Ilustração de Veridiana Scarpelli

Laut,

A letra quente da lei

Pesquisadoras mostram como a linguagem jurídica pode ser sequestrada por projetos autoritários

01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95

O bordão “direitos humanos para humanos direitos”, vociferado tantas vezes no Brasil dos últimos anos, é uma síntese perfeita da operação política descrita em A lei da bala, do boi e da Bíblia: cultura democrática em crise na disputa por direitos. A frase, que já esteve na boca do general Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Jair Bolsonaro — atualmente ao lado do chefe no banco dos réus da ação penal que apura a tentativa de golpe de Estado do 8 de Janeiro —, apropria-se do vocabulário jurídico para produzir uma distorção que vai contra o espírito da lei. 

Nessa modalidade de gaslighting político, direitos universais garantidos a qualquer ser humano passam a ser condicionados por uma distinção que separa “pessoas de bem” de outras, desprovidas de direitos. A contradição em termos esconde-se por trás de uma lógica capenga, distorcida. Nas palavras de Renata Uitz, professora de Direito na Universidade de Londres e autora do prefácio, o livro das pesquisadoras Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa e Mariana Celano de Souza Amaral, do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut), se insere na vertente acadêmica que busca “rastrear os modos como a linguagem jurídica é sequestrada por atores populistas, iliberais e, por vezes, autoritários”. 

Na epígrafe escolhida pelas autoras, o cientista político Stuart A. Scheingold, ex-professor da Universidade de Washington, sustenta que “a lei é real, mas também é fruto da nossa imaginação”. E que, portanto, “a parcela da lei em que acreditamos se relaciona diretamente com a legitimidade das nossas instituições políticas”. A pesquisa levada a cabo por elas, um abrangente estudo de casos coletados no Legislativo, Executivo e Judiciário brasileiros a partir de grupos de interesse organizados em torno de três bancadas no Congresso Nacional — da bala, do boi e da Bíblia —, dá pistas preocupantes do tamanho da erosão infligida aos princípios que nortearam a Constituição de 1988. 

“Essas interpretações”, alertam as autoras, podem “concentrar poder e desequilibrar regimes de forma cumulativa, sem ‘golpes’ no sentido clássico”. E mais: “Nesse processo, o risco antidemocrático não deixa de existir pela simples derrota eleitoral de líderes autocratas”. Ou seja, um processo de erosão democrática que se dá dentro mesmo “das quatro linhas da Constituição”, no dizer repetido à exaustão por Bolsonaro. 

Desconstrução

A partir de uma série de projetos de lei, falas públicas e debates no Parlamento e no Judiciário, o livro analisa os argumentos jurídicos usados na disputa e na desconstrução de direitos pelas três bancadas citadas. 

A bancada da bala constituiu-se em torno das discussões do Estatuto do Desarmamento no início dos anos 2000. Grupos financiados pela indústria armamentista e representantes das polícias Civil, Militar e Corpo de Bombeiros aliaram-se por pautas de “preservação da ordem”, em dois eixos: a posse de armas pelo cidadão comum e a valorização das forças de segurança pública. Também se inserem nesse contexto iniciativas como a da redução da maioridade penal.

Desfiando máximas falaciosas como “o povo armado jamais será escravizado”, Bolsonaro empenhou-se pessoalmente na flexibilização do controle de armas e munições, por meio de decretos presidenciais (parcialmente derrubados depois na gestão Lula). Medidas justificadas como um direito oriundo diretamente dos direitos à vida, à liberdade e à legitima defesa.

“Agendas de endurecimento das penas ou fortalecimento da polícia ganharam centralidade, mesmo entre governos e associações do campo progressista”, anotam as autoras — sem mencionar diretamente casos como o do governador petista Jerônimo Rodrigues na Bahia, que comanda hoje a polícia que mais mata no país. 

Mais antiga das três, a bancada ruralista ou do boi remonta aos tempos do Império, atravessou a República e atuou na Constituinte de 1988. O livro observa que, em 2023, o setor agropecuário foi responsável por mais de 24% do PIB nacional e que, na atual legislatura, 81 dos 594 parlamentares são ruralistas (57 deputados e 24 senadores). O setor, de grande influência, esteve próximo dos governos Lula e Dilma. Posteriormente, um parcela radicalizada e insatisfeita aderiu ao bolsonarismo — com conexões estreitas com o golpismo, como revelou o inquérito no Supremo Tribunal Federal. 

A pesquisa dá pistas da erosão infligida aos princípios que nortearam a Constituição de 1988

Partindo de uma leitura enviesada do direito à propriedade, agentes do boi pressionam os Três Poderes para bloquear a demarcação de reservas indígenas, criminalizar movimentos sociais no campo e reduzir a fiscalização ambiental e do trabalho escravo. Uma de suas grandes trincheiras jurídicas, o Marco Temporal, tenta emplacar a ideia de que só poderiam ser demarcadas terras ocupadas por povos indígenas na época da promulgação da Carta, em 1988.

Atuando nas franjas da discussão de direitos relacionados à igualdade de gênero e à diversidade sexual, a bancada da Bíblia é a mais insidiosa delas, corroendo o caráter secular da lei no país. O livro ressalta a inspiração em organizações norte-americanas como a Alliance Defending Freedom (ADF), que se define como um “exército legal cristão”.

“Na passagem do século XX para o XXI”, dizem as autoras, “a máxima ‘crente não se mete em política’, popular no meio evangélico, começou a dar lugar a ‘irmão vota em irmão’”. Agindo muitas vezes em aliança tática com parlamentares católicos, a bancada da Bíblia evoca o “direito à vida” para dinamitar a discussão do aborto e dos direitos reprodutivos da mulher, o casamento igualitário e a assistência do Estado às comunidades LGBTQIA+ — nos últimos anos, com particular ênfase contra pessoas transsexuais. Não à toa, Bolsonaro brandiu o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, criou um Ministério da Família para o qual nomeou uma pastora e indicou ao STF um ministro “terrivelmente evangélico”. 

A lei da bala, do boi e da Bíblia cumpre a desagradável função de nos lembrar que a eleição de Lula em 2022 não afastou os riscos à democracia brasileira. E que o espírito das leis pode ser subvertido de dentro da normalidade institucional, embalado por representantes do “bolsonarismo moderado” — essa contradição que anima inclusive amplos setores da imprensa do país. 

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Ivan Marsiglia

Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “A letra quente da lei”