Foto do noivado de Virginia e Leonard Woolf em 23 de julho de 1912, em Sussex, um mês antes do casamento (Reprodução)

Literatura,

O sentido do ritmo

Nos seus primeiros ensaios e na autobiografia de Leonard Woolf, desponta a genialidade das invenções harmônicas de Virginia Woolf

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

Poeta da prosa. Virginia Woolf concretizou em sua obra a noção de uma literatura sem compartimentos estanques que Percy Bysshe Shelley, grande poeta do verso inglês, tinha entrevisto e formulado cerca de um século antes. Como bom romântico, Shelley morreu ainda jovem — em julho de 1822, a um mês de completar trinta anos, sua escuna naufragou e o arrastou mar adentro no golfo italiano de La Spezia.

Escrito no ano anterior, 1821, seu principal texto teórico, Defesa da poesia, demonstra que aquele jovem, apaixonado pelo mar, embora não soubesse nadar, sentia-se em completo domínio de opiniões maduras e clarividentes sobre os mistérios da arte literária. No texto em foco, ele usou o mesmo título, a mesma fibra polêmica e alguns dos mesmos argumentos de um predecessor ilustre, Philip Sidney, que no final do século 16 também escrevera uma Defesa da poesia.

Entre outras coisas, Shelley afirma em sua renovada e peremptória Defesa que:

A divisão popular em prosa e verso é inadmissível em filosofia rigorosa. A distinção entre poetas e prosadores é um erro vulgar. Todos os que revolucionam a opinião não são apenas poetas, como são inventores; não só porque suas palavras revelam a analogia permanente das coisas por imagens que participam da vida da verdade, mas também porque seus períodos são harmoniosos e rítmicos, e contêm neles próprios os elementos do verso, por serem o eco da música eterna.

Em “Músicos de rua”, um dos primeiros ensaios de sua juventude, publicado em 1905, quando ela estava com 23 anos, no periódico inglês National Review, Virginia Woolf já deixava bem claro que a opção por “períodos harmoniosos e rítmicos” se tornaria para sempre inseparável de suas invenções com palavras. Ela aí disserta sobre as mais banais das artes, a dos realejos, a dos violinistas ambulantes, a das bandas em praças, mas por trás disso se percebe que a ensaísta estreante estava dando a entender que era a noção de ritmo que constituía para ela o arcabouço de qualquer forma de expressão.

“Se o sentido do ritmo estivesse em plena atividade em todas as mentes”, escreveu nesse texto a autora tão precoce, “deveríamos, se não me engano, notar um grande progresso não só na organização de todos os assuntos da vida cotidiana, mas também na arte de escrever, que é quase uma aliada da música e degenerou principalmente por se ter esquecido dessa aliança”.

As manifestações de sua inventividade estão ligadas por elos invisíveis de maviosas sonoridades

É impossível traduzir Virginia Woolf com acerto sem considerar primeiramente que todos os modos pelos quais sua inventividade se manifestou acham-se interligados por elos invisíveis, mas fortes, de maviosas sonoridades. Lembre-se, a propósito, que os primeiros livros de sua autoria publicados no Brasil, em iniciativas por certo decorrentes da repercussão mundial de seu suicídio, em 28 de março de 1941, foram dados para traduzir a poetas de renome consolidado e teoricamente predispostos, por sua índole, a enfrentar trabalhos desse tipo. A Mário Quintana coube traduzir Mrs Dalloway; a Cecília Meireles, pouco tempo depois, Orlando.

Após a fase de interesse provocada por sua morte nas águas, quando ela se jogou no rio Ouse com os bolsos cheios de pedras, talvez para certificar-se de que ia mesmo afundar no oblívio, a frequente, volumosa e benéfica revivescência da obra de Virginia Woolf, que se prolonga até hoje, começou na década de 70 com a crítica feminista americana e logo se espraiou por numerosos países. Nos Estados Unidos, em especial, aqui e ali alguma voz se excedia, no raiar controverso dessa fase, para atribuir a Leonard Woolf, o marido judeu de quem Virginia pegou seu nom de plume, papéis indesejáveis de coerção e controle sobre a arte da esposa.

Em sua autobiografia, escrita após a morte de Virginia e nunca traduzida no Brasil, Leonard admite que, como era sempre seu primeiro leitor, frequentemente conversava com ela sobre suas criações literárias. Mas acrescenta que, sabendo-a muito suscetível a críticas, cercava-se de extremos cuidados ao fazer eventuais e poucas ressalvas aos trabalhos que lia. A cada vez que um livro dela estava para ser publicado, segundo ele, Virginia entrava numa ansiedade frenética, temendo a repercussão que adviria e o teor das resenhas que se estampassem na imprensa.

