
Bagagem Literária,
Traduzindo com robôs
Domínio mecânico dos idiomas esbarra na tradução literária, que vive seus próprios dilemas sobre limites criativos e o trabalho humano
29maio2025Em fevereiro deste ano, a Meta lançou um novo modelo de inteligência artificial “multilíngue e multitarefa que traduz e transcreve perfeitamente fala e texto”, segundo a definição da própria empresa. Nomeado Seamless M4T (uma abreviação em inglês de “Tradução por máquina massiva, multilíngue e multimodal integrada”), a ferramenta foi considerada um grande avanço por ser capaz de traduzir diretamente quase cem idiomas, sem precisar de um idioma de referência — hoje, nos sistemas mais populares, quase sempre o inglês.
O salto para o desenvolvimento do Seamless se deu em 2024, quando a Meta apresentou o NLLB (No Language Left Behind, ou “Nenhuma Língua Deixada para Trás”), modelo de tradução automática que suporta duzentos idiomas. No mesmo ano, a empresa divulgaria seu Universal Speech Translator (“Tradutor de Fala Universal”), o primeiro a traduzir conversas em idiomas como o hokkien, dialeto chinês usado em Singapura, Malásia, Indonésia, Filipinas e Taiwan, e que não comporta um sistema de escrita.
Mark Zuckerberg não foi o primeiro a sonhar em dominar idiomas impensáveis. No final dos anos 20, quando ainda havia quase trinta populações indígenas ágrafas no norte da União Soviética, os linguistas soviéticos criaram um alfabeto unificado que foi aplicado na grande campanha de alfabetização obrigatória do país. Muito disso se deu graças ao ditador Josef Stálin — sobre cuja tumba, segundo o filólogo italiano Sebastiano Timpanaro, deveriam estar os dizeres “Aqui jaz um grande linguista” e, depois, entre parênteses, “que se ocupou também de política”.
No campo literário, diversos países usam as traduções para exercer o soft power, o ‘poder suave’
Não à toa, o sonho da tradução mecânica se iniciou, nos anos 30, na mesma União Soviética. Um tanto rudimentar, o processo criado pelo engenheiro Piotr Troiânski envolvia duas pessoas controlando um sistema de cartões para prover a tradução, palavra por palavra, entre uma língua fonte e uma língua alvo — algo muito parecido com o que os tradutores automáticos vinham fazendo até pouco tempo, já sem o emprego de humanos.
Mais Lidas
Desde o devaneio mecânico de Troiânski, a tradução automática (feita via computadores) e, mais recentemente, a IA generativa se desenvolveram a galope, a ponto de, muitas vezes, praticamente não conseguirmos distinguir seus resultados daqueles obtidos por humanos.
Antes mesmo da IA, ferramentas como o Google Tradutor ou o DeepL alteraram a forma como acessamos conteúdos em outras línguas. Se antes um leitor monolíngue só tinha acesso às notícias de jornais internacionais por meio de encartes embutidos nos jornalões ou traduções de agências de notícias, hoje é possível se inteirar do que acontece no mundo vertendo textos diretamente da fonte com um simples clique na internet.
Língua e poder
Qualidade da tradução à parte, a comunicação interlinguística é fundamental para exercer o soft power (“poder suave”), termo cunhado pelo professor Joseph Nye, da Universidade Harvard, para definir a capacidade de entes políticos, principalmente Estados, influenciarem comportamentos ou interesses por meios culturais ou ideológicos. O soft power não envolve apenas notícias, como também literatura, cinema e outras formas de entretenimento. No campo literário, por exemplo, desde tempos remotos a União Soviética fazia uso de traduções para angariar a simpatia de nações e pessoas. Os Estados Unidos, com sua “política de boa vizinhança”, idem.
Esses métodos de diplomacia cultural são hoje aplicados por diversos países, inclusive o Brasil, com os editais da Fundação Biblioteca Nacional para tradução de literatura brasileira. Outros exemplos são a Alemanha, com os subsídios do Goethe-Institut, e a Rússia contemporânea, com os fundos do Institut Perevod. O cânone e o trend perpassam os financiamentos nacionais, e o fenômeno do “k-pop”, a moda mundial de produções sul-coreanas em séries de tv, música e literatura, tem tudo a ver com o investimento da Coreia do Sul em soft power.

