Ciências Sociais,
Os ‘true crimes’ e o sadismo coletivo
Onda de reconstituição de crimes reais alimenta populismo penal e obsessão por justiçamento
06set2022 | Edição #62Quando me perguntam sobre os meus passatempos, sempre tenho uma resposta meio básica: assistir programas, séries e documentários sobre crimes. Em geral, as pessoas ficam um tanto chocadas. Primeiro, por ser sobre “crimes”. Segundo, porque meu principal eixo de investigação e trabalho é a criminologia. Se a ideia é relaxar, como eu poderia fazê-lo com programas sobre o tema que defini como campo de atuação e reflexão? Mas, você já pensou que também faz disso um entretenimento e nunca se deu conta?
Muito se tem falado sobre uma nova “onda de true crime” no Brasil. Os true crimes podem ser caracterizados como programas, podcasts, documentários, filmes sobre investigação ou reconstrução de crimes reais em que são intercaladas ficção e realidade. O que considero equivocado é dizer que esse seria um fenômeno contemporâneo. E por quê?
O Brasil há tempos tem e alimenta uma certa obsessão por tragédias. Nossa sociedade, a meu ver, é um tanto fascinada pelo perfilamento de criminosos, pelos contornos narrativos de um caso grave e chocante. Já na década de 60, temos Jacinto Figueira Jr., com o clássico O homem do sapato branco (programa de entrevistas exibido na TV Globo). Mas, enquanto pontuava questões e levantava bibliografias e matérias para compor este texto, fui advertida de que poderíamos voltar mais ainda no tempo para pensar a cena true crime no Brasil. A escritora e roteirista Renata Corrêa me alertou para o que seria o primeiro longa-metragem brasileiro: O mystério do dominó preto.
O filme silencioso de 1931 foi dirigido pela atriz e cineasta Cleo de Verberena, pseudônimo para Jacyra Martins da Silveira. Ambientado no Carnaval do Rio de Janeiro, é baseado em novela homônima de Martinho Corrêa, pseudônimo para Aristides Rabello. A personagem Virgílio encontra sua antiga paixão, Cleo, fantasiada de dominó preto. Esta parece passar mal, mas consegue dizer em tempo para Virgílio que fora envenenada por seu amor. A trama se desenvolve com Virgilio e um amigo tentando desvendar o mistério e dar cabo do corpo de Cleo. Veja você: “dar fim ao corpo de Cleo”. Não há, infelizmente, cópia preservada da película. Mas chama atenção o fato de que Virgílio não enfrenta um dilema para contatar a polícia e pedir investigação, e se entende o próprio responsável para desvendar tal mistério como se fosse instado pela amada em seu leito de morte a ser o investigador e justiceiro de tamanha atrocidade. Isso me remete aos elementos do true crime que têm feito muita gente achar novidade o que acontece hoje no país.
Precursor
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Um dos nomes que considero icônicos do true crime brasileiro é o do radialista e jornalista Gil Gomes. O “Programa Gil Gomes” estourava na década de 70. Uma das minhas mais vívidas memórias infantis é a de acordar com o aroma do café fresco que minha avó, minha bisavó ou uma das minhas cuidadoras fazia enquanto escutavam as histórias cabulosas narradas por Gil Gomes. O sucesso era imenso. Sua maneira de narrar os fatos e contar as histórias era o fio que nos conduzia e nos prendia a cada crime aterrador relatado. Eu me lembro que sentia medo e que, quando a brincadeira das crianças envolvia algo de terror, sempre havia o engraçadinho que bancava as imitações de Gil Gomes.
Nos anos 90, vimos uma virada que lança os true crimes do rádio para as telinhas. Em 1990, a Globo chegou a lançar alguns episódios de Linha direta, com Hélio Costa. Mas é em 1991 que o SBT lança o Aqui Agora, que fez história para o bem e para o mal. O programa chegou a alcançar a marca de cinquenta pontos de audiência e enfrentou processos por ter transmitido ao vivo o suicídio de uma adolescente, em 1993. Podemos dizer que programas como Cidade alerta e Brasil urgente, entre outros, sejam filhos e herdeiros incontestes do Aqui agora. Em 1997, a Globo retoma o Linha direta sob o comando de Marcelo Rezende. O programa fez imenso sucesso entre o público, mas ganhou um outro contorno: também fazia sucesso entre movimentos que reivindicavam justiça e elucidação de casos. Isso foi ao ponto de, em 2003, a Globo receber a medalha Tiradentes pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro como forma de reconhecimento pelos méritos do programa, que colaborou fortemente com corporações policiais, ajudando na prisão de mais de quatrocentos foragidos, e também porque mantinha uma linha telefônica que acolhia denúncias anônimas 24h por dia. Por volta dos anos 2000, o programa ficou sob o comando do jornalista Domingos Meirelles e chegou a ter uma linha especial, a “Linha Direta Justiça”, que se concentrava em apenas um caso renomado. A equipe do programa lançou, em 2007, o livro Crimes que abalaram o Brasil, pela Globo Livros.
O mais inovador na onda contemporânea é as próprias pessoas imbuírem-se de investigadores
Com tudo isso, não acredito ser possível falar que os programas true crime sejam um fenômeno novo na sociedade brasileira. Da mesma forma, não acredito que a mobilização da sociedade em torno de alguns casos também o seja. Mas, obviamente, ganhamos outros contornos na era das redes sociais.
