Stênio Gardel e sua mãe, Irene, em evento do Dia das Mães na Escola Normal Rural de Limoeiro do Norte (CE), 1990 (Acervo pessoal)

Bagagem Literária,

A livraria da Irene

Pisando as ruas de Limoeiro nas minhas visitas mais recentes, percebi que a Livraria do Joãozinho não está mais lá

01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91 mar

O começo de uma história. Momento definidor para todo o texto, momento de delicada captura, pelas inúmeras opções. Podemos iniciar pelo nascimento da personagem, e seu desenvolvimento narrativo acompanharia o biográfico. Podemos, por outro lado, escolher um ponto em que toda a história já aconteceu, e a narração iniciaria com um olhar para trás. Algum meio termo também é possível, como escolher um instante crucial na narrativa, que não é nem inicial, tampouco ulterior ao restante. Se alguém (ou eu mesmo) decidisse contar a minha história, por exemplo, poderia iniciá-la a partir da minha relação com a Livraria do Joãozinho.

Ela ficava no centro de Limoeiro do Norte, minha cidade natal, no interior do Ceará. Centro interioranamente típico. O mercado central, com mais de uma centena de boxes, que comercializavam de roupas de festas a artigos religiosos, de aviamentos a pratos feitos de panelada. Minha mãe trabalhava em um desses boxes, vendia confecções, na maior parte, para bebês. Nas ruas arrodeando o mercado, barracas de feira, feitas de tubos de ferro, estrado de madeira e couro e uma lona preta por cima, para proteger do sol impenitente, encandeante marca da cidade. 

A feira se esparramava mais, tomava ainda uma pequena praça, a da Coluna da Hora. O cálculo dos punhados de vida convertidos em ganha-pão, bem ali. E havia uma padaria de frente à praça, que fabricava um pão com massa branca e massa de chocolate, chamado “pão recife”. Anos depois, minha mãe fazia questão de comprar um para mim todas as vezes que eu visitava Limoeiro. 

Se o leitor é quem dá vida aos livros, o mesmo poderia ser verdade para aquele lugar

Duas ruas para o poente, outro mercado, das carnes e do bolo liso da minha vida. De quina com este, mais um, o das frutas e dos secos — não tenho ideia de onde foram derramar os molhados, fato é que me lembro apenas dos feijões, milhos, farinhas, broas e rapaduras. Finalmente, atravessando esse último mercado, chegando na calçada do outro lado, dava-se de frente com a Livraria do Joãozinho. 

Ali, parecia que a necessidade de alimentar a mente, assim como se alimenta o corpo, era uma verdade geográfica. Na minha memória, Joãozinho era um senhor baixo, com uma barriga simpática, rosto redondo, cabeça meio calva e sorriso convidativo. Sempre me deixava entrar e ficar na livraria, mesmo que eu não comprasse alguma coisa todas as vezes que ia lá. Eu não tinha condições de comprar alguma coisa todas as vezes, ele conhecia minha mãe.

Acredito que havia uma placa com o nome real da livraria, mas ele me escapa. Prefiro assim, lembrar do Joãozinho em vez de uma placa. Lembro ainda de uma marquise austera, sobre a entrada do ambiente pequeno e um tanto escuro, melancólico até. Se o leitor é quem dá vida aos livros, o mesmo poderia ser verdade para aquela livraria, que avivava com estudantes e pais no fim das férias escolares.

Cadernos

Confissão: fim das férias eram os dias do ano pelos quais eu mais aguardava. Ir à livraria com minha mãe, comprar os livros da lista escolar, cadernos, canetas, lápis, cadernos, borrachas, apontadores, cadernos, resmas de papel, cadernos, pastas colecionadoras, cadernos, cadernos, cadernos. Paixão ou obsessão, ponto de vista. 

