O poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun (Sina Opalka/Divulgação)

Editora 451, Poesia,

Um homem que está vivo

Ghayath Almadhoun, poeta sírio-palestino, estreia no Brasil com antologia que tece críticas ao colonialismo

22maio2025 | Edição #94

Nós, os dispersados em fragmentos, que chovemos carne, apresentamos nossas mais sinceras desculpas a cada uma das pessoas desse mundo civilizado, homens e mulheres e crianças, porque sem que fosse nosso propósito aparecemos nas suas casas seguras sem solicitar permissão, pedimos desculpas por imprimir nossos restos mortais em suas memórias brancas como a neve.

É com essas linhas atordoantes que começa “Nós”, poema que abre Você deu em pagamento o meu país, do poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun, um dos convidados d’A Feira do Livro deste ano. O livro acaba de ser lançado no Brasil pela editora Ars et Vita, com tradução direta do árabe de Alexandre Chareti. Em tempos de genocídio televisionado, o poema segue assustadoramente atual, apesar de ter sido publicado em 2008: 

pedimos desculpas também aos soldados israelenses que se deram ao trabalho de apertar os botões dos seus aviões e tanques para nos transformarem em pedaços, pedimos desculpas a eles pelas imagens horríveis em que nos transformamos depois que eles apontaram as suas bombas diretamente para as nossas cabeças moles, e pelas horas que agora passarão em clínicas psiquiátricas para que possam voltar a ser humanos como eram antes de nos transformarem em pedaços nojentos

Essa antologia, que reúne todos os poemas de Eu te trouxe uma mão decepada (2024) e alguns de Não posso estar presente (2014) e Adrenalina (2017), não é para quem tem estômago fraco. Há sangue, corpos mutilados, membros amputados, fedor de cadáveres apodrecendo. Não há palavras de consolo nem o romantismo da ideia de resistência, e muito menos alívio para os sobreviventes. “Você diz que eu sobrevivi à guerra, não, minha querida, ninguém sobrevive à guerra, unicamente eu não morri, permaneci vivo apenas”, arremata em “O mármore azul”.

Ghayath Almadhoun não deve então ser apresentado como um sobrevivente, mas apenas como um homem que está vivo. E, para tal, ele percorreu um longo caminho.

Sua família paterna foi expulsa de Ashkelon em 1948, por Israel, juntando-se aos 750 mil palestinos que foram retirados à força de suas casas. Seus avós estabeleceram-se, então, no que hoje é o campo de refugiados de Khan Yunis, em Gaza. Depois da Guerra de 1967, seu pai foi preso por Israel e levado para o lado egípcio do deserto do Sinai para morrer de fome — o que não aconteceu. Ele foi para a Jordânia e, em seguida, para a Síria, onde conheceu a mãe de Almadhoun, que é síria. 

Nascido no campo de refugiados de Yarmuk, em Damasco, em 1979, Ghayath Almadhoun, já adulto, viu o irmão ser morto em meio à guerra civil síria, que ainda não acabou. Temendo o governo de Bashar al-Assad, ele fugiu para a Europa, conseguiu se estabelecer em Estocolmo, na Suécia, em 2008, onde, anos depois, obteve a cidadania sueca. Hoje, o poeta mora em Berlim, na Alemanha.

Exílio

A trajetória de Almadhoun é marcada pelo exílio, não só em termos autobiográficos. Para ele, ser exilado faz parte da condição de escritor. “Não posso separar a literatura do exílio. Não porque nasci nessa condição, porque ser exilado, para mim, é uma das situações mais importantes para o artista”, afirma o poeta, em entrevista à Quatro Cinco Um. “Quando você vê as coisas de uma perspectiva diferente, é capaz de criticá-las.”

Na sua visão, o exílio é essencial para provocar transformações na sociedade, pois traz desafios que precisam ser processados. “Os artistas e intelectuais ocidentais fugiram de ditaduras, do nazismo, do fascismo, e mudaram as sociedades dos lugares onde se estabeleceram, criando seus próprios espaços. Depois da Segunda Guerra Mundial, tudo se tornou pacífico. Não há quase mais guerras nos territórios da Europa. E, de repente, os artistas e os escritores se encontram presos em seus países, sem ninguém os desafiando”, reflete.

O desafio vem, então, de artistas de outras regiões do mundo, que se veem forçados a sair da sua terra natal, por motivos políticos, econômicos ou sociais, pois, para Almadhoun, o ser humano só se desloca quando forçado a isso. É essa posição de “fora” que lhes fornece a vantagem e o privilégio de ver o mundo sob pontos de vista mais críticos ao status quo. “Esses são os verdadeiros nômades, vagabundos, viajantes do mundo, os estrangeiros. Eles tocam na ferida, dizem a verdade diante do poder”, afirma.

