Crônica de Odessa,

Fragmentos de uma Ucrânia em guerra

Há incontáveis dimensões do conflito em curso no país: das famílias partidas à disputa de narrativas e ao sequestro do futuro; tudo mudou

23fev2024 | Edição #79

Viajar para um país em guerra foi uma experiência inédita na minha vida. E me trouxe uma série de reflexões, dentre as quais uma primeira relacionada à escrita: faz sentido fazer uma crônica de viagem? Como escrever sobre o que me tira a palavra? Superar o silêncio que sufoca cada impressão?

Vi, ouvi e senti uma miríade de coisas que nunca concebi antes. Minha primeira intuição foi respeitar a falta de palavras que chegava como reação ao desespero de um mundo desconhecido e brutal. Eu silencio não porque não vejo, não sinto e não vivo. Silencio porque respeito profundamente a distância abissal entre nossas realidades fraturadas e minha ignorância diante daquele sofrimento. Mais: repudio a folclorização de um país que sofre. A espetacularização da guerra, da dor e da raiva.

Senti dificuldade de fotografar também. Levei uma câmera velha e quase não tirei da mochila. Registrar a destruição me soava um acinte. Um desrespeito à dor e ao luto, à indescritibilidade daquilo tudo, à impossibilidade de precisar qualquer vestígio do que se vive. Ao mesmo tempo, outro impulso oposto tomou conta de mim. Uma compulsão por radiografar cada esquina, cada lambe-lambe na parede, cada checkpoint com placas de “proibido filmar” — como que para provar a existência daquilo, já tão documentada por jornalistas mundo afora. 

Não somos treinados para ver a destruição total. Nós nos acostumamos à brutalização da vida, às mortes que escorrem em pencas e ao assombro da insegurança; indignamo-nos e protestamos à nossa maneira, pela denúncia, investigação, indiferença ou resignação. Mas a guerra em escala total é outra coisa. Não conseguimos concebê-la direito. Ouvi de uma ucraniana que parece “antimoderna”, algo do passado. Guerras assim, porém, continuam todo dia; e muito além dos olhos cândidos e bolsos polpudos dos europeus e norte-americanos. Somos nós quem as ignoramos, ou fazemos um cordão sanitário para nos proteger delas.

Barricadas nas estradas, prédios partidos ao meio, silos explodidos e soldados ostensivamente armados a cada poucos metros. Isso causa uma estupefação particular. E a paralisia misturada com vontade de capturar tudo vem como consequência.

Não sabia a diferença entre um míssil e um projétil, um caça e um tanque. O que é aceitável como doutrina de guerra. Uma de nós falou sobre como parece absurdo falar em violação das leis internacionais da guerra quando tudo é absurdo. Tudo é muito.

Também não sabia como funciona um front de batalha. Descobri recentemente que nem todas as posições de alistados ucranianos são alocadas aos fronts. Há uma série de deveres administrativos e de gestão que demandam alistamento e abocanham significativa parte dos conscritos.

Toda e qualquer existência, seja ucraniana, seja russa, foi e é dilacerada pela perfídia visceral da guerra

Sobre democracia e direitos, então, nem se fala. Nas palavras do sociólogo convocado Denys Kobzin, de Kharkiv, “eu abri mão da minha liberdade para lutar por ela”. E outras pessoas pensam assim também. É um estado de exceção: o país vem sendo governado por lei marcial desde 24 de fevereiro de 2022; a prorrogação mais recente (a décima) foi pedida em 5 de fevereiro. Um “treino” — reconhecido inclusive por um parlamentar de oposição com quem conversei — veio na época da Covid-19. Desde então, muitas tecnologias de governo foram aproveitadas para tempos excepcionais.

Eleições estavam previstas para este ano, mas foram canceladas diante do esforço de guerra. As anteriores, em 2019, elegeram como presidente um outsider comediante, cujo programa de TV virou nome do partido (Servo do povo). Elegeu, também, uma série de parlamentares de primeira viagem (254 em um parlamento de 450). Um dos requisitos para o ingresso na lista do partido era a inexistência de carreira política prévia.

Há incontáveis dimensões do conflito em curso na Ucrânia. Nada passa incólume ao seu carimbo. Da política doméstica à externa. Do meio ambiente ao mercado financeiro. Das famílias rasgadas aos casamentos antecipados. Das vidas roubadas à violência doméstica. Da aceleração do tempo ao sequestro do futuro. Tudo mudou.