Se olharmos para as letrinhas minúsculas sobre a ficha catalográfica do best-seller A vegetariana (Todavia, 2018), da vencedora do Nobel de Literatura Han Kang, leremos: “Este livro foi publicado com o apoio do Instituto de Tradução de Literatura da Coreia (LTI Korea)”.
“Além dos subsídios para editoras publicarem literatura coreana, esse instituto também possibilita a realização de workshops de tradução e ciclos de aulas com minuciosa leitura e tradução de obras coreanas”, explica a professora da Universidade de São Paulo Yun Jung Im, que nasceu na Coreia do Sul e emigrou ao Brasil aos dez anos com a família.
Yun continuou falando coreano e lendo literatura coreana diariamente, e sua trajetória se definiria na Faculdade de Química da usp, à qual se deslocava com o colega Ivan Campos, filho do poeta Haroldo de Campos. De tanto ouvir a amiga falar de literatura, Ivan decidiu apresentá-la ao pai, que pediu a Yun que lesse em sua língua materna trechos de Ulysses, de James Joyce, numa edição coreana que ela carregava.
Daí por diante, Yun passou a trazer, a pedido de Haroldo, poesia coreana por ela traduzida, e os dois se regozijavam na leitura dos versos. “Isso mudou meu destino, porque ele [Haroldo de Campos] sempre dizia que eu tinha veia literária, sempre me elogiava, e no último ano de química resolvi prestar vestibular para letras”, contou Yun à Quatro Cinco Um.
Amigas coreanas
Mais tarde, Yun faria um mestrado em literatura coreana na terra natal. E foi uma amiga coreana quem lhe sugeriu, anos antes da aclamação internacional de A vegetariana, que vertesse ao português o romance de Han Kang, que logo se tornaria sua amiga.
“Eu a encontrei várias vezes em minhas visitas à Coreia e a levei aos bares que eu frequentava por lá”, conta Yun. “Ela tem um livro só sobre as músicas de que gosta e, em um desses bares, cantamos juntas todas as canções do livro: ‘Let it be’, ‘Gracias a la vida’… Também bolamos juntas a capa de A vegetariana para a Devir [editora que publicou a primeira edição brasileira do romance, em 2013].”
Yun só pôde ver o fruto da sua tradução nos pouco mais de mil exemplares impressos pela Devir. Em 2016, logo que o romance ganhou o prêmio Man Booker International (hoje, Booker International), por não ter recebido grande atenção da crítica brasileira e gerado poucas vendas, a agente literária de Han Kang rescindiu o contrato com a antiga editora, passando o título à Todavia.
A nova casa editorial então impôs a Yun suas condições para a publicação do texto vertido: ela teria que ceder definitivamente os direitos autorais de sua tradução. A coreana bateu o pé, exigindo um percentual sobre as vendas, mas as partes não chegaram a um acordo. Não pagar direitos autorais a tradutores é uma prática recorrente no mercado editorial, com raras exceções, como o caso do tradutor Paulo Bezerra, que negociou para receber uma parte das vendas de suas traduções de clássicos russos lançados pela Editora 34 nos anos 2000.
Assim, a Todavia encomendou, a toque de caixa, uma nova tradução de A vegetariana a Jae Hyung Woo, também coreano e emigrado ao Brasil aos treze anos. “Tenho um amigo que diz que a Han Kang me foi sequestrada”, brinca Yun, acrescentando que não guarda qualquer ressentimento.
Procurada, a Todavia declarou que prefere não comentar o caso.
‘The Vegetarian’
A premiação da edição britânica de A vegetariana no Booker International, em 2015, foi a primeira a incluir o tradutor na gratificação. A tradutora Deborah Smith, que tinha vertido o romance ao inglês, não só embolsou metade das cinquenta mil libras da premiação, como também passou a ser “acusada” de criar em The Vegetarian, sua tradução, uma obra diferente da original.
