Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Caleidoscópio do poder

‘A organização’ esquadrinha formas de poder público-privadas e jogos de espelhos na ascensão e queda da Odebrecht

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

Em um thriller sobre a ascensão e queda do grupo Odebrecht, Malu Gaspar recria as conexões entre poder econômico e poder político que atravessaram a história brasileira nas últimas décadas. O leitor tem a impressão de olhar por um caleidoscópio de formas distintas de relações público-privadas — anéis burocráticos, triângulos de ferro e redes de influência — em todas as cores do espectro político e envoltas em todo tipo de brilho e luxo. O encantamento que um caleidoscópio produz depende não só de suas peças avulsas, mas da sua multiplicação, produzida pelos espelhos em seu interior. É uma ilusão de ótica. Da mesma forma, a Odebrecht acreditou que esses padrões de interesses cruzados eram tão vastos que gerariam um sistema blindado. Não eram.

Gaspar desenha círculos de interação, informação e pressão entre empresa e agentes públicos desde a ditadura militar de 1964. Há quem suponha que a ausência de representação democrática — eleições livres, partidos políticos, freios e contrapesos etc. — protegeria o Estado de interesses nefastos. É apenas opacidade. Tente tapar o fundo de um caleidoscópio com as mãos: as formas estarão ali, só não conseguiremos enxergá-las por falta de luz. As alianças entre militares e a Odebrecht foram mediadas por homens como Norberto Odebrecht, que considerava possível “entrar na lama com os porcos, mas sair do outro lado limpo e de terno branco”.

O livro mostra como a propulsão nacional da Odebrecht se valeu de obras que, entregues sem concorrência, tiveram um custo enorme, erros técnicos e ausência de expertise. Se não fossem os militares e seus burocratas reconfigurarem as condições de negócios para que ficassem ainda mais favoráveis à empresa, obras de enorme vulto, como as usinas nucleares, não sairiam. 

Em períodos democráticos, novos atores entram em cena, e as geometrias do poder ganham novos ângulos. Empresários passam a se preocupar não só com os burocratas ou com a alta cúpula do Executivo, mas também com a produção do Legislativo. Essa triangulação de interesses, informações e apoios pode excluir outros interesses existentes na sociedade. Gaspar descreve a descoberta de caixas de documentos da Odebrecht que comprovavam o esquema de pagamento para que suas obras fossem incluídas por parlamentares como emendas ao Orçamento da União. Os padrões Odebrecht já estavam presentes: atas minuciosas de encontros com políticos, pedidos de apoios misturados ao planejamento de obras de infraestrutura importantes ao país. Isso tudo ainda em 1993.

O giro dos governos e dos dirigentes da empresa muda vagarosamente os desenhos formados, juntando novas formas de relação entre poderosos e descartando outras. O olhar atento, no entanto, percebe que o novo padrão visto no caleidoscópio guarda semelhanças com o anterior.

Tentou-se uma tolerância zero contra a corrupção. Destruiu-se o setor, mas a corrupção não acabou

A internacionalização da empresa na América Latina, em países como Peru e Venezuela, é anterior à ascensão do Partido dos Trabalhadores. A expansão internacional do grupo torna-se maior a partir dos governos Lula e Dilma. A Odebrecht construiu obras importantes e complexas, como o metrô de Lima, que revelavam a capacidade técnica adquirida pela empresa e suas conexões políticas locais. Não à toa, todos os presidentes peruanos pós-Fujimori estão implicados no escândalo da Odebrecht.

A existência de pagamentos indevidos, subornos ou contribuições ilegais de campanha também não é uma novidade no grupo. Gaspar calcula que o Departamento de Operações Estruturadas movimentava 120 milhões de dólares em 2008. Quatro anos depois, em 2012, passava de 700 milhões de dólares. O Departamento foi aperfeiçoado ao longo do tempo, com uso extensivo de obras internacionais para explorar falhas de controle em países como Venezuela e Angola, organização de múltiplas camadas de offshores e trusts, e softwares de registro de contabilidade paralela. Existiam regras bastante rígidas de funcionamento que eram, por vezes, burladas pelos executivos em benefício próprio. 

Essas formas contavam com uma rede de conivência, colusão e participação do setor privado. O clube das empreiteiras, o cartel que dividia obras na Petrobras, foi sustentáculo das relações entre as empresas e a estatal. Fraudes e regulações fracas ao redor do mundo permitiam que bancos não “olhassem” as transações que passavam por eles. Em passagem notável, Gaspar relembra as trocas entre a Cervejaria Petrópolis e a Odebrecht: a primeira, para evadir o fisco, precisava trocar reais por dólares, a serem depositados em offshores. A segunda precisava “repatriar” recursos para seus pagamentos ilícitos em dinheiro, em território nacional. Uma mão lavou (o dinheiro) (d)a outra.

Disputas de poder na empresa

A peça mais reluzente e curiosa desse caleidoscópio é a própria Odebrecht. Gaspar desfaz a impressão da Odebrecht como uma empresa monolítica e coesa. Ela tinha uma cultura corporativa agressiva, baseada em lemas de seus manuais, citados conforme a conveniência do interlocutor. No entanto, em muitas passagens do livro é possível ver disputas de poder ferrenhas em seus interstícios. Nenhuma tão grandiosa e edípica como a briga entre Emílio e Marcelo. O leitor, ao final, cogita se a guerra entre eles levou ao chão não só suas fortunas pessoais, mas as fortunas da empresa e do país. Fortuna é, ao mesmo tempo, sinônimo de recurso e destino. 

Nos últimos anos, a sociedade brasileira imaginou que seria possível aplicar uma espécie de tolerância zero vingativa contra a corrupção. Interromper obras, anular contratos e multiplicar sanções sobre a mesma empresa, sem nunca considerá-la cumpridora de suas obrigações, seria necessário para mudar o padrão de relações público-privadas no Brasil. Segundo o relato de alguns executivos ouvidos por Gaspar, destruiu-se o setor, e a corrupção não acabou. Teria sido outra ilusão de ótica. Punição, sem dúvida, é uma parte importante para criar o padrão de relações público-privadas que desejamos, mas é insuficiente. Aperfeiçoar instituições, aumentar o acesso ao poder público à diversidade de interesses presentes na sociedade civil e nas empresas, repelindo formas mais nefastas de imbricamento entre poder econômico e poder político, é o desafio que temos pela frente. O próximo capítulo será tão importante quanto os anteriores. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Raquel Pimenta

Doutora em direito, é pesquisadora da FGV-SP.

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.