Eu sou testemunha ocular e táctil da transição do caderno de capa mole para o caderno de capa dura. E os livros, ah, os livros. Didáticos e paradidáticos, amava todos. Um cheiro em cada um, admiração pelas ilustrações que lhes davam face, a lombada rígida que lhes servia de espinha dorsal, suas fisiologias internas organizadas nos sumários, o volume aberto em um abraço. 

Tinha os seis volumes de Matemática: temas e metas e a Gramática essencial da língua portuguesa, de Luiz Antonio Sacconi, que guardo até hoje, com meu nome e o da cidade escritos com a letra da minha mãe na primeira página. Tinha O rapto do garoto de ouro, O escaravelho do Diabo, A ilha perdida, da Coleção Vagalume, e a Série Bom Livro com suas capas novelescas: Dom Casmurro, Esaú e Jacó, O guarani, Senhora, A moreninha, O crime do padre Amaro. Meus primeiros olhares para a literatura, vitais. 

Livros e material comprados, outro ritual. Em casa, aquele arrastado final de tarde de domingo, na mesma mesa em que eu fazia o dever de casa, ajudar ou fingir ajudar minha mãe a cobrir os livros. Uma medição do tamanho da capa e da contracapa abertas sobre uma folha de plástico transparente, deixando dois ou três dedos a mais como bordas. Marcação superior e inferior da lombada, altura e largura do livro. Depois, os recortes: um retângulo seguindo as bordas, em seguida um trapézio superior e um inferior, partindo das extremidades com o lado maior, o lado menor sendo o traço indicador da lombada. 

Então, era ir dobrando o plástico para o verso das capas, e prender com durex. Cuidados para proteger o corpo dos livros, suas imensidões, os conhecimentos que compartilhariam comigo, para adiar-lhes os efeitos das intempéries, manuseios e caminhos, para tentar afastá-los das possibilidades de dor. Livros não são meros objetos, livros são os objetos mais humanos.

Cheques

E, no entanto, o tempo. Ele doa e arranca. 

A idade projeta luzes antes estranhas aos meus olhos de menino. Ao final da compra, minha mãe de um lado do balcão, seu Joãozinho do outro, um ror de material e livros no meio, a mesa e o jogo da negociação. Minha mãe pedia, pedindo mesmo, um desconto aqui nas resmas, outro acolá naquele livro volumoso. Um parcelamento, então? 

Ela preenchia e folheava cheques e cheques. Eu mal sabia o que eram cheques e como funcionavam, mas hoje imagino a preocupação nos olhos de minha mãe e percebo que me sentia envergonhado por ela. Eu estudava, crescia, e ela se consumia por mim, seus dias, vontades e pequenos ganhos na apertada caixa do mercado central. Ela envelhecia e, assim como os cheques, eu não dava por isso. Seguíamos o desenho da natureza.

Pisando as ruas de Limoeiro nas minhas visitas mais recentes, percebi que a Livraria do Joãozinho não está mais lá. Outra loja, não sei de quê, não sei por quê, lhe tomou o espaço. Não preciso ir a Limoeiro para perceber que minha mãe não está mais lá, nem aqui. É o dever da morte, acompanhar-nos.

Restamos eu e a cidade, afastados, e ligados por estradas de chão, memória e coração, essas as mais esburacadas. Ainda assim, são os momentos vividos com minha mãe na Livraria do Joãozinho que fazem das livrarias e papelarias um pouco casa para mim, lugar de meu conforto e minhas faltas. Resgato passados ao caminhar entre as estantes, inclinar o pescoço para ler os títulos, ler as sinopses ou primeiros parágrafos, interpretar as capas, testar os intermináveis modelos de canetas e continuar desejando uma infinitude de cadernos. 

Agora, no fim deste texto, volto ao começo. Desafio-o, desfaço-o, desdigo-o de uma maneira apenas possível com as palavras e a literatura. A minha história vai começar, sempre, com a minha mãe.

Quem escreveu esse texto

Stênio Gardel

Escritor e especialista em escrita literária, é autor de A palavra que resta (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “A livraria da Irene”

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