O caso, apelidado de “Han Kang- gate”, se iniciou quando o escritor britânico Tim Parks criticou a versão de Smith em artigo na New York Review of Books. Parks não sabia a língua do original, mas pesquisadores coreanos vieram ao seu encontro. Críticos chegaram a afirmar que A vegetariana original era um livro, enquanto The Vegetarian era outro, ainda que inspirado no primeiro. Smith, por exemplo, substituiu o anglicismo “ice cream” (usado por Han Kang) e sua cor branca pelo equivalente em português a uma “raspadinha de feijão” — que manchava os lábios da protagonista não de branco, mas de vermelho, rendendo um toque de sensualidade inexistente no original, aponta o pesquisador Frederico Park Choi, que analisou diferentes traduções de A vegetariana em seu mestrado pela usp.
Choi ainda vê por parte de Smith uma intenção de transformar “a vegetariana” em “a vegana”: o kimchi, tradicionalmente feito usando algum ingrediente animal, é apresentado como vegano; o sorvete, destituído do leite, vira raspadinha, e assim por diante.
A questão da inventividade tem levado pesquisadores a reconsiderar a tradução literária feita por IA
Filho de coreanos, Choi nasceu na fronteira do município de Ponta-Porã (MS) com o Paraguai, onde ia à escola. Passou parte da adolescência em São Paulo e, depois, alguns anos com a família na Coreia do Sul, para onde seus avós haviam fugido da Coreia do Norte nos anos 50. Em sua dissertação de mestrado, defendida em 2023, ele comparou as traduções de A vegetariana em português (as duas brasileiras e uma portuguesa, feita por intermédio da de Smith), a polêmica versão inglesa e outras em espanhol, verificando muitas semelhanças entre a tradução da Todavia e uma hispano-americana.
Editor responsável por A vegetariana na casa, Leandro Sarmatz admite ter usado bastante uma tradução espanhola “muito boa”, lançada em 2017 pela editora La Rata, e uma francesa no cotejo (comparação com traduções em outras línguas). “Tivemos que fazer um trabalho grande de edição e adequação à língua portuguesa, porque nosso tradutor é coreano e, apesar de ter vindo ao Brasil na infância e traduzido muitos mangás, a obra não estava tão fluente no estilo literário.”

“Acredito que o trabalho de um tradutor é ser o mais fiel possível ao material original”, diz Jae Hyung Woo, que assinou a tradução publicada pela Todavia. “Mas existem outros fatores em jogo, como a edição feita por parte da equipe que prepara e adapta o material para o mercado. Eu não tenho controle total sobre o material e nem creio que deveria ter”, acrescenta Jae.
Segundo Sarmatz, a decisão de usar as edições espanhola e francesa também aconteceu por precaução. “Já estávamos prevenidos com a polêmica da tradução inglesa”, afirma o editor.
Apesar dos erros, a tradução de Smith agradou muitos leitores, e não apenas leigos. Um dos pioneiros dos estudos da tradução no Brasil, o inglês radicado no país John Milton, professor da USP, diz que gostou da leitura. “Li sem saber das críticas e encontrei uma obra em inglês ao molde daquilo que escreve [Lawrence] Venuti sobre a invisibilidade do tradutor: fácil de ler, muito fluente, em bom inglês”, diz.
Inventividade
É justamente a questão da inventividade, tão atacada na tradução de Smith, que tem levado pesquisadores a reconsiderar suas opiniões sobre a tradução literária feita por IA generativa, sobretudo no caso da poesia. Mesmo quando executada por um humano, a tradução de poesia é controversa, e lhe cabe bem o patriarcal princípio do século 17 das belles infideles: “se uma tradução é bela, não é fiel; se é fiel, não é bela”.
Conforme explica Natália Resende, professora do Trinity College em Dublin, na Irlanda, nos versos, a IA generativa realiza a tradução palavra por palavra dos primeiros vocábulos de cada linha, alterando os últimos termos para reproduzir o esquema de rimas. Pesquisadora principal em um projeto que tem financiamento da União Europeia para investigar o uso da tecnologia na tradução literária, ela e sua equipe analisaram numa primeira etapa a tradução de poesia.
A conclusão foi surpreendente. “A gente conseguiu bons resultados, bem satisfatórios. Mas dependia do tipo de prompt [comando] dado. Quando a gente dava o comando para o sistema analisar o esquema de rimas e reproduzir, em geral ele conseguia executar a tarefa e até reproduzia enjambements [encadeamentos] e a forma de poesia concreta”, conta. No caso da métrica, porém, a tecnologia não rendeu bons frutos. “A métrica envolve contar, e esses sistemas não são feitos para contagem e cálculo, mas para processamento de línguas”, explica.
