antropologia,

Ainda carrego as chaves na bolsa

Um ano depois do incêndio, antropóloga relembra o Museu, a tragédia e o grito para que a Amazônia seja protegida

02set2019

Em maio deste ano, um mês após o incêndio de Notre Dame, as obras de reconstrução da catedral estavam a todo vapor. Juntamente com outros turistas, que se aglomeravam nas imediações com as suas câmeras, vi os guindastes subindo e descendo, homens de capacete, estruturas de contenção montadas. Na televisão, corriam as notícias sobre as doações vultosas em dinheiro vindas de toda parte e dos projetos arquitetônicos que propunham interferências modernizadoras no modelo anterior. Os turistas, dentre os quais muitos brasileiros, comentavam o incêndio com exclamações de tristeza e afirmações sobre o valor da cultura. 

Também atacado pelas chamas, mas oito meses antes, o nosso Museu Nacional permanecia em ruínas, sem turistas, sem fotos e já sem comoção pública. Não se falava mais dele nos jornais ou nas ruas. Os donos do dinheiro espalhados pelo mundo, que correram para Notre Dame, não se animaram a doá-lo para o mais importante museu brasileiro e a mais longeva instituição nacional de pesquisa. Terá sido pelo fato das igrejas serem mais sagradas do que os museus? Ou pela diferença entre a França, conhecida por valorizar a sua história, e o Brasil, que parece sempre se mover na direção do apagamento de seu passado, da negação de sua cultura, do descaso por seus monumentos? Nosso Museu vinha sendo negligenciado há tempos, com recusas sistemáticas de verbas para a sua manutenção insistentemente solicitadas ao governo por nossos sucessivos diretores. Nunca fomos prioridade nas políticas públicas. 

Do dinheiro prometido pelos governantes no calor da tragédia, só uma pequena parcela fora então liberada, suficiente apenas para as obras de contenção das paredes por meio de um telhado provisório, que servia também para proteger da chuva o que havia restado, permitindo os trabalhos de perícia técnica, para descobrir as causas do incêndio, e de resgate. Concluiu-se que um ar condicionado do auditório — um belo espaço com poltronas de madeira e assento de couro, como um cinema antigo, com as paredes cobertas por retratos a óleo de nossos diretores ao longo do tempo — havia entrado em curto-circuito, mesmo desligado, e fora responsável pelo início do fogo que se alastrou. 

Nomeada a causa, arqueólogos e técnicos imediatamente iniciaram o trabalho de escavação, pois com o desabamento de um andar sobre o outro, o chão se transformou em um complexo sítio arqueológico, de onde começaram a surgir objetos e seus fragmentos, uma pequena porcentagem do que havia ali antes, que vêm sendo pincelados, lavados, etiquetados. O resgate do crânio de Luzia em outubro ganhou repercussão e desviou a atenção pública do que se perdera e das precárias condições de trabalho naquelas ruínas. Em um dado momento acabaram-se as luvas e as máscaras e até o sabão para se lavar as mãos. Pediu-se ajuda que não veio. Os jornais estamparam a foto de nosso diretor em viagem à Europa, com as mãos em concha, em busca de dinheiro. 

Faz um ano hoje. Nosso Museu continua cercado por tapumes, invisível desde fora. Nunca mais o vi desde o dia posterior ao incêndio, embora saiba que as escavações continuam em ritmo acelerado, que a restauração da fachada foi iniciada e que há projetos prontos para a reforma do interior, com previsão de reabertura em três anos de ao menos parte de suas instalações. Nós que ali trabalhávamos, entretanto, e que o cercamos com um abraço naquele dia de extrema tristeza, continuamos, na maior parte, desabrigados.

O Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, o mais antigo do Brasil e o mais importante da América do Sul, que ali funcionava, encontra-se desde então sem sede. Seus professores e alunos não têm escritórios, mesas ou computadores. Dependemos de salas emprestadas para dar aulas. Os muitos livros que recebemos como doação de diversas instituições e pessoas físicas, do Brasil e do mundo estão aguardando o resultado da vaquinha virtual que fizemos para a construção de um espaço físico para eles, a nossa nova biblioteca Francisca Keller. Não pudemos contar com o dinheiro público e resolvemos passar o chapéu. É possível que, em um futuro próximo, instalem-se contâineres na área adjacente ao Horto Botânico da Quinta da Boa Vista, que nos servirão de escritórios. Por enquanto, estamos espalhados, alguns de nós trabalhando em casa, outros em escritórios emprestados, onde, mesmo em condições precárias, continuamos a produzir freneticamente, escrevendo, lendo, preparando nossas aulas e recebendo alunos para orientação. 

Sinto muita saudade de tudo. Da minha sala no palácio, cujas janelas se abriam para o jardim das princesas, com seus bancos de cimento e sua bela vegetação. Da presença cotidiana dos meu colegas nas salas ao lado e de nossos encontros nos corredores e no restaurante para conversas informais. Da nossa biblioteca cheia de livros, mesas e computadores para os alunos, da fonte do pátio central com o lago de peixinhos (que, diz-se, sobreviveram), em cuja borda nos sentávamos para comer e conversar no intervalo das aulas. Até das araras que ficavam nesse pátio, que felizmente já não existiam mais no momento do fogo, sinto falta, mesmo que às vezes começassem a gritar freneticamente, obrigando-nos a interromper a aula.

Saudades das três salas de aula equipadas com televisão, datashow e computadores. Dos encontros com os colegas de outros departamentos — zoólogos, botânicos, geólogos e paleontólogos — que fazem do Museu um lugar único na diversidade e qualidade do conhecimento produzido, e que agora se encontram igualmente dispersos por aí. Rostos conhecidos que nos acostumamos a ver no dia a dia, só de passagem, mas que, quando desaparecem, nos parecem tão essenciais. Às vezes, de olhos fechados, percorro os corredores do Museu, chego à minha sala, abro a porta, olho suas paredes amarelas e me sento em minha poltrona azul. Ainda carrego as chaves em minha bolsa. 

Parece haver uma sequência natural nos processos de luto:  passa-se do susto e da tristeza a uma saudade tão grande que chega a doer. Os eventos políticos que se sucederam à nossa tragédia, entretanto, não nos permitiram fazer essa passagem, e a saudade é obrigada a conviver com o susto, sensação que, parece, chegou para ficar.

O Museu Nacional era um centro de visitação e exposição, mas também de ensino e pesquisa. Estas duas atribuições enquanto instituição vêm sendo solapadas de modo violento desde a instauração do novo governo federal, com cortes de bolsas e subsídios que nos permitiam trabalhar e aos nossos alunos estudar. Os parceiros de pesquisa dos antropólogos — indígenas, quilombolas, LGBTQ+ e outras minorias— vêm sendo atacados e ameaçados de modo avassalador e a nossa sensação de impotência às vezes nos deixa em pânico.

Não posso deixar de pensar no incêndio do Museu ao ver agora a Amazônia em chamas, exatamente um ano depois. Embora o primeiro tenha sido acidental e o atual criminoso, são ao final dois grandes corpos imolados, fartos da negligência, gritando por ajuda. Se o Museu parece ter ardido em vão, pois as políticas para a educação e cultura seguem ladeira abaixo, o meu maior desejo é que se ouça hoje o grito da Amazônia, que ela seja protegida, abraçada por leis fortes, reconstituida em suas feridas, como não conseguimos fazer ainda com a nossa casa queimada. 

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).