Mas tem algo que, não importa onde e quando, sempre permanece: na guerra, as pessoas perdem constantemente. Toda e qualquer existência, seja ucraniana, seja russa, foi e é dilacerada por sua perfídia visceral. Ambos os lados, aliás, talvez concordem só e neste ponto: a guerra é existencial.

Jantar à luz de mísseis

Viajei à Ucrânia em uma delegação da sociedade civil brasileira. Em nossa primeira noite em Odesa (com um “s”, segundo a escrita local), fomos jantar em um restaurante tártaro-crimeio, Hadjibey no nosso alfabeto. Pé-direito alto, mesinhas baixas de madeira, ambiente cosmopolita. Os trajes dos atendentes atentavam contra o frio desconfortável vindo de fora. Vestidos azuis de tecido levinho e camisas brancas meio arregaçadas desfilavam o salão com agilidade.

Provocamos uma pequena mobilização para juntar doze lugares. Estávamos todos famintos após horas a fio de viagem e uma maratona de aviões para cruzar o Atlântico e o Mar Negro. Como o espaço aéreo está fechado na Ucrânia, é preciso ingressar por terra; a maior porta de entrada é a Polônia, com o famoso trem noturno que vem de Varsóvia. Nós cruzamos pela Moldávia, de carro.

Só havíamos tomado uma sequência de cafés entre seis e nove da manhã e estávamos em jejum desde então. O relógio marcava 19h30. Logo sentamos e pedimos o cardápio. A música ambiente lembrava a de nativos sul-americanos, muito sopro e um ritmo animado, mas por vezes melancólico. A evocação não era inapropriada: os tártaros são a minoria indígena da Crimeia, exterminados e expurgados desde muito antes da ocupação russa de 2014. Com a invasão em larga escala — expressão que aponta a falta de limites da guerra atual —, a situação piorou.


Um prédio partido ao meio, em Borodyanka, uma das cidades mais destruídas da região de Kiev [Marina Slhessarenko Barreto]

Mas naquele jantar a gente já estava sem bateria geopolítica para ouvir, tampouco havia do outro lado para contar. O cardápio, em inglês, ainda era um desafio. Palavras familiares eram a âncora: kebab, hommus e flatbread. Fora isso, uma gama de opções sem referência por aqui. O cardápio virtual veio a reboque do impresso, todo colorido e cheio de letras rebuscadas, que simulavam a grafia árabe. 

As fotos, porém, acompanhavam uma escrita indecifrável em cirílico. Nossa guia ucraniana, Mariya, 30, foi nos ajudando a decifrar. Já recomendou que pedíssemos chebureki, que viemos a descobrir ser idêntico ao nosso pastel, e yantik, uma espécie de panqueca fina, assada no forno. 

As bebidas foram pedidas em paralelo. Vinho tinto, água com e sem gás. Uma quantidade significativa de copos e taças. Garçonetes colocando talheres, copos; barulhos metálicos e vidros batendo. Conversas múltiplas, ambiente estridente. As pessoas saem para jantar na guerra, ainda que haja toques de recolher às 23 horas em Odesa. Um grupo até aproveitava o cenário do restaurante para tirar fotos posadas sem a menor timidez no entrepiso da grande escadaria.

Assim que os garçons terminaram de pôr a mesa, começou a tocar uma sirene. Não reparei de pronto. Era um barulho abafado, vindo de fora. Reparei quando o colega na minha frente fez sinal com o indicador apontando para o ouvido. Bateu-me um frio na espinha. Então era essa a sirene que alertava para o risco de ataques aéreos.

Uma pequena movimentação estava acontecendo. Um casal deixou tudo em cima da mesa e saiu pela porta do restaurante. A cozinha continuava a trabalhar sem qualquer sinal de mudança. Mariya abriu seu grupo de Telegram para acompanhar as áreas de ataque. Ela me perguntou se eu usava Telegram, porque era por lá que as informações em tempo real chegavam. Também havia dois aplicativos para monitorar os mísseis: Air Alert e Air Alarm Ukraine. Um deles mostrava toda a área sob risco de ataque, em vermelho, atualizada em tempo real. Ela cuidadosamente apontou que o país inteiro estava em vermelho.

