O poeta Régis Bonvicino (Reprodução)

Memória, Poesia,

Vida, paixão e praga de Régis Bonvicino

O poeta paulistano, morto aos 70 anos no último sábado, dedicou grande parte da sua vida à poesia como uma espécie de maldição, um flagelo, ou seja, uma paixão

07jul2025

Em um dos seus primeiros poemas, Régis Bonvicino (1955-2025) definiu a poesia como “mera praga”. Em um dos últimos, escreveu que poesia é “atraso de vida”, “desserviço”, “dá nojo em barata” e “suplício”. 

Desde os vinte anos de idade, ao estrear em livro com Bicho papel em 1975, até o último sábado (5), quando morreu em Roma por consequência de uma queda, Régis dedicou grande parte da sua vida à poesia como se ela fosse essa espécie de maldição, um verdadeiro flagelo, ou seja, uma paixão. A pergunta sobre o que é a poesia e por que fazê-la seguiu presente, de um modo ou de outro, em todos os seus livros. O crítico Alcir Pécora escreveu que o seu trabalho se reafirma ao fazer uma crítica implacável da própria poesia, movendo-se taticamente em torno das suas condições de existência e dos seus impasses.

Régis dedicou-se não apenas à própria poesia, o que já não seria pouco. Foi editor e divulgou o trabalho de outros poetas em várias revistas literárias que criou desde a juventude. Ainda nos anos 70, ao lado de outros escritores e artistas visuais, como Julio Plaza e Lenora de Barros, editou três publicações à época alternativas e hoje fundamentais para a história da poesia brasileira do período: Poesia em greve, Muda e Qorpo Estranho. Já em 2001, concebeu a revista Sibila, que logo se tornou uma importante referência na área da poesia e alcançou certa longevidade para uma revista dedicada apenas ao gênero — teve onze números impressos até se tornar apenas digital, quando aos poucos perdeu influência.

Teve também atuação relevante como tradutor — sempre de poesia, afinal dizia que “a prosa é para pessoas calmas, lentas, e eu sou frenético”. Traduziu do francês, do espanhol e sobretudo do inglês uma série de poetas até então pouco conhecidos entre nós, a exemplo de Robert Creeley e Charles Bernstein, com quem teve interlocução permanente. Seus gestos e escolhas, como tradutor ou editor, quase sempre tinham caráter de intervenção no ambiente cultural, privilegiando obras inventivas ou com potencial de inovação.

Em pelo menos uma ocasião fez também o movimento contrário: organizou uma antologia para divulgação da poesia brasileira no exterior. Nothing the Sun Could Not Explain saiu pela prestigiosa casa editorial Sun & Moon Press, de Los Angeles, em 1997. A publicação foi responsável pelas primeiras traduções de Torquato Neto e Paulo Leminski para o inglês. Com Leminski, aliás, nutriu um diálogo que durou quinze anos e resultou em um livro incontornável sobre o poeta curitibano, Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica (Editora 34, 1999), no qual Régis juntou um punhado de cartas que ambos trocaram e outros materiais críticos.

Régis Bonvicino e Paulo Leminski (Dico Kremer/Acervo de família)

Apesar de uma personalidade que ficou conhecida no meio literário como de difícil trato, realizou inúmeros trabalhos em parceria com pessoas de várias nacionalidades e gerações, em pelo menos cinco décadas de atuação. 

É como poeta, no entanto, que Régis Bonvicino deixa seu maior legado. Autor de uma obra original, consistente e com momentos de brilhantismo, publicou dez livros entre 1975 e 2006, desde a estreia com Bicho papel. Em 1991, com 33 poemas (Iluminuras), ganhou o prêmio Jabuti. Foi traduzido para várias línguas. E, aos setenta anos, encontrava-se em plena atividade, o que torna sua morte precoce ainda mais dolorosa para os seus leitores. Havia lançado um ótimo livro em 2023, A nova utopia (Quatro Cantos), e vinha se interessando em fazer gravações de seus textos: podem ser encontrados no Spotify alguns registros do último livro e de outro libreto anterior, de 2019, Deus devolve o revólver (e-galáxia).

Inovador incansável

Há poemas memoráveis em todos os momentos da obra de Régis, que também se modificou bastante com o tempo — em uma publicação internacional, o Historical Dictionary of Latin American Literature and Theater, foi definido como “um inovador incansável”. 

O poeta inicia sua produção sob forte influência do grupo concretista, enquanto nos últimos livros prepondera um tipo de anotação crua da realidade, às vezes escabrosa, sobretudo de cenas e eventos urbanos. Um dos seus poemas mais conhecidos, “Extinção”, ao descrever a vida de um lobo-guará em constante ameaça nas cidades, talvez seja o melhor exemplo dessa espécie de desencanto. Mas também há poemas de humor fácil, no estilo telegráfico de Oswald de Andrade, como é o caso de “Não há saídas”, gravado depois por Itamar Assumpção: “não há saídas/ só ruas viadutos/ avenidas”. 

Costumava se apresentar em festivais de poesia pelo mundo, embora tenha escrito em “Paráfrase” que “Toda leitura de um poema é ridícula” — poema, aliás, que ele gostava de ler. Havia ironia em quase tudo que escrevia.

Em 2020, em meio à pandemia, convidei Régis para participar de um curso online que eu estava ministrando na universidade sobre poesia contemporânea brasileira. Para a minha surpresa, ele ficou empolgado e logo aceitou o convite. No dia da aula, ele apareceu de óculos escuros às 9h30 da manhã e discordou de quase tudo que eu havia acabado de ensinar aos meus alunos sobre a poesia dele. Preferia ler os próprios poemas do que comentá-los. Causou sensação entre os estudantes. Após a aula, enviou inúmeras mensagens com referências aos alunos que iam do livro do Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço (“é o que há de melhor hoje”), ao rapper Tyler, the Creator. E os seus poemas tiveram grande impacto sobre a turma.

Quando eu ainda era estudante, também comentou por e-mail uma resenha que eu escrevi sobre seu livro Estado crítico (Hedra, 2013), discordando de alguns pontos. Disse que em sua poesia não existia humor involuntário, que era tudo voluntário, e coisas do tipo. Régis também parecia viver em constante estado crítico, o que para mim sempre foi uma parte da sua graça. Mas no final ele sempre dizia que eu era sério e estudioso.

Tive a oportunidade de encontrá-lo umas três ou quatro vezes. Gostava de conversar e, em matéria de poesia, parecia que estava sempre por dentro de tudo ou pelo menos gostaria de estar, diferentemente do que dizia publicamente. Régis lia poetas de todos os continentes. Acho que gostava pouco de prosa, mas muito de Kafka. Tinha um interesse genuíno pelas novas gerações, embora também conflituoso. Da última vez que nos encontramos, há um ano, em um bar meio decadente perto de seu apartamento em Higienópolis, ele não me deixava ir embora. Fui com ele até a entrada do seu prédio, ainda nos sentamos em um banco e ficamos mais um bom tempo conversando. Foi a última vez que nos falamos.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).