As ferramentas de IA generativa, como o ChatGPT, tampouco foram construídas para tradução, mas podem traduzir porque têm vasto conhecimento de várias línguas. “Elas se prestam muito bem a textos teóricos, onde não há tantas nuances e sutilezas, mas ainda não tanto à literatura”, acredita Ivar P. Junior, tradutor e professor aficionado pelas CAT Tools, software que quebra o texto em segmentos e cria “memórias de tradução” com base no trabalho de humanos, sugerindo escolhas anteriores dos tradutores em ocorrências posteriores.
Por mais que os resultados em poesia sejam promissores, para ele a tradução automática ou por IA generativa tem vários problemas no que concerne à prosa. “A tradução automática não diferencia o tom de cada personagem. Não entende se o personagem está sendo sincero ou irônico, as emoções e tampouco aquele subtexto que o autor quer passar”, diz.
O que os sistemas de IA generativa fazem é diferente de um sistema de tradução automática neural, como o Google Tradutor e o DeepL. Enquanto esses usam um corpus de textos escritos numa língua original e traduzidos por humanos, os sistemas de IA generativa, como o ChatGPT, “treinam” seus modelos como quem ensina uma criança a falar. Para isso, utilizam-se dos próprios tradutores.
Precarização
João (nome fictício, usado para preservar sua identidade) é tradutor desde 2007 e faz o fine tuning da IA generativa de um site famoso, recebendo entre sete e dez dólares por hora de trabalho. Sem contrato, trabalha até doze horas por dia para receber cerca de 2 mil dólares por mês.
Apesar da precarização do trabalho, ele não acredita que esteja enterrando a própria profissão. “A meu ver, a diferença é que atualmente a mudança é um pouco mais rápida, embora não seja de hoje”, diz. “Em 1991, terminei meu curso técnico em eletrônica. Mas, em 1992, acabaria a lei da Reserva de Mercado da década de 60 e as melhores vagas para técnico ficaram congeladas. Ou seja, antes de completar dezoito anos fiquei obsoleto pela primeira vez. Encaro esses processos como parte natural da vida.”
Ao treinar sua IA, João deve seguir os critérios do cliente final, tornando o texto mais conciso, cortando termos ofensivos e buscando ao máximo uma neutralidade de gênero — sem chegar a usar a “linguagem neutra”. Ele exemplifica: ao se deparar com a frase “se estiver cansado, pare de trabalhar”, é preciso substituí-la por “no caso de cansaço, pare de trabalhar”.

Enquanto a precarização aumenta, a discussão sobre novas tecnologias de tradução se alastra no mundo acadêmico — a próxima conferência da IATIS (Associação Internacional de Tradução e Estudos Interculturais, a principal da área), por exemplo, terá como tema “Tradução e estudos interculturais na era da inteligência artificial”. Uma conclusão é certeira no momento, tanto da parte de profissionais do mercado como de acadêmicos: as ferramentas ainda são como crianças e precisam de supervisão humana.
É o que também pensa o professor John Milton. “Vemos que ela ainda tem muitas falhas e não reconhece pronomes em português. Um caso curioso me ocorreu outro dia no Google Tradutor: em um texto que não tinha nada a ver com compras, o sistema me deu second market como tradução de segunda-feira.”
A visibilidade do tradutor também está em pauta — apesar de seguir obscura no caso do Nobel de Literatura, em que não se premiam os tradutores e são vagas as informações sobre as traduções usadas pelos jurados. “É preciso chamar a atenção para a figura do tradutor”, diz Yun Jung Im. “Minha bandeira é que o tradutor ganhe, no mínimo, uma porcentagem sobre as cópias”, defende a pioneira tradutora de A vegetariana.
Porque você leu Bagagem Literária
Prêmio São Paulo de Literatura divulga júri da edição 2025
Lista tem profissionais do mercado editorial, escritores, críticos literários e produtores culturais; inscrições vão até 18 de julho
JUNHO, 2025