Reparei quando o colega fez sinal apontando para o ouvido. Era a sirene para risco de ataque aéreo

Nossos seguranças estavam no canto, juntaram-se ao gerente da delegação e começaram a bolar o que aconteceria conosco. Não tínhamos acesso a eles, tudo foi muito sutil e discreto. Tentávamos continuar alguma conversa sobre sistemas de saúde pública ou a educação superior no Brasil. O grupo que fazia fotos seguia posando, duas mulheres simulavam um beijo, com as mãos na cintura, viradas uma para a outra.

Mariya se virou para mim e começou a me explicar que era o caso de entender qual era o tipo de ataque. Havia os mísseis e os drones; uns mais e outros menos letais. Fiquei atordoada com a explicação, mas confiei nela. Depois, a comissária do governo para políticas de gênero me contou que ouvir as sirenes já é ótimo sinal: tem uma porção de ataques que ocorre sem aviso prévio. E são fatais.

Assim como a pandemia enfiou no vocabulário básico um bando de termos infectológicos, a guerra o colonizou com tecnicidades balísticas. Sistema antimísseis Patriot, caças MiG-31 com mísseis hipersônicos Kinzhal e drones Shahed. Palavras assim entraram na minha mira. Mas fato é que nem todo ataque aéreo mobilizaria todos. As pessoas têm que continuar a vida. Estão cansadas disso tudo.

Não fosse um rombo gigantesco na ala sudeste da catedral, Odesa sob conflito poderia passar ilesa aos olhares passageiros. A guerra é um subtexto, mas grita com os dentes de dragão espalhados pelas ruas, impedindo a passagem de tanques. Com as estátuas cobertas como em barricadas para a proteção contra os ataques. Com as ruas vazias. Com as placas vermelhas de “aluga-se” e “vende-se” a cada quarteirão. E, claro, com as sirenes diárias alertando sobre ataques aéreos.

Logo, todos os membros da segurança da delegação se reuniram e decidiram não alardear. O alarme de segurança já havia sido descartado segundo as redes de informação deles. Odesa estava fora de risco. A essa altura, a sessão de fotos já estava por acabar. Continuamos o papo, o vinho e os comes até o sono bater. Pagamos a conta. Ao sair no frio cortante, algum vizinho colocara uma música altíssima, instrumental, como uma canção de Natal. Voltamos para o hotel embalados pelo alívio, em uma cidade que ainda não retirara as luzinhas natalinas em pleno fim de janeiro.

Fraturas expostas

Conheci Taisiia, 37, em 2019. Na época, estudávamos juntas em Munique. Reclamávamos das provas de direito e do nosso alemão canhestro. Depois, descobri que ela é de Lugansk, um dos territórios ocupados por russos na Ucrânia. A família dela permanece lá. Taisiia, ao contrário, recusou-se a viver sob ocupação russa e se viu forçada a se deslocar dentro do território ucraniano. Depois, foi estudar em Munique e de lá não saiu; hoje mora com o marido e dois filhos gêmeos.

Taisiia, assim como todos os seus conterrâneos com quem conversei, vê o início da guerra em 2014, e não 2022; 2022 inaugurou apenas uma nova fase: a invasão de escala completa. Desde 2014, Lugansk, Donetsk (ambas na região do Donbass) e a Crimeia já estavam sob a mira dos russos. A narrativa principal disseminada foi a de que 2014 selou a invasão da Crimeia — onde, de fato, há a maior parte dos russos étnicos que habitam a Ucrânia. Por outro lado, forças separatistas russas também se levantaram nas cidades mencionadas, na sequência da deposição do governo do presidente Viktor Yanukovych, naquele 2014.

A fase de agora, diz Taisiia, adicionou mais uma camada de complexidade na relação com seus pais. Se ela apoia a posição da Ucrânia hoje sem titubear (muito embora tenha votado na oposição nas eleições de 2019), tem que conviver com pais que apoiam os russos. A mãe é belarussa de nascimento; o pai, ucraniano do leste. “Por que me mobilizaria pela Ucrânia agora? Fomos deixados de lado desde 2014”, diz o pai, segundo ela.