‘São os nômades, vagabundos, viajantes, os estrangeiros que tocam na ferida e dizem a verdade’

É o que Almadhoun faz em sua poesia. A começar pelo título: Você deu em pagamento o meu país. Em um breve e cirúrgico prefácio à edição, o poeta paulista Ricardo Domeneck, radicado em Berlim, questiona a quem Almadhoun se dirige com “você”. Ele reflete que muitas nacionalidades poderiam ser reconhecidas, mas a carapuça cabe melhor aos europeus e, mais especificamente, aos alemães.

“Pois se é deveras uma catástrofe imperdoável o que aconteceu com os judeus nas mãos do Partido Nazista e seus colaboradores europeus, o que tantos palestinos perguntam é: por que tivemos que pagar por essa dívida nós, os palestinos, com nossa terra? Por que não se fundou o Estado de Israel com um pedaço da Alemanha? É claro que muitas questões geopolíticas estão envolvidas. Mas a pergunta é legítima”, pondera o autor.

Almadhoum sabe, portanto, que a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, conforme enunciado por Karl Marx. No poema “Évian”, atualiza a tragédia de imigrantes africanos e asiáticos que buscam sua terra prometida na Europa comparando-a à imigração judaica para fora do continente europeu às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Eles vão roubar nossos empregos e nossas casas, eles vão seduzir nossas mulheres, eles vão usurpar os recursos que destinamos aos pobres, vão se infiltrar entre eles criminosos e espiões, seu influxo vai abalar a estabilidade, e isso vai levar à desintegração da sociedade. Eles têm má aparência, transmitem doenças, suas normas são distintas, sua cultura é diferente, sua moral é estranha, eles não vão conseguir se integrar.

O próprio poema explica que as palavras racistas mencionadas nos versos não são sobre os refugiados sírios (e de outras nacionalidades) da atualidade, mas sobre refugiados judeus da Alemanha e da Áustria que tentavam fugir dos nazistas. Durante a Conferência de Évian, em 1938, organizada para discutir essa “crise”, nenhum país quis receber os imigrantes judeus, nem mesmo Estados Unidos e Reino Unido. Meses depois, os nazistas promoveram a Noite dos Cristais, e, gradualmente, chegou-se ao Holocausto judeu. Quem são hoje os indesejados, aqueles que ninguém quer receber, que deveriam desaparecer e ser objeto de uma nova “solução final”? A resposta é bastante clara, a partir dos paralelos históricos feitos em Você deu em pagamento o meu país.

Erotismo

Os textos de Almadhoun não são feitos só de traumas. Para ele, a poesia é, antes de tudo, uma manifestação da alegria. E também uma forma de celebrar as mulheres — as primeiras incursões poéticas do autor, aliás, tinham por objetivo conquistar as garotas por quem se apaixonava na juventude. Isso não deve causar espanto, pois quando a morte está sempre à espreita, a vida pulsa nas entrelinhas.

Eu me enfio na cama ao teu lado, e você finge que está dormindo, mas eu sinto o cheiro de sexo dos teus mamilos eretos, então sei que você está mentindo, mentindo, e que você deseja que eu tome a iniciativa e te devore.

O desejo vem a galope em “Esquizofrenia” e em outros poemas, regados a vinho, banquetes, música, sexo e amor. Ao tratar desses temas, Almadhoun conversa diretamente com uma longa tradição da poesia islâmica que aborda os prazeres da carne em paralelo às elevações espirituais. “Faz parte do islã. Sou muçulmano, vim dessa cultura, que é bem dominante, mesmo que seja negada pelo Ocidente. E ela é muito antiga”, explica.

Mas, mesmo nesses poemas, Almadhoun não se cala diante das relações de poder que podem permear os relacionamentos afetivos, conforme se vê na sequência de “Esquizofrenia”:

pois isso satisfaz a visão orientalista e o estereótipo que longos anos de colonização criaram sobre o Oriente em geral e sobre o jovem árabe em particular, mas com toda a malícia do beduíno que mora dentro de mim, eu frustro tuas expectativas e solto minhas pobres ovelhas, para pastarem diante do teu lobo faminto, e aguardo, e aguardo, e aguardo…

É, pois, estando à margem, exilado, que o artista percebe as contradições que o rodeiam, e é na linguagem poética que elas tomam forma para vir ao mundo. 

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025. Com o título “Um homem que está vivo”

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