O escritor e fotógrafo norte-americano Teju Cole (Divulgação)

As Cidades e As Coisas,

O rastro da violência colonial

Com crítica sofisticada, Teju Cole usa a arte para refletir sobre desigualdades, memória e os riscos de viver em uma metrópole pulsante

09jan2025

“Toda cidade para mim é como Lagos”, diz Tunde, protagonista de Tremor, segundo romance de Teju Cole, autor de Cidade aberta (Companhia das Letras, 2012). A partir de sua perspectiva, é possível imergir na paisagem urbana, nos deslocamentos, nas águas, no olhar dos moradores da maior cidade da Nigéria, onde ele cresceu:

Os cidadãos não são conhecedores superficiais. Sua visão de raios X é, na verdade, uma questão de sobrevivência num lugar em que o acaso desempenha um papel tão grande, e em que o destino sempre ameaça escurecer os céus e inundar o dia num dilúvio. Para quem não tem um senso de precisão bem aguçado, a cidade pode se tornar tão impenetrável quanto uma floresta, tão hostil quanto um salão de espelhos.

Para Tunde, toda cidade é como Lagos porque nenhuma crueldade lhe é estranha: “Qualquer ato de violência contra tais lugares é fácil de imaginar como violência contra pessoas que amo”, diz a certa altura. E completa: “Ver a devastação ser imposta a um povo orgulhoso e condenado em algum lugar é imaginar a mesma devastação sendo imposta ao povo que considero meu”. O tom é direto, complexo. Apresenta uma crítica sofisticada à hegemonia das narrativas sobre a desigualdade entre as nações, sobre os massacres, sobre a dinâmica perversa do mercado das artes plásticas, o privilégio da memória das origens e a convivência cotidiana com os rastros de violência colonial nas cidades.

Tunde é um homem bissexual de quarenta e poucos anos, professor universitário em Harvard e fotógrafo. É um artista e intelectual reconhecido, que viaja o mundo discursando em conferências. Casou-se com Sadako, de origem japonesa, e os dois se mudaram para os Estados Unidos para trabalhar. Marido e mulher, embora não gostem de se chamar assim, enfrentam uma crise no casamento e, ainda que as palavras “breve separação” sejam utilizadas para tratar de um período de distância entre o casal, há poucos contornos para conhecer mais detalhes dos desafios dessa relação, além de que Sadako precisa de espaço.

Ele é um homem sistematicamente interrompido, seja por si mesmo, seja pelos outros, pela dureza de sua própria consciência acerca das violências do dia a dia e também pela relação com o mundo. O livro começa com uma interrupção, a interdição de uma fotografia: “Não pode fazer isso aqui, é propriedade privada”, uma voz externa lhe diz, mas poderia ser uma encarnação do mundo que o desautoriza. 

Um livro que nos leva a conhecer uma cidade e as subjetividades dos seus moradores

O início de Tremor tem cor, é azul-violeta. O texto denso é uma constante; o filtro anil oferecido para começar a jornada nos acompanha de forma mais sutil até o final. Junto com isso, cresce a multiplicidade de vozes: o narrador deixa de ser o fio condutor para se fragmentar em muitos relatos sobre como é viver em Lagos. A narrativa não linear e as vozes que surgem passam a ecoar intensamente, até nos conduzir ao fim com uma tela preta.

Esse homem, aparentemente enrijecido, é encantado por música e arte, diante do seu comprometimento em ver e ouvir as coisas que lhe oferecem a suspensão das tensões, o que o leva a três noites inesquecíveis em Bamako. São momentos em que o tom de denúncia se desmancha, quando percebo que estou menos familiarizada do que gostaria com suas referências e seus instrumentos.

Bússola

À medida que os dias avançam, Sadako e Tunde parecem se reaproximar, ainda que estejam em viagens separadas. É bonito perceber que, mesmo envolto em tantos temas chocantes, o romance é verossímil justamente porque não existem grandes justificativas para explicar as dificuldades do casal. Eles precisam estabelecer alguma distância e logo reencontram o caminho um para o outro.

Em suas viagens, Tunde é a bússola. Ele apresenta perspectivas fundamentadas na experiência das pessoas no território, as histórias que acontecem no chão em que elas circulam, trabalham, estudam, enfrentam enchentes, praticam a religião, orgias, levam golpes, arriscam empreender e onde habita a memória dos mais velhos. Além disso, apresenta uma série de relatos, em sequência, que causam a sensação de estarmos numa feira: ouvindo cada relato como único, mas numa dinâmica que parece, por vezes, se misturar ou começar um próximo sob o eco do anterior.

Cada um deles revela a cidade. É inquietante não compreender o conteúdo de cada relato na sua totalidade, mas, ao mesmo tempo, reconhecer uma série de elementos que causam semelhança, afinidade. Sabemos também em que regiões das cidades certas coisas acontecem. A violência e a recusa total a se resumir a ela. O autor versa sobre uma sublime desobediência no cotidiano dos moradores.

As críticas geopolíticas cabem porque cabem no dia a dia dessa cidade que ele descreve. E todos se encontram para reinventar uma outra quando o sol cai. É no fechar dos olhos que todos podem se ver, sugere ele. O pensamento de Tunde é às vezes contraditório, crítico e sofrido, seja pelos males do mundo, seja por eventos que o afetam diretamente, como o luto de seu melhor amigo e o câncer de uma colega de trabalho. É um personagem em sofrimento, mas as camadas de dor só vão se revelando aos poucos, como num enigma. Tunde está em movimento, mas parece que seus movimentos pesam muito. Ele se movimenta melhor quando dança.

Tremor desenha para nós que as decisões tomadas por pessoas muito distantes, ao permitirem a desigualdade e o genocídio, nos farão sentir as consequências em outra escala e em toda parte, tendo o tempo como tecido condutor. Teju Cole, filho de nigerianos que passou a infância e adolecência em Lagos, escreve um livro verdadeiro, que nos leva ao chão do território para conhecer uma cidade e a complexidade das subjetividades dos seus moradores.

Quem escreveu esse texto

Jéssica Tavares

Pesquisadora do Instituto Pólis.