Crônica de Óbidos,

Uma jornada de descobertas

As lições de democracia do primeiro festival literário em língua portuguesa realizado depois da pandemia

23out2021 | Edição #51

Depois do Medo, o Outro. E entre os dois, a mais devastadora pandemia que já conhecemos. Se fosse um roteiro ou apenas uma sacada de curadoria, a sequência soaria até forçada. Mas foi com estes temas que se desenharam as últimas edições do festival Folio, com curadoria de Ana Sousa Dias e Pedro Sousa. A última edição aconteceu durante dez dias de outubro e pôs à prova o bem-sucedido enfrentamento da Covid-19 em Portugal.

Um festival à moda antiga: com plateia, convidados internacionais e locais, jornalistas, leitores, mediadores, vida boêmia e tudo aquilo que no Brasil ainda nos parece imensamente distante no tempo. Máscaras no rosto da plateia e totens de álcool gel lembravam que a pandemia não terminou. Mas estávamos quase lá.

*

Há um paralelo entre o florescimento dos festivais literários e o vigor da vida democrática. Experimentamos isso no Brasil desde o início do século até meados da década passada. Chegaram a ser registrados mais de três centenas de festas e festivais literários espalhados por cidades brasileiras, eventos que deram sentido cultural ao patrimônio histórico, movimentaram a economia local, puseram universidade, mercado de livros e imprensa em saudável diálogo e quebraram as muralhas das províncias, colocando pequenas localidades no mapa cultural do Brasil e do mundo.  

No Brasil de hoje, as cidades choram seus mortos, os festivais perderam as poucas políticas públicas que viabilizavam sua realização, o público não pode viajar por razões econômicas ou sanitárias. A Festa Literária das Periferias (Flup), que já recebeu o prêmio de melhor festival literário do mundo, mesmo com patrocinadores garantidos não consegue destravar seu projeto na Lei Rouanet. 

*

Em debate com a marroquina Leïla Slimani, o colombiano Juan Gabriel Vásquez descreveu o seu percurso de autor hemingwayiano, que vive e domina uma experiência para torná-la literatura, para outro tipo de escritor, que faz da ficção uma “jornada de descoberta” ou de “invenção”. 

“Você não escreve porque sabe, escreve para saber alguma coisa”, disse. “Os romances que gosto de ler não são os que entendem as coisas e as explicam para mim. Gosto dos que me convocam para uma jornada de descoberta de lugares misteriosos, onde há segredos, sombras, lugares que você não entende.”

*

A adrenalina de voltar a assistir a debates literários em sequência libera uma energia adicional, a dos leitores e escritores recém-libertos do isolamento. A escrita, em particular a literatura, é um instrumento dos mais poderosos para entender o significado desse grande trauma. Os gestos quase obsoletos de ler e escrever livros vêm sendo formas eficazes de nos situarmos neste novo mundo.
O mercado editorial em qualquer país tem a estranha tendência de produzir mais em tempos de crise. Não faltam dificuldades econômicas, logísticas e específicas do setor, mas mesmo assim pipocam novas editoras, livrarias e livros que pensam, investigam, representam a pandemia. Ou apenas fazem perguntas sobre ela.

*

A leitura, e não apenas a escrita, também implica uma ética, lembraram o ensaísta Alberto Manguel e o crítico Pedro Mexia em uma conversa erudita e divertida. O argentino-canadense pôde exibir no debate o português já bastante treinado que cultivou durante a pandemia, enquanto se prepara inaugurar, em fins de 2022, o seu centro internacional de estudos da leitura num palacete lisboeta.  

*

A muralha medieval que cerca a cidadela de Óbidos nos lembra da notável capacidade do medo para construir coisas e movimentar a história. 

A jornalista Ece Temelkuran reporta notícias da democracia sufocada na Turquia. O historiador Fernando Rosas, autor de um livro sobre Salazar e sua “arte de durar”, conversou com Lilia Schwarcz sobre as continuidades entre os autoritarismos português e brasileiro. Foram lembrados os versos de Chico Buarque em “Fado tropical”: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.

“Nunca vi ricos tão ricos quanto os ricos brasileiros, e também nunca vi pobres tão pobres quanto os pobres do Brasil”, disse a jornalista portuguesa Isabel Lucas em seu debate com Itamar Vieira Jr. 

Isabel lançou no início do ano Viagem ao país do futuro: o Brasil pelos livros, volume de reportagens originalmente publicadas no jornal literário Pernambuco e depois reunidas em livro pelas editoras Cepe (Brasil) e Companhia das Letras (Portugal). 

*

Em seus debates, Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Paulo Scott, Giovana Madalosso e Tatiana Salem Levy pareciam ilustrar as palavras de Juan Gabriel Vasquez sobre as razões que o levaram a escrever sobre a Colômbia: “Uma das lindas coisas que a ficção pode fazer é contraditar as versões oficiais, que nos são fornecidas por aqueles poderosíssimos narradores que todo país tem. Os Estados, os governos, a igreja são contadores de histórias extremamente poderosos, que sempre tentam nos convencer de suas versões. A literatura é o lugar onde os cidadãos erguem a mão e dizem: isso não aconteceu desse jeito. Ou: não concordo com essa versão sobre o que aconteceu. De certa maneira a democracia é mais rica, na medida em que aceita mais e mais versões de momentos difíceis do passado.”

*

Numa cena teatral e absurda, a filósofa Márcia Tiburi trocou presentes com o padre local. Ele deu a ela um clérgima, ou colarinho clerical, peça branca de plástico, usada pelos padres para esconder o primeiro botão da camisa. Em troca, ela deu a ele um pen drive que encontrou perdido no fundo da bolsa. 

“Vão soar os alarmes do Vaticano quando eu conectar isto aqui no computador”, riu o padre, ao receber o presente. Era tarde da noite, no meio de uma rua onde só havia um barulhento punhado de literatos bêbados, mas alguma coisa diferente parecia ter acontecido em Óbidos. 

Nota
O jornalista Paulo Werneck viajou a Óbidos a convite do Folio Festival. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.