A solução de compromisso foi deixar de lado o grande elefante branco — a guerra — na sala, fazer um cordão sanitário sobre tópicos políticos sensíveis e tentar continuar a relação familiar. E as complicações vão além da narrativa macropolítica. Como ela conta, sempre falou em russo com a família. Desde os tempos da União Soviética, era sinal distintivo falar em russo nas interações cotidianas. Quem falava nas línguas locais era enxergado como “não descolado”. 

O governo ucraniano vem dando atenção à guerra digital, que não mostra qualquer sinal de fadiga

Essa herança linguística continuou muito além da independência do país, em 1991. O russo era a língua do conforto, da intimidade — ao menos nas regiões do centro, leste, sudeste e em cidades grandes —, enquanto ucraniano era a língua oficial, da burocracia e das instituições. 

Com 2014, porém, o russo virou uma língua tabu, exceto para aqueles residentes ucranianos que mantinham laços estreitos com a cultura, sociedade e governo russos, caso dos pais de Taisiia. Diversas mulheres com quem conversei também falavam em russo em casa. Diversas também experimentavam relações complicadas com familiares. Ouvi de alguém que não existe uma só família que não foi atravessada pelo conflito. 

No primeiro dia de visita a Kyiv (aqui, mais uma luta vocabular, já que a escrita “Kiev” é atribuída à russificação do idioma), estávamos no elevador quando uma de nós perguntou a uma ucraniana como se falava “não” na língua dela. De bate pronto, ela respondeu het, que se pronuncia como “niet. Na hora, meu minúsculo repertório vocabular eslavo se ativou: ela estava falando em russo. A pessoa que perguntou já logo começou a experimentar o som: “Niet, niet, niet”. Segundos depois, a moça se corrigiu: hi, que se pronuncia como “nhi”. E repetiu, “nhi”, enquanto descia do elevador. hi é não em ucraniano. Os laços são profundos e contraditórios.

Máquinas de propaganda

A família da mãe de Mariia, 28, mora na Rússia. Ela, como Taisiia, estava acostumada a falar russo em casa. Tinha relações cordiais com a família russa e até segurava o sobrinho no colo. “Hoje ele mata a gente”, ela afirma, contando que o jovem entrou cedo para o exército da Rússia. As relações com a família foram encerradas. “Não dá mais para falar”, diz, “eles distorcem totalmente a realidade”.

A família dela, de Kyiv, disciplinou-se para não falar mais em russo. E, de lá para cá, ela diz que tem várias coisas em que passou a prestar atenção. Na cultura, uma batalha de narrativas já estava presente, ainda que silenciosa. A máquina de propaganda russa, aponta, foi implacável. “Até as legendas de filmes eram censuradas.” Segundo ela, “se algum filme norte-americano falasse que os russos eram estúpidos, eles mudavam as legendas para aparecer ‘ucranianos estúpidos’”. Foram décadas assim sem que se desse importância, mas agora isso mudou. O governo da Ucrânia vem dando atenção especial à contrapropaganda, e essa guerra digital não mostra qualquer sinal de fadiga, ao contrário dos fronts convencionais. 

No livro O fim do homem soviético (Companhia das Letras, 2016), a escritora Svetlana Aleksiévitch coleciona histórias da transição para o mundo pós-soviético. Em uma delas, uma professora ucraniana narra pensamentos sobre os sucessivos sofrimentos que enxerga no próprio país e sua incomunicabilidade a quem não os vivenciou.

Achamos os ocidentais ingênuos porque eles não sofrem como nós, para qualquer brotoeja eles têm um remédio. Em compensação, nós passamos pelos campos de trabalhos forçados, enchemos a terra de cadáveres durante a guerra, recolhemos com as mãos nuas o combustível nuclear de Tchernóbil… E agora estamos sobre os escombros do socialismo.

Esses sofrimentos, porém, não representam uma aliança intergeracional. Segundo a professora, a reação de seus alunos ao falar sobre isso foi rir e dizer: “Nós não queremos sofrer. Para nós a vida é outra coisa”. “Ainda não entendemos nada do passado recente do nosso mundo e já vivemos em um novo. Uma civilização inteira despejada no lixo…”, lamenta ela. Talvez agora se viva algo parecido. 

Quem escreveu esse texto

Marina Slhessarenko Barreto

Bacharel em direito, é mestranda em ciência política pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #79 em março de 2024.