repercutiu como os mil dias da invasão em escala completa no país. Mas essa efeméride é para lá de controversa para muitos cidadãos locais. Não por alguma espécie de luta quixotesca contra fatos, mas pela percepção de que o que está hoje em cena começou muito antes, há quase quatro mil dias, com a invasão da Crimeia em 2014. Não foram poucas as vezes que ouvi que os russos fizeram da Crimeia um laboratório para testar estratégias que hoje implementam sem escrúpulos nas áreas ocupadas da Ucrânia continental.
Dois dias antes da tal efeméride, Odesa foi atacada brutalmente por mísseis russos. Dez civis morreram e ao menos outras doze pessoas ficaram feridas. O alvo foi um prédio residencial em uma das ruas mais caras da cidade, que conta igualmente com um restaurante e um gentleman’s club, eufemismo para prostíbulo. Como cidade histórica de marinheiros, Odesa exala strip clubs e vestígios de uma energia lasciva. Na semana seguinte, mais uma explosão viria a ferir onze civis e danificar a infraestrutura civil da região.
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Ir à cidade nesse contexto político delicado me trouxe uma expectativa particular. Não só porque o local é um dos pontos de contato mais próximos da Crimeia e conta com ônibus regionais frequentes para os territórios ocupados — o que lhe rende a posição de alvo preferencial de ataques —, mas também porque eu mesma já havia visitado a cidade nove meses antes. À época, fui a convite do Ministério de Relações Exteriores britânico e escrevi um primeiro relato sobre o conflito na Ucrânia para a Quatro Cinco Um. Desta vez, vim financiada pela Missão do Presidente da Ucrânia na Crimeia.
Menos luz, mais mísseis
Voltar a uma cidade, qualquer que seja, é sempre um susto; no mínimo, tudo muda sem nada ter mudado. Em pleno novembro de 2024, porém, Odesa não pode se dar ao luxo da permanência. Em todos os dias desse mês até a efeméride em questão foram registrados ataques, contabilizando 199 ocorrências no total. Dentre as investidas estão várias provindas de mísseis Iskander e outras de drones do tipo Shahed. Foi o pior recorde da guerra até aqui. Todos os outros meses também registraram indecentes quantidades de ataques — em especial após setembro de 2024 (mês seguinte à invasão da cidade russa de Kursk pela Ucrânia).
Enquanto escrevo, a cidade inteira está sem energia há alguns dias. Apenas os estabelecimentos com gerador conseguem manter as portas abertas. “É uma forma de nos desmoralizar”, disse-me uma jovem do sul da Ucrânia de 27 anos. É sempre a mesma história, todo inverno: “eu falo que começou a ‘estação dos bombardeios’”. Ela mesma já estava sem luz há três dias. Seu privilégio é que o sistema de aquecimento em seu apartamento não depende da eletricidade para funcionar; os banhos quentes estão garantidos. Mas para seus vizinhos a situação é outra.
Ela tem um irmão mais velho, advogado, que aniversariou precisamente no milésimo dia da guerra em escala total. Seus pais, ambos com 57 anos, estão em linhas de frente do combate. Sua mãe, inclusive, serviu desde o começo e até antes da invasão de larga escala, iniciada em 2022. Seu pai passou a servir depois.
Outro ucraniano jovem, que trabalha como garçom em um restaurante de comida tártara, disse-me que ser homem na Ucrânia de hoje é viver em um rabbit hole. “Caralho!” — dispara a única palavra em língua portuguesa que conhece. Ele me contou que homens não podem sair do país (a menos que tenham mais de sessenta anos) e têm que torcer para não serem convocados. Se forem, não há saída a não ser ir para o combate. A menos que você tenha dinheiro, é claro. Quem tem dinheiro se safa, quem não tem se ferra, continua. Não se pode criticar o governo; não se fala nada contra o que está acontecendo. “Mas é o nosso destino, não se sinta triste por nós”, me disse o rapaz. A partir daí, eu já não sabia mais como reagir e ofereci um abraço.
Ucranianas com quem conversei a respeito discordam do fatalismo do jovem. Seu povo é justamente conhecido por soltar a voz, derrubar seus governos, engajar-se em prol de sua liberdade e independência. “Está no nosso sangue”, uma vez me disseram. Até ouvi de alguns que, por as medidas de governo serem públicas demais, fica mais difícil a ação rápida e assertiva em tempos de guerra.
Vitória à Ucrânia! — ou, na transliteração latina do cirílico original, peremoga dlja Ukraїni! — diz uma pintura da guarita na frente do Consulado Turco de Odesa. Escrito em cirílico, é claro, caucionado da amigável tradução oral por testemunhas oculares que me acompanhavam naquela noite. Uma dessas testemunhas era um artista local, que tentou me explicar o significado da expressão. “Antes era algo em que realmente acreditávamos; hoje soa como uma sátira.” Silêncio das outras testemunhas presentes.
