
Bagagem Literária,
Maratona literária
Os rituais e desafios da primeira editora independente brasileira selecionada para a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires
20maio2025 • Atualizado em: 21maio2025 | Edição #94O encerramento da jornada em uma feira literária se dá cobrindo os livros. A prática visa inibir furtos e proteger contra danos físicos — basta uma gota d’água para arruinar um livro, ainda mais quando a obra tem processo gráfico artesanal. No Brasil, usa-se lona plástica preta fixada com fita adesiva; na Argentina, TNT e grampos de papel — gancho prensa, em castelhano. Para quem está dando o corpo para a circulação de livros, trata-se de importante prática do ofício a ser dominada.
Aprendi o jeito argentino porque minha editora, a Lote 42, participou da 49ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. Considerado o maior evento cultural da Argentina, em análise ligeira parece com as bienais de Rio de Janeiro e São Paulo — porte, estrutura e proposta são similares. As diferenças, no entanto, são reveladoras da cultura literária argentina.
São 21 dias de atividades, sendo dois para profissionais e dezenove para o público geral, o dobro da extensão das bienais e de outros eventos da América Latina, como a Feira de Guadalajara. Quem está a trabalho cansa, se desgasta, reclama. Para a organização do evento, é um diferencial: “a feira mais longa do mundo”. “O evento foi criado em 1975 e desde então essa queixa se repete”, afirma Ezequiel Martínez, diretor do evento. “Os próprios expositores também dizem ‘bem, é longa, mas é conveniente que dure tanto porque as vendas são importantes’”.
‘Perdón, perdón, entiendo más el inglés que el portugués’, dizem, num misto de desculpa e esquiva
Outra vantagem da maratona é a manutenção do holofote aceso sobre a literatura. Os jornais dedicam diariamente uma ou duas páginas à feira portenha e algumas das principais estações de rádio montam estúdios dentro da La Rural, espaço onde ocorre a feira. Além disso, cabem eventos dentro do evento, como um festival de poesia e dias de visitação de bibliotecários e livreiros — operadores logísticos montam estações temporárias e o envio pode até ser gratuito.
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Foram 346 estandes para 1.417 selos editoriais nesta edição. A Lote 42 era parte desse todo, dentro do Nuevo Barrio, programa que oferece espaço gratuito para doze editoras independentes (nove nacionais, três estrangeiras). Pela primeira vez, uma editora brasileira foi selecionada. Mesmo com essa facilidade, a viagem tem outros gastos e percalços. Exemplo: como receber transferências sem ter conta bancária argentina? Pergunta crucial, pois vivemos de vender livros.
Pantera
A vida independente se faz e se resolve no chão de feira. Cecilia Arbolave, minha sócia na vida e esposa de editora, conheceu na Feira de Editores Sofía Puertas, dona da livraria Las Panteras y el Templo, da cidade de Córdoba.
Como uma feira puxa a outra, Puertas veio participar da 11ª Miolo(s), encontro de arte gráfica produzido pela Lote 42 e a Biblioteca Mário de Andrade. Assim eu conheci essa chica de 1,52 metro de altura, tatuagem, piercing, cerveja tomada na garrafa térmica do chimarrão e, o mais importante, entusiasmada até o talo. “Sofía, você quer trabalhar com a gente em Buenos Aires?” Puertas passou a fazer parte da aventura e não podia ser diferente.
Próxima pergunta essencial: como enviar os livros? Quem tem amigo tem tudo e eu cresci na cidade de Guaíba (RS), ao redor das melhores pessoas. Gerson Antunes é o nome do salvador da pátria, com 23 anos de logística nas costas.
Enquanto isso, a Lote 42 se ocupava com cadastros, passagens, hospedagens, aluguel de extintor de incêndio, aluguel de sinal wi-fi, taxa de maquininha, decoração. Sair num digno empate vai ficando cada vez mais brabo. E tem o público da feira, difícil.
Não quero soar cabotino, mas conceda-me um grão de paciêcia em prol do argumento. Os livros da Lote 42 são bons. Poemóbiles, de Julio Plaza e Augusto de Campos, o mais próximo que temos de um prêmio Nobel, é nosso último livro. E boa parte do catálogo era vendida pelo preço de duas empanadas e um refrigerante da praça de alimentação.
Isso não supera a resistência portenha ao português. Já feiramos em Montevidéu, Bogotá, Santiago do Chile, La Plata, Punta del Este e não tem para ninguém, a Cidade Autônoma de Buenos Aires es la más complicada.
Cecilia é de lá. Temos carinho não só por Buenos Aires, mas por esse evento em especial. Foi lá que, pela primeira vez, Cecilia e eu carimbamos passaporte declarando que nosso ofício é publicar livros, em 2014, quando São Paulo era a cidade convidada.
“Perdón, perdón, entiendo más el inglés que el portugués”, dizem rapidinho, num misto de desculpa e esquiva. Atitude estranha a quem vem de Pindorama, confundo tobillo (tornozelo) com tornillo (parafuso), rindo das minhas próprias presepadas. As novas gerações estão aprendendo português na escola, me dizem. O portunhol é o futuro da América.
Roda-gigante
O evento tem aura um pouco mais adulta comparada à típica bienal brasileira, sabor de imensa livraria. Parcela expressiva do 1 milhão de visitantes é de crianças e adolescentes, porém raras editoras cedem espaço a “experiências instagramáveis”. Quando o fazem são soluções discretas, distantes do kitsch brasileiro. A Bienal do Livro que ocorrerá no Rio de Janeiro, atual capital mundial do livro, terá como novidade uma roda-gigante.
Parcela expressiva do 1 milhão de visitantes é de adolescentes, mas há raros espaços “instagramáveis”
Ao longo da maratona, é inevitável integrar-se à comunidade portenha do livro: o segurança que sabe onde obter água quente para o mate; Yaco, documentarista sem roteiro que grava cenas aleatórias; Sebastián Goyeneche, da distribuidora Hule, detrator da Feira de Editores; Julián Goldman, da La Tercera Editora, efusivo defensor da mesma feira. No final da noite, com o eco do ruído do pavilhão ribombando na cabeça, Goldman e Goyeneche estão juntos, discutindo e rindo na mesma mesa do bar Varela Varelita, onde recomenda-se checar a data de vencimento dos alfajores Capitán del Espacio.
Sebastián é parte do aumento da quantidade de distribuidoras na Argentina, uma forma de estar presente nas 1.200 livrarias espalhadas pelo país — quatrocentas só em Buenos Aires. As pequenas editoras, como a La Tercera, não lidam diretamente com as livrarias, isso é tarefa da distribuidora. Efeito de um mercado organizado. “Sem a lei de regulamentação do preço de capa, as livrarias não teriam como competir com os tanques de guerra das grandes redes. E assim as editoras independentes perderiam espaço”, diz Martínez, diretor da feira.
Fechamos pela última vez o estande na segunda (12), já não havia necessidade de cobrir o espaço de luto. Era o momento de encaixotar, fazer contas, balanço, deixar o destino nos carregar de volta ao Brasil, roda mundo, roda-gigante.
Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025.