As Cidades e As Coisas,
A cidade desloca a retina
Um ensaio-manifesto poético sobre Recife do artista pernambucano que pesquisa o ambiente urbano e suas intersecções com a arte
27jun2022 | Edição #59Tempus edax rerum. O tempo que devora tudo e nos faz ficar mais atentos à passagem das coisas, aos seus acontecimentos no espaço. O espaço é o lugar onde as coisas acontecem, mas também é o-lugar-acontecendo. Recife é uma cidade relativamente grande-úmida-e-quente. Por ser grande, volto meu olhar para o espaço urbano, é o território pelo qual mais sinto afetos, onde mais aconteço. Por ser úmida, volto meu corpo para um rio que a cruza, chama-se Capibaribe. O rio é úmido-calmo-e-lindo. Vem em forma de linha de pipa, da periferia ao centro, acontecendo. Por ser quente, carrego um sol individual, frevo. Em ritmo de onda do mar-a-catu.
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O artista visual e pesquisador recifense Tacio Russo / Arquivo pessoal
Faz tanto tempo que eu espero esta cidade ruir
Com onze anos, matriculado em uma escola pública do centro do Recife, bem ali onde o Capibaribe encontra seu irmão Beberibe, ainda sem conhecer os trajetos dos ônibus, a pressa dos dias, nem o mapa da região. Um lugar muito longe do Alto Santa Teresinha, um morro na periferia da Zona Norte. Eu me matriculei também na cidade, na metróple, no cotidiano urbano. Como o movimento de um rio, por entre o terreno, aprendi a dançar, me fiz guia, e essa seria a chave para um futuro em que eu dançaria com a cidade e com a arte.
O tempo foi devorando, e esse território foi ficando cada vez mais pessoal. Chegava muito cedo à escola, fazia amizade com os ambulantes que armavam suas barracas nos arredores, com os guardas-noturnos que estavam prestes a largar e com o amanhecer silencioso do ambiente urbano. Desse amanhecer agora tenho saudade, porque rapidamente se tornava um grande formigueiro onde caixas de metais despejavam dezenas de pessoas a cada minuto e o barulho do ambiente crescia como um filme de suspense prestes-ao-susto. Eu via tudo, como espectador, deslocado, sentado na calçada.
Ser espectador da cidade se tornou um belo jogo do cotidiano. Fui seguindo os passos das pessoas que transitavam diariamente no centro do Recife. Gestos. Buscando signos e sensações, criando fantasias e registrando o que sentia em meio ao caos. Gestus. Atravessei tantas avenidas, pontes e pessoas dessa cidade que não demorou muito para que me sentisse atravessado também por ela. Cidade-fuga. Criei intimidade, uma dança ensaiada ao som das construções, sinfonia cotidiana, das conversas rápidas em botecos-de-café-doce-e-mal-passado, dos cruzamentos, das buzinas dos carros e das sirenes emergenciais. E eu, também, emergi.
A cidade que atravesso é a mesma que me atravessa
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Parar cinco minutos, sair do movimento automático da cidade contemporânea, respirar fundo e olhar pro céu em uma tarde de meia-lua, ou prestar atenção nos sorrisos de estranhos ao seu redor, ou fechar os olhos por alguns segundos. Perceber que essas sutilezas, essas poesias, são capazes de micromudanças na automatização cotidiana do ambiente urbano. O sorriso de um estranho se torna seu também e o sol que reflete no prédio espelhado parece iluminar todos-os-rostos-da-cidade.
Reerguer cidades para preencher ausências.
Sobre essas pausas reflito, utilizando a escrita nos muros da cidade com inquietações e pequenos manifestos sobre/para o espaço urbano. Reforçando a poesia que paira sobre os espaços de maior fluxo, com toda a gente, todos-os-olhos, pés-cansados, mãos-com-calos, cabeças-doloridas, eu vou, possuindo na língua frases pequenas, tentando tocar o concreto, refletindo sobre esses elementos.
Essa relação com a cidade dirige hoje todos os meus sentimentos criativos; pensar o território urbano e refletir sobre outras formas possíveis de existir dentro dele são propósitos-base para os meus poemas. A cidade se tornou meu objeto de estudo e a minha galeria de arte. É nela que mergulho e, quando choro, me afogo. As paredes podem ser percebidas como museus-transitórios, espaços orgânicos de mudanças, onde cada metro quadrado é uma moldura.
Toda cidade é passível de preenchimentos e vazios
Encerro, preenchendo uma lacuna para além das sensações individuais e explicitando a necessidade da ocupação artística, que é inerente à política. Colar cartazes, intervir, sentir esse ambiente é também lutar contra o burnout, é falar sobre direito à moradia, reclamar mobilidade urbana, é se afirmar, estruturar ligaturas, propor aquilombamentos, comparecer, estar. É tudo isso que sinto, que ponho em outros signos. Crio meu próprio significado para poder sobreviver na selva de pedra, e sobrevivo, com poemas tristes sobre a cidade.
Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.