As Cidades e As Coisas,

Vias sujas de sangue

A lei não impede que ruas sejam nomeadas em memória de criminosos que violentaram mulheres

23jul2021 | Edição #48

Ruas são espaços de passagem por meio dos quais podemos ter a experiência do espaço urbano. Lembramos os endereços em que vivemos, sabemos de cor os espaços que nos marcaram. Para o poeta João do Rio, as ruas são sulcos na cidade. Têm alma e, mais do que isso, têm nome. Pela legislação, esse nome é de atribuição das prefeituras e câmaras municipais. Não é possível homenagear pessoas vivas ou que tenham se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava, mas não há nada que impeça que os logradouros sejam nomeados em memória de criminosos que violentaram mulheres.

Um grande movimento tem se ocupado de remover e renomear espaços cujos nomes pertencem a ditadores. O Minhocão, ponto de circulação importante de São Paulo, deixou de homenagear o general Costa e Silva, presidente da ditadura militar, sendo renomeado João Goulart, deposto pelo golpe de 1964. Também têm sido questionados nomes de ruas, praças, rodovias e até monumentos em memória aos bandeirantes, como Borba Gato e Anhanguera, e outras figuras que remetem à exploração escravista ou à perseguição a indígenas. No entanto, dificilmente são questionadas as ruas que levam nomes de políticos, militares, escritores e tantos outros que mataram filhas, esposas, amantes e outras mulheres que faziam parte de seus círculos — os feminicidas.

Matar uma mulher não é só lhe tirar a vida; é apagar sua existência diante da sociedade. Quando seu algoz passa a ser parte do espaço construído da cidade, sua memória e existência são novamente profanadas. Poucas mulheres emprestaram seu nome a ruas pelas quais circulamos, mas seus assassinos tomaram esse espaço de reverência — e nós não percebemos que são ruas manchadas de sangue.

No dia 20 de janeiro de 1906, o então presidente do Senado do estado de São Paulo deixou a mesa onde almoçava e se encaminhou para a sala de estar de sua residência. Ali encontrou sua filha, Sophia, bordando em uma poltrona. Aproximou-se dela, encostou um revólver em sua testa e disparou-lhe um tiro. Sophia morreu na hora. Em seguida, ele se encaminhou para a sala adjacente, sentou-se ao piano e atirou contra o próprio ouvido. A família, em agonia, assistiu a toda a cena. Ele chegou a ser socorrido, mas acabou morrendo.

A população, comovida, aglomerou-se à porta. Os velórios aconteceram na cena do crime e o sepultamento foi realizado com honras. Sophia, que se casaria na semana seguinte, foi velada em seu vestido de noiva. Os jornais atribuíram o crime a “uma alucinação, cujos symptomas já dias antes haviam manifestado brandamente”. Sophia era filha de Peixoto Gomide, que em 1914 foi homenageado pela Câmara Municipal, que batizou com seu nome uma das ruas mais conhecidas da cidade, perpendicular à avenida Paulista. A morte de Sophia nunca foi mencionada nas honras oficiais.

Poucas mulheres emprestam seu nome a logradouros, mas seus assassinos tomam esse espaço de reverência

A poucos quarteirões dali é homenageado outro feminicida. A rua Moacir Piza rememora o advogado e jornalista que teve morte similar à de Gomide: assassinou a amante, a meretriz Romilda Machiaverni, com cinco tiros dentro de um carro na avenida Angélica, suicidando-se em seguida. A Câmara optou por homenagear Piza por sua contribuição à cidade. Machiaverni não foi lembrada.

Em São José dos Campos, o coronel Afro Marcondes de Rezende virou nome de rua após alvejar com diversos tiros e matar a esposa, Haydée França de Rezende, por causa de um desentendimento a respeito do noivado da filha. Rezende nem sequer foi julgado — o júri foi anulado diversas vezes por não haver outro oficial com sua patente para conduzi-lo ao tribunal. Quando ele faleceu, os jornais destacaram as honrarias militares que recebera durante 25 anos na Força Pública e o fato de ser viúvo. A causa da morte da esposa não foi mencionada.

Em Campinas, Alaor Correia Telles também se tornou logradouro após assassinar a esposa. Ao flagrá-la em adultério, Telles atirou contra Maria Edith, que morreu na hora. Também alvejou o amante, que sobreviveu.

Nossas vivências na cidade são marcadas pelo gênero, o que não significa só um corpo, mas uma série de experiências que se inscrevem por onde passamos. São poucas as mulheres homenageadas com nome de logradouros, mas seus assassinos estão presentes em nossa vida, muitas vezes em posição de destaque social.

Silenciamento

A cidade também é feita de processos de silenciamento, por meio de discursos que omitem histórias relegadas ao âmbito doméstico. No caso da filha de Gomide, seu noivo, o escritor Batista Cepelos, também dá nome a uma rua em São Paulo. Ela, a vítima, foi esquecida em todos os aspectos. Embora o assassinato seja o meio mais eficaz de silenciamento, também é possível destruir corpos e memórias de outras formas. O empresário Samuel Klein, fundador da rede varejista Casas Bahia, teve seu nome recentemente envolvido em denúncias de exploração sexual, abuso e pedofilia. Morto em 2014, teve seu nome dado à rua em frente à sede da empresa que fundou, uma das mais famosas do ramo.

Recentemente, a historiadora Suzane Jardim revelou a história de Jacinta Maria de Santana, mulher negra que vivia nas ruas de São Paulo e que ao morrer, em 1900, teve seu corpo embalsamado e exposto pelo professor de medicina legal da Faculdade de Direito Amâncio de Carvalho. O corpo foi exposto por décadas, sendo utilizado até para trotes por parte dos alunos. Somente após a morte de Carvalho, em 1928 — ano em que a Câmara Municipal rebatizou com seu nome a rua do Curtume, no bairro da Vila Mariana —, sua viúva requereu na faculdade a posse do cadáver de Jacinta e deu a ela um enterro digno. Carvalho também teve seu nome dado a uma das salas da faculdade, que não foi rebatizada após a história vir à tona.

Na contramão desses casos, na cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, após uma vigília de mulheres, a antiga praça Tubal Vilela foi renomeada. Vilela, vereador e prefeito dali nos anos 20, atirou nas costas de sua esposa em 1926, matando-a imediatamente. Em seu julgamento, que durou 28 dias, alegou “legítima defesa da honra” e foi inocentado por unanimidade pelo júri. Em 2017, a praça ganhou o nome de Ismene Mendes, advogada que foi barbaramente torturada e violentada em 1985 após defender as famílias de setenta boias-frias mortos em um acidente na região.

Precisamos refletir sobre — e contestar — os nomes dos espaços em que pisamos, não só para que feminicidas não sejam exaltados, mas para que cada vez mais mulheres possam receber o destaque que lhes cabe.

Quem escreveu esse texto

Maíra Rosin

É historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Pesquisa as relações dos excluídos e marginalizados da História com a cidade.

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.