Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Uma professora em tempos de autocracia

No regime de Viktor Orbán, Renáta Uitz ensina como democracias morrem pela própria Constituição

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Até hoje me lembro do silêncio repentino que encobria a sala de aula toda vez que a professora Renáta Uitz entrava. Era verão de 2010, Budapeste, Hungria. No mesmo ano em que iniciei um mestrado em direitos humanos na Universidade Central Europeia (CEU), o premiê Viktor Orbán ganhara 68% dos assentos no Parlamento do país, o que lhe conferiu poder ilimitado. O silêncio entre os alunos na sala conotava um certo medo revestido de admiração. A rigidez de Uitz como professora talvez fosse expressão de sua convicção de que seu objeto de estudo, as constituições, importa.

Essa não é uma ideia trivial, em especial num país como a Hungria. Em 2012, quando regressei ao país para o doutorado em direito constitucional comparado sob orientação de Uitz, o premiê húngaro acabara de usar a sua supermaioria no Parlamento para adotar uma nova Constituição no país, a seu gosto. Aquilo foi inesperado, diz Uitz. “Quando o partido que nos deu como primeiro-ministro Viktor Orbán assumiu o poder na Hungria, nós não esperávamos mudanças constitucionais. O partido nunca fez campanha sobre uma reforma constitucional”, contou Uitz em entrevista, em São Paulo, em novembro de 2019.

O que resta da liberdade quando leis são reformuladas ao bel-prazer dos governantes?

Uitz é talvez a constitucionalista húngara mais vocal sobre os retrocessos democráticos em seu país. Muitos desses retrocessos têm sido viabilizados por mudanças constitucionais, o que aos olhos de juristas como ela soa estranho, já que constituições são vistas muitas vezes como documentos que viabilizam mais liberdades democráticas, não o contrário. Vide a África do Sul pós-apartheid ou o Brasil pós-ditadura.

Recessão democrática

A história recente na Hungria nos faz questionar: o que resta da liberdade quando leis são reformuladas, passo a passo, ao bel-prazer dos governantes de plantão? O que resta do Estado de direito quando reformas judiciais, inclusive no acesso e funcionamento da Corte Constitucional, são feitas com o intuito de impedir que medidas do governo venham a ser declaradas inconstitucionais? Uitz afirma que “recessão democrática soa como um termo que denota um desastre natural, mas é na verdade um processo feito por humanos”. A perspicácia da professora está em destravar os nós jurídicos por meio dos quais a liberdade é sufocada. E nisso suas lições sobre a Hungria muito nos interessam em terras brasileiras.

Diretora do programa de mestrado em direito constitucional da CEU, Uitz viu de perto o desmantelamento da liberdade acadêmica no país. Em 2017, o governo húngaro aprovou uma lei apelidada de Lei-CEU, com vista a dificultar a continuidade no país da universidade norte-americana fundada em 1991 pelo filantropo bilionário George Soros, hoje visto como inimigo pelo premiê húngaro. Determina a lei que, para funcionar, a universidade estrangeira deve manter uma sede no país de origem. Apesar de a CEU ter aberto um campus nos EUA, o governo húngaro não assinou o acordo de permanência da universidade do país, na prática expulsando-a. Grande parte da instituição se mudou para a Áustria.

O episódio revela quão frágeis podem ser universidades diante de um líder autocrático. Apesar de docentes serem frequentemente perseguidos por suas visões, sua liberdade acadêmica em geral é protegida como um direito humano. Em contraste, a autonomia universitária é bem precária, percebe Uitz. Perseguir universidades por mudanças orçamentárias e de credenciamento chega a ser perigosamente fácil para governos iliberais como o de Orbán. Uitz afirma que “universidades podem ser disciplinadas por meio de cortes orçamentários, da nomeação de administradores financeiros e reitores, a fim de controlar os seus gastos, e também por meio de bolsas de estudo e alocação de fundos para os alunos estudarem em determinados lugares e, por último, mas não menos importante, por meio do financiamento do salário dos professores”.

É peculiar ao populismo autoritário certo antielitismo ou anti-intelectualismo. Para Uitz, no entanto, no caso da liberdade acadêmica, é muito mais do que isso. Universidades são desmanteladas em autocracias porque o que menos esses governos precisam é de “pessoas que os critiquem na esfera pública”. Para ela, “os ataques a universidades e aos próprios acadêmicos são parte de um projeto maior de supressão e silenciamento do dissenso na medida do possível”.