Postagem em tempos de guerra
A Ucrânia está sob lei marcial desde o dia 24 de fevereiro de 2022. À parte as mudanças administrativas significativas que isso acarreta, como a instituição de interventores para todas as regiões do país, há nas filigranas dimensões mais afetadas pelo império militar. Uma delas é o registro da vida cotidiana, o que é uma expressão neutra demais para designar a presença ativa dos cidadãos nas redes sociais. Não é permitido postar fotos e vídeos de ataques nas primeiras horas em que eles acontecem, nem de infraestrutura crítica e outras informações que podem ser instrumentalizadas pelo inimigo.
As histórias de censura são várias. Há alguns meses, nossa fotógrafa Yulia estava com uma amiga em Zhytomyr, cidade do oeste do país, quando a amiga sacou uma câmera de celular para tirar uma selfie. Lugar errado na hora errada. Ambas estavam em uma ponte que atravessa a estação de trem local. O timing infeliz lhes rendeu uma abordagem policial e o pedido para confiscar o aparelho. Não só o oficial apagou a foto tirada, como revistou a lixeira do celular — para apagar de lá também o registro.
A justificativa é não entregar de mão beijada aos russos material sobre a situação atual em pontos estratégicos do país — com o que Yulia concorda. Além disso, é também graças a essas restrições que os ucranianos conseguem manter preservados pontos de infraestrutura civil. Por outro lado, a restrição pode atingir níveis paranoicos para parte da população, e isso causa sofrimento. Yulia me disse que, certa feita, fazia em Dnipro (alvo de vários recentes ataques) um dia muito nublado. Quis registrar a neblina densa cobrindo as árvores em um canto qualquer e teve que ouvir uma neurótica concidadã reclamar do feito. “O que você está fazendo? Você não pode fazer isso!”
Do lado inimigo, os russos não têm qualquer constrangimento em registrar seus ataques. Muito pelo contrário. Como afirmam cidadãos ucranianos, os russos se comprazem ao vê-los sucumbir da maneira mais visual possível. Operadores de drones filmam escatologicamente cenas brutais e postam em canais do Telegram, por exemplo. À parte isso, russos têm enviado drones às áreas ocupadas para perseguir e deliberadamente matar civis. A população local chamou a nova estratégia de guerra de “safári humano”.
Contrastes da guerra
Eu imaginava uma cidade muito diferente quando cheguei a Odesa em 19 de novembro de 2024. Coberta de pavor, perigo e destruição. Minha cabeça, desprovida de parâmetros bélicos, já colocava coletes antibalas e capacetes nos visitantes, contava com dormir no abrigo antibomba do hotel e abandonar programas marcados em razão do risco de ataques aéreos. Pensamentos intrusivos persistentes, de vidro se estilhaçando na minha frente, me faziam dar tiques involuntários de cabeça.
Seria um desaforo falar que não encontrei nada disso ao chegar. Como narrei acima, o mês de novembro foi particularmente cruel para os residentes de Odesa. Ao mesmo tempo, presenciei desta vez uma energia que não pude captar no começo do ano. Uma cidade que grita ainda mais forte contra o que está acontecendo e resiste à violência imposta de todo dia. Que multiplicou grafites, lambe-lambes e outras manifestações artísticas pelas esquinas. Que toma mais e mais partido de sua quantidade espantosa de gatos e até os estampa com uniformes militares e espingardas tristíssimas. Que ousa desfilar um carrinho anunciando city tours ou ekskursії na frente do cartão-postal da cidade, a escadaria de O encouraçado Potemkin. Que expõe nova arte naïf nos salões do Museu de Belas Artes local, todos adornados de tapume (porque os vidros das janelas foram estilhaçados em uma explosão de novembro do ano passado; a segunda a atingir o local — outra, em julho de 2022, também havia deixado destroços vultosos). E que mantêm os gentleman’s clubs abertos e ativos.
Saudar com fé
Terminei a noite do dia 19 de novembro de 2024 na praia de Lanzheron, a mais famosa da cidade, acompanhada de uma ucraniana da região de Odesa, outro originário da Crimeia e um terceiro da região dos Cárpatos. O mar estava calmo, o que era incomum para essa época do ano. Colocamos as mãos nas ondas quebradas e, para meu espanto, a água não estava tão fria. Deu até para sentir o cheiro poroso de mar.
O céu estava desbundante. A ausência de energia por conta do blecaute deve ter feito as estrelas parecerem mais brilhantes. Avistei as Três Marias — Alnitak, Alnilam e Mintaka — e escaneamos o resto do céu com o Starwatch, um aplicativo que eu não conhecia até então. Meus acompanhantes ficaram surpresos com o fato de que vemos as mesmas estrelas pelas bandas do sul. O céu é para todos. Antes de ir embora, visitamos uma obra de arte famosa da praia: um grande pórtico verde de frente para o mar, com uma porta totalmente aberta. No chão, lê-se salve (pronuncia-se com o “l” comprimindo o céu da boca). Acreditem se quiserem, os ucranianos também usam a palavra latina. Uma saudação calorosa àqueles que ali se querem demorar. Saudar com fé nós vamos.
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