Ciências Sociais,

Quando a Itália perdeu a inocência

Passados cinquenta anos, italianos ainda tentam compreender atentado em Milão considerado o primeiro ato dos anos de chumbo

12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20

Foi logo na minha primeira semana morando em Milão, em dezembro de 2018, que notei, no caminho de casa até o Duomo, duas placas lado a lado, no estilo lápide, homenageando a mesma pessoa: o ferroviário anarquista Giuseppe Pinelli. Fincadas em um gramado a trezentos metros da catedral que é o principal ponto turístico da cidade, as pedras têm tamanho e altura quase idênticos, mas quem as lê de perto percebe as diferenças. Na da direita, que tem o símbolo da prefeitura, Pinelli foi um “inocente morto tragicamente”. Na da esquerda, assinada pelos “estudantes e democráticos milaneses”, foi um “inocente assassinado”. As inscrições de data e local da morte coincidem: 15 de dezembro de 1969, dentro da sede da polícia de Milão.

Nos meses seguintes, fui entendendo que essa dupla de placas simboliza uma história que começou há cinquenta anos e até hoje não tem versão definitiva — e que representa um episódio importante para Milão e fundamental para a Itália, mas que, exceto pela geração que o testemunhou, tem suas entranhas pouco conhecidas.

A morte de Pinelli ocorreu três dias depois que uma bomba explodiu dentro de um banco na praça Fontana, onde estão as placas em sua memória. O ferroviário foi preso, com outros anarquistas, como suspeito pelo atentado que matou dezessete pessoas e feriu quase uma centena. Detido na delegacia além do prazo legal, morreu em decorrência de uma queda de uma janela no quarto andar. A polícia logo anunciou que se tratava de um suicídio. Os amigos e a família rejeitaram a explicação e acusaram os agentes de homicídio. Seis anos depois, a justiça decidiu que não foi nem uma coisa nem outra: a queda tinha sido consequência de um “mal súbito”, deixando a questão para sempre inconclusa.

Tudo isso — a bomba do dia 12 de dezembro, a morte de Pinelli e as ações e reações do Estado e dos italianos nas décadas seguintes — foi bastante lembrado em Milão no cinquentenário do episódio. O prefeito Giuseppe Sala e o presidente da República, Sergio Mattarella, participaram de cerimônias televisionadas. Novas placas com os nomes das vítimas foram colocadas no chão da praça Fontana. Passeatas, festas e projeções de filmes ocuparam a cidade. Os principais jornais lançaram publicações especiais e mais livros chegaram às prateleiras já cheias de obras sobre o assunto (procurar seção “política”, subdivisão “anos de chumbo”). “A mãe de todos os massacres”, “o início de uma era” e o momento em que a Itália “perdeu a inocência” foram algumas das frases e títulos que acompanharam os relatos da efeméride.

Além de homenagear as vítimas, existe, entre os próprios italianos, a necessidade de recontar os fatos que se sucederam a essa explosão e que agora, agrupados com o benefício da distância, permitem compreender seu significado. “Na sequência da bomba na praça Fontana foi iniciada uma estação de violência e terrorismo político na Itália sem comparação na Europa”, disse-me o jornalista e escritor Enrico Deaglio, autor do recém-lançado La Bomba — Cinquant’anni di Piazza Fontana [A bomba — Cinquenta anos da Piazza Fontana], da editora Feltrinelli.

Tentativa de golpe

Depois daquele 12 de dezembro, o país viveu uma série de atentados em estações de trem, praças e outros locais públicos, com muitas mortes — só em Bolonha, em 1980, foram 85 vítimas. E também um jogo de acusações e revanches entre militantes de esquerda e de direita, alimentados por pistas falsas e omissões dos governos e do Judiciário. Após vaivéns processuais que se arrastaram até 2005, sabe-se que a bomba da praça Fontana nada teve a ver com os anarquistas. Foi uma ação de neofascistas do grupo Ordine Nuovo, que, no entanto, nunca cumpriram pena pelas mortes. Ao longo dos anos, surgiram evidências de que esses militantes de extrema direita tinham ligação com agentes secretos e integrantes do governo italiano, o que suscita ainda hoje o debate sobre uma tentativa de golpe de Estado.

Deaglio é da ala que não tem dúvidas. “A bomba foi um ato terrorista que deveria provocar um golpe de Estado. Foi materialmente organizada por esse grupo, que agia dentro do Estado italiano, dentro das instituições, e foi muito protegido por elas.”