Aqui mora o principal perigo do uso da lei para fins iliberais: converter um instrumento originalmente voltado à emancipação das liberdades, como as constituições, em camisas de força que sufocam democracias. Uitz mostra que, por vezes, são mudanças aparentemente pequenas que mais suprimem as liberdades democráticas. Um exemplo disso são as modificações introduzidas por Orbán no credenciamento de igrejas, as quais silenciaram religiosos que se opusessem ao regime húngaro por colocá-los em situação juridicamente frágil, não podendo, por exemplo, empregar funcionários para caridades atreladas às igrejas.

Uitz mostra que são mudanças pequenas que mais suprimem as liberdades democráticas

De outro lado, autocratas podem fazer uso de momentos de emergência constitucional para asfixiar liberdades. Pandemia é um deles. O governo húngaro conseguiu que o Congresso aprovasse uma lei que lhe permite governar por decreto, indefinidamente. Com franqueza, Uitz escreveu em março deste ano no blog alemão Verfassungsblog (blog constitucional): “Não é preciso suspeitar de travessuras schmittianas em todos os cantos para descobrir que um projeto de lei que autoriza o Executivo a governar por decretos sem limites processuais ou substantivos em meio a uma crise aberta se parece com a Lei de Concessão de Plenos Poderes (Ermächtigungsgesetz) de 1933”, em referência à legislação do regime nazista que ampliou poderes do chanceler Adolf Hitler. 

Talvez seja a franqueza de acadêmicas como Uitz que nos propicie a clareza necessária para enxergar o futuro em tempos nebulosos. Uitz não tem medo de ser uma intelectual de primeira grandeza e fazê-lo no espaço público. Por isso, sua voz é imprescindível para a democracia húngara.

Iliberais como Orbán e Bolsonaro, apesar das diferenças na extensão do poder político que cada um detém neste momento, sabem que democracias morrem quando lhes falta o oxigênio do dissenso. Controlar o currículo das escolas primárias e banir, por exemplo, discussões críticas ao governo é uma das táticas favoritas de autocratas. Ou construir formas de separar escolas para crianças da população rom (cigana) daquelas de crianças brancas para preservar a ideia de uma nação etnicamente homogênea, cristã e servil ao governo. “Governos iliberais sabem que a educação cívica começa nas escolas primárias e eles asseguram que tanto o currículo como o ambiente educacional sirvam aos seus propósitos”, afirma Uitz.

O fardo da história

Há uma piada dos tempos em que morei na Hungria. Brincava-se, com a ironia que é característica dos locais, que se perguntar a qualquer húngaro quais são as notícias do dia, ele responderá levando os rumos da conversa para o antigo Império Otomano ou Austro-Húngaro. Para o bem ou para o mal (ou para ambos), os húngaros parecem carregar consigo a história como um fardo pesado, mesmo nas conversas mais cotidianas. A saga de Orbán ao poder transforma esse fardo em potência autocrática, reivindicando para si uma revolução cristã, conservadora, xenófoba e autoritária. “Quando os atores políticos iliberais entram em cena, eles adoram falar a linguagem da revolução. A revolução aqui é usada muito frequentemente em um sentido simbólico, mas ela é uma referência a um tipo de reforma, um tipo de reforma sistêmica, em que tudo é possível novamente e você se volta à Constituição para tornar possível essa mudança”, nos ensina Uitz. 

Em entrevista, Renáta Uitz compara a derrocada da democracia húngara com o caso brasileiro

Para ela, a chave da liberdade em tempos autoritários está em resgatar o sentido original do constitucionalismo para além das falsas revoluções que fazem da Constituição um instrumento de poder. Aqui, o peso da história, antes de ser reinventado por Orbán, é na verdade libertador, nos explica Uitz. Ela diz que na transição para a democracia na Hungria, em 1988 e 1989, havia em mente — tanto lá quanto aqui — a Constituição como um projeto capaz de regular o poder para tornar as pessoas mais livres. “Recuperar a linguagem da Constituição, que é um conjunto de regras que põem limites à ação política, em vez de reinventar a nação pela centésima vez, é realmente crucial” nos dias de hoje, defende a acadêmica.

Na mesma época, ideia similar florescia no Brasil com a Constituição de 1988, hoje posta em xeque pela investida de políticos autoritários. Uitz pondera: “Eu não acho que nós, em algum momento, terminamos por ver essas constituições como bases das regras do jogo, e isso é o que continua nos mordendo pelas costas. E eu não gosto de ver isso”. Eu ou qualquer democrata também não gostamos.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Thiago Amparo

É professor da FGV Direito SP e colunista da Folha de S.Paulo.

 

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.