Se nos anos 90 a tevê mobilizava as pessoas para serem parceiras das linhas investigativas das polícias, hoje não vemos exatamente isso. Por um lado, não é bem uma novidade os programas e o frenesi nacional motivados por um true crime. Por outro, é inevitável pensar que há um maior alcance midiático e que, se não se estimula a interação, principalmente com órgãos institucionais, há um incentivo maior, mesmo que indireto, ao engajamento das pessoas. Antes, a contribuição era a de, caso esbarrássemos com um foragido, contatar o programa ou os órgãos competentes. Hoje, vemos um alcance maior da espetacularização e do engajamento autônomo para atender puramente vontades e curiosidades que, me desculpem os leitores, beiram o sadismo coletivo.
O que acho de mais inovador na onda contemporânea é as próprias pessoas imbuírem-se de investigadores, fazendo-se Virgílios atuais que buscam não a denúncia, mas a própria solução ou inquirição do caso e do acusado. O elemento “novo” seria não o true crime em si, mas o tipo de repercussão e mobilização social que se faz em torno de cada caso relatado em podcasts ou documentários de streamings.
Universo paralelo
Em 2003, Francisco Alves Filho publicou um artigo indignado na revista IstoÉ, intitulado “Universo paralelo”, em que realizava uma crítica contundente ao que chamou de “circo de horror” — os programas do gênero, especialmente Hora da verdade e Verdade do povo. Os adjetivos utilizados foram “bizarro”, “justiceiro” e “exótico”. O artigo dizia que encarar certos programas era como ser transportado para uma realidade paralela, meio fantástica, meio de terror, sendo o elemento de suspense “a miséria humana”. Meu ponto de discordância com Francisco Alves Filho é ele apontar aquele universo como se fosse paralelo. A meu ver, aquilo é Brasil. Pessoas se amontoarem em hordas e celulares atentamente, invadindo casas para resgatar cachorros, é indício de uma sociedade atravessada pelo “complexo de Virgílio”, em que as pessoas acreditam piamente que podem fazer “justiça com as próprias mãos”. Os justiceiros não estão em multiversos ou dimensões paralelas, mas aqui, lado a lado conosco, nos metrôs, ônibus e passeios por Higienópolis.
Como uma sociedade que tem a violência enquanto mito fundador, enquanto tronco sustentador e organizador, o fascínio pelo que poderia ser um recalque ou mesmo uma perversão acaba sendo aplicado de forma um tanto banalizada. Faz tempo que não escuto ou leio uma crítica taxativa ao sensacionalismo. E por que será? Vejo, cada vez mais, o sensacionalismo entremeado e se confundindo à intenção de utilidade pública e acesso à informação.
Historicamente, ativistas, intelectuais e pesquisadores do fenômeno da violência, notadamente a racial, chamam a atenção para a importância da comunicação e das mídias na reprodução e manutenção de estereótipos raciais e mesmo no incentivo a ideias atreladas ao populismo penal e ao justiçamento. O que observo quando vejo essa “nova onda” é justamente uma falta de percepção sobre o que é utilidade pública, o que é fascínio perverso, o que é apenas uma vontade pessoal de ser um marco de algo que causa frisson e o quanto isso reforça padrões comportamentais e estereótipos que de misteriosos não têm nada. Claro que o que é considerado diferente causa interesse. Aliás, não fosse o interesse de um agente do FBI por mentes de criminosos “exóticos” — e, hoje sabemos, detentores de alguma psicopatia —, não teríamos um padrão e uma definição do que é um serial killer. Mas aí é que está: qual o seu interesse nisso? Um interesse científico, acadêmico, de um breve entretenimento ou é algo que te leva a se sentir o próprio Sherlock Holmes, a corroborar ideias punitivas, a pensar que “se fosse comigo…” e se imaginar o próprio Justiceiro da Marvel?
Não há jornalismo descompromissado, principalmente quando se trata de temas sensíveis
Muitos especialistas chamam a atenção para a problemática em torno da exposição contínua a esse tipo de conteúdo, criando uma “dessensibilização social”. Ou seja, essa exposição sistemática, em escalas crescentes de intensidade do estímulo, gera relaxamento diante de estresses e ansiedades provenientes do medo e da repulsa. A diminuição da sensibilidade seria, então, uma consequência dessa exposição. A comoção seria menos racionalizada e emocionalmente potencializada. O justiçamento e o populismo penal, a demanda punitiva, são intensificados a ponto de vermos pessoas perseguindo foragidos em vez de denunciá-los; ameaçando condenados e pessoas que já cumpriram penas por seus crimes porque têm suas histórias e atos rememorados em um tribunal perpétuo.
Quando assisto a documentários e séries, escuto podcasts, leio materiais true crime, eu me indigno, me emociono, choro pelas vítimas, me compadeço dos familiares e compreendo a escala e os trânsitos em julgado dos processos. Não saio por aí de celular na mão perseguindo pessoas, muito menos criando perfis em redes sociais e ameaçando indivíduos. O que quero dizer é que há um nível de trabalho e responsabilidade ao lidar com a ampliação de produções desse tipo. Não há jornalismo descompromissado, principalmente quando se trata de temas e questões sensíveis. Se a ideia é um debate público, a demanda por e a responsabilidade para com os formatos, as narrativas e as disputas diante dessa arena pública são relacionais. Para isso, a gente ainda tem um caminho a ser percorrido. Retomando e dialogando com o artigo citado sobre o “Universo paralelo”, sinto como se já tivéssemos sido tragados pelo mundo invertido de Vecna há muito tempo. Mas estou longe de achar que há mocinhos e bandidos, faroeste, russos comunistas versus americanos capitalistas ou uma luta do bem contra o mal. Não quero lidar com a realidade como se participasse de um clube como o de The Goonies. O mistério a desvendar é outro, e os desafios diante da espetacularização e do engajamento das pessoas diante dessas histórias recontadas, parece-me, têm sido pouco enfrentados.
Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.