A explosão, defende ele, teria tido o objetivo de criar um clima de insegurança, que serviria de justificativa para o governo declarar estado de emergência e limitar liberdades constitucionais, como direito de reunião e manifestação. “Essa ideia tinha apoio dentro da Democracia Cristã, o principal partido italiano da época, das Forças Armadas, da polícia e de um ambiente econômico de direita, que não apreciava os movimentos de luta sindical e reivindicação salarial”, diz.

O golpe assim descrito não aconteceu. E alguns dizem que um dos motivos teria sido o modo como reagiram os milaneses. O funeral das vítimas da bomba, em 15 de dezembro de 1969, no Duomo, poderia incentivar a repetição de cenas dos meses anteriores, marcados por greves de operários e confrontos entre sindicalistas e a polícia, no período que ficou conhecido como “outono quente”. Mas a multidão dentro e fora da catedral, em vez de protestar, ficou calada.

“Foi uma reação imprevista da população, que participou em massa do funeral. Foi uma manifestação de grande força silenciosa, mas atenta. Penso que aquele dia, aquela multidão muda, foi o verdadeiro início da democracia na Itália”, diz Deaglio, que à época era um estudante de 22 anos em Turim e, depois, trabalhou no jornal Lotta Continua, editado pelo grupo de esquerda homônimo.

O silêncio, depois do funeral, foi sumindo. Naquela mesma noite, após a cerimônia, Pinelli morreria na delegacia e, a partir daí, os italianos começaram a levantar a sobrancelha da desconfiança. Primeiro, diante da versão sobre a morte do ferroviário, depois, devido à incapacidade das instituições de revelarem a verdade. “A morte de Pinelli, encontrado no pátio interno da sede da polícia, que dizia que ele tinha se suicidado porque havia sido descoberto como culpado, atinge de vez a opinião pública e se torna a coisa mais simbólica de todas. Foi o ato principal de arrogância do poder”, afirma Deaglio.

Legado

Começa, então, a surgir uma dissidência das vozes oficiais que extrapola os círculos militantes por meio de frases em muros, músicas, livros e obras como Morte acidental de um anarquista, escrita por Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura falecido em 2016. A peça, que faz uma revisão satírica da morte de Pinelli, foi encenada pela primeira vez em 1970, em Varese, ao norte de Milão. (Entre minhas preferências dessa época, está a canção “La Ballata del Pinelli”, que teria sido composta na noite do funeral do ferroviário por jovens anarquistas e tem algumas versões disponíveis no Spotify.) Outro legado é o documentário 12 Dicembre, lançado em 1972 por Pier Paolo Pasolini em parceria com o movimento Lotta Continua. Mais recentemente, o drama histórico Romanzo di una Strage (2012), dirigido por Marco Tullio Giordana, faz um apanhado sóbrio da explosão e de seus desdobramentos.

Esse efeito colateral cultural serviu como meio de protesto à época e hoje ajuda a narrar essa história aos mais jovens, que, perdidos entre idas e vindas de versões e processos judiciários, mal conseguem dizer o que realmente aconteceu. “As novas gerações não sabem nada disso. Sabem que é uma história turva e repetem palavras vazias como ‘anos de chumbo’, ‘estratégia da tensão’. Como não há uma verdade absoluta, as informações que lhes foram transmitidas circularam essencialmente em família. Quem tem os pais de esquerda ouviu uma história. Quem tem os pais de direita ouviu outra”, resume Deaglio.

Uma sondagem mostrou, em 2009, quarenta anos depois da bomba, que só 5% dos estudantes italianos sabiam com alguma precisão o que tinha acontecido na praça Fontana, e que a maioria creditava o atentado ao grupo armado de extrema esquerda Brigadas Vermelhas, que só viria a atuar nos anos seguintes. Para ajudar a esclarecer pelo menos a abertura desse enredo, a prefeitura de Milão acabou de instalar no chão da praça, no dia 9 de dezembro, ao lado das placas com os nomes das vítimas, um 18º painel. Agora, ali, vizinho às duas lápides de Pinelli, a caminho do Duomo, lê-se: “Massacre da praça Fontana / 17 vítimas / Dispositivo colocado pelo grupo terrorista de extrema direita Ordine Nuovo”.

Quem escreveu esse texto

Michele Oliveira

É repórter e editora freelancer.

Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.