As Cidades e As Coisas,

Por uma memória sapatão

Plataforma colaborativa SaPatrônica quer resgatar a história do movimento lésbico e vivências de outros corpos dissidentes em São Paulo

12nov2024
Ato nas escadarias do Theatro Municipal contra as operações policiais do delegado José Wilson Richetti, em 13 de junho de 1980 (Arquivo Público do Estado de São Paulo/Reprodução)

Ainda que se conheça profundamente uma cidade, recorrer a mapas é parte do cotidiano. Mesmo que se saiba o caminho, mapas são âncoras de apoio para pegar o ônibus, para entender em quanto tempo se vai chegar. Mas o que aconteceria se, em vez de nos limitarmos à bússola na tela, interrogássemos a cartografia? O que tem de nós entre aquelas linhas e nomes? Onde demos nosso primeiro beijo? Em que lugares sentimos medo? Quais espaços acolhem? Quais repelem? O mapa passa a ser âncora para orientação de outro tipo, passa a organizar histórias.

A memória do dia — e do lugar — em que disseram em voz alta que o que acontecia naquela rua era um “beijo feio”, um beijo entre duas mulheres. O som das palavras e o próprio beijo não ficam marcados no espaço construído, são fugazes. Mas a memória opera a conexão entre o episódio e a rua. E se perguntarmos ao mapa quem veio antes?

Um pequeno apartamento na rua Aurora, em São Paulo, pode ser só mais um lugar pelo qual se passa, uma paisagem não notada. Suas pequenas varandas abrindo caminho para olhar a rua movimentada de uma parte da cidade que já viu dias melhores. O espaço construído ganha camadas se pudermos imaginar Cassandra Rios diante de sua máquina de escrever ou se a memória puder reconstruir e dar materialidade ao lugar de edição do periódico Chana com chana.

Dona de uma casa noturna, conhecida por acolher lésbicas, Pelé foi capaz de evitar ainda mais violência

A transitoriedade do beijo e a perenidade do papel jornal encontram seus endereços, permitindo que se salte de experiências individuais para dimensões coletivas de um espaço dissidente e disputado. Para que esses movimentos possam acontecer é preciso, antes de tudo, registrar. A violência da interpelação na rua, o lugar de trabalho do Grupo Ação Lésbica Feminista são elementos indistintos se novas camadas cartográficas não forem ativamente produzidas. Para que a memória possa trabalhar, temos que contar outras histórias sobre os lugares.

Uma cidade não é feita só de pontos e linhas no mapa, mas de sonoridades, imagens e histórias — que muitas vezes a cidade busca esquecer. Como as operações, comandadas pelo delegado José Wilson Richetti, responsáveis por prisões arbitrárias de prostitutas, travestis, homossexuais e pessoas negras, além das mais bárbaras agressões contra seus corpos, perpetradas pelo poder público como resposta à simples ocupação das avenidas do centro. Nesse registro, o Theatro Municipal ganha outros contornos e novas leituras. Em 13 de junho de 1980, é o ponto de concentração de movimentos sociais contra a violência de Estado. Caminhando em direção ao Largo do Arouche, manifestantes ecoavam gritos como “Ada-ada-ada, Richetti é despeitada”, de braços dados em defesa do território.

Apesar dos protestos, as operações policiais seguiram. Em novembro daquele ano, bares deixaram de ser apenas bares, e passaram a alvos marcados. Conhecida como “Operação Sapatão”, uma ação circulou por estabelecimentos da rua Martinho Prado, também no centro de São Paulo, e deteve as mulheres que os frequentavam com um único pretexto: “você é sapatão”. Se há estátuas que memorializam figuras importantes, há aquelas que nunca são esculpidas em praça pública. É preciso erguer novos pedestais: Pelé, dona de uma casa noturna e de um bar, conhecida por acolher lésbicas de diferentes idades e contextos, foi capaz de evitar ainda mais violência, nas ações da Polícia Militar nos bares lésbicos da região..

‘Beijar feio’

A produção dessas camadas de registros é o objetivo do projeto SaPatrônica, uma plataforma colaborativa que se propõe a resgatar historicamente o movimento lésbico e vivências de outros corpos dissidentes e de seus aliados em São Paulo. Com roteiros de caminhada, vídeo-poemas e um mapa interativo, queremos dar lugar ao que é pouco visível. Em um curta-metragem, a diretora Jenn Cardoso convida sapatões a “beijarem feio”, tornando coletiva a dimensão do insulto, desfazendo o ponto no espaço em uma rede de beijos em público.

Um olhar mais apurado para a cidade e seus personagens escondidos é também uma tentativa de entender o caminho até aqui. Afinal, a cidade que hoje é palco da maior Parada LGBTQIA+ realizou sua primeira Marcha do Orgulho apenas em 1996, mais de 25 anos depois do marco norte-americano de 1970. Mas isso é só uma data no calendário se não estiver acompanhada da lembrança de quem esteve ali, desbravando aquele espaço. Como a ativista Rita Quadros, que relatou a experiência com lágrimas nos olhos em sua entrevista ao projeto: “A gente ainda estava num momento em que nossa vivência sexual tinha geografia e horário. Você podia ser sapatão, gay, mas desde que vivenciasse isso num determinado horário e num espaço delimitado. Então, olha que transgressão… Era muito emocionante você estar à luz do dia na avenida Paulista”.

Precisamos voltar o olhar para as ruas hoje, para as distâncias e as estruturas que nos separam, em busca de novas possibilidades para as cidades. Contar a história de quem teve horário e lugar determinado para existir, para que não tenha que negociar prazo de validade e perímetro para sua existência. Contar a história a partir das lentes de quem vive e de quem morre lutando pela vida, não de quem mata e manda matar.

Quem escreveu esse texto

Letícia Canonico

Marina Bastos

Beatriz Cruz

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Então é Natal... e a Quatro Cinco Um tem um presente pra você!

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.