Jornalista brilhante

A autobiografia de Leonard Woolf, que se tornou muito mais lida na Inglaterra que qualquer outra das obras lançadas antes por ele, saiu em cinco livros distintos, cada qual com um título próprio, embora a narração de sua vida constitua um todo contínuo: Sowing [Semear] (1960), Growing [Crescer] (1961), Beginning Again [Começar de novo] (1964), Downhill All the Way [Descer o caminho todo] (1967) e The Journey not the Arrival Matters [O que importa é a jornada, não a chegada] (1969).

O conjunto, de leitura estimulada pela simplicidade do estilo e o dinamismo dos fatos que se encadeiam, é por um lado um retrospecto da ebulição que atingiu e deixou traumatizada a civilização europeia, num período encurralado entre duas guerras horríveis, e por outro um retrato circunstanciado de um casamento que durou trinta anos de perfeito entendimento e harmonia invulgar. Rodeada de amigos do casal cujos perfis são traçados, Virginia é sempre, e de longe, a figura mais destacada nas lembranças e minúcias que seu marido desfia. Ele não se cansa de admirá-la, de exaltar seu talento, de descrever como ela se alheava de tudo para obsessivamente concentrar-se no que estivesse escrevendo. Numa passagem bem marcante, garante-nos que, dentre as pessoas que conheceu mais de perto, quase todas intelectuais de sólida formação e de futuro prestígio, sua esposa era a única que ele poderia chamar de gênio.

Tão logo formado em Cambridge, Leonard Woolf entrou para o serviço colonial britânico e foi designado para trabalhar no Ceilão, atual Sri Lanka. Com sete anos no posto, recebeu uma licença de seis meses para ir pela primeira vez à Inglaterra. Em Londres, ao reencontrar e fazer novos amigos, no influente e famoso grupo de Bloomsbury, apaixonou-se por Virginia e renunciou ao emprego no Ceilão para permanecer no país e em 1912 se casar com ela numa cerimônia discreta, sem festejos nem convites.

Virginia é sempre, e de longe, a figura mais destacada nas lembranças que seu marido desfia

Enquanto a esposa trabalhava em seu primeiro romance, que sem parar remanejava para deixá-lo no ponto, Leonard, aderindo também à ficção, publicou dois de sua própria autoria: The Village in the Jungle [A aldeia na selva] (1913) e The Wise Virgins [As virgens sábias] (1914). O primeiro de Virginia, The Voyage Out, saiu em 1915. Traduzido décadas depois no Brasil, teve o título amputado e se perpetuou entre nós como A viagem. Mais correto e fiel teria sido dar o título em português ao pé da letra: A viagem de ida (para Santa Marina, uma ilha imaginária na América do Sul onde a heroína se apaixona, mas adoece e morre antes de conseguir se casar).

Outro título mal traduzido de Virginia foi o do clássico feminista A Room of One’s Own (1929), que aqui passou a ser Um teto todo seu. Mas o original não diz “teto”, palavra arbitrariamente encaixada como sinônimo de “casa”, e também nesse caso a tradução literal, Um quarto só para si, corresponderia melhor à argumentação central da polêmica: a de que uma escritora, sendo casada e constrangida por suas obrigações domésticas, precisava de um espaço de liberdade, de um cômodo na casa, e não de todo o teto, onde pudesse fazer em paz seu trabalho. (Algo que a nova edição da Editora 34, com tradução de Sofia Nestrovski e o título Um quarto só para mim, capta melhor em 2025.)

Recém-casado e sem emprego, Leonard constatou dentro em breve que nunca ganharia o necessário com seus livros de ficção e achou por bem se desviar desse rumo. Tornou-se um jornalista brilhante. Em artigos e livros dedicados a questões políticas e sociais, escreveu sobre paz, socialismo, cooperativismo e toda uma extensa pauta de temas avançados, envolvendo-se pessoalmente, ao mesmo tempo, em movimentos pela criação da Liga das Nações, o embrião da ONU.

Virginia Woolf e sua irmã Vanessa Bell jogam críquete na “Talland House”, na Cornualha, em 1894 (Harvad University Library/Reprodução)

Depois da morte de Virginia, divergências e discrepâncias tornaram-se habituais na edição de seus livros, porque o caráter inovador e tantas vezes ambíguo de seus textos, esbatendo ou diluindo fronteiras, convertia-se em problema para classificá-los em gêneros. Disso decorre que alguns desses textos, hoje presentes em seus Contos completos, foram tomados por ensaios em publicações do século 20. Em 1944, quando a confusão era grande, Leonard lançou A Haunted House [Uma casa mal-assombrada], a primeira das seletas da esposa que ele organizou nessa época. Era um livro de contos, no qual, por questão de gosto, ele deixou de incluir “Azul e verde”, um texto breve e enigmático que é dos mais sugestivos para que se considere Virginia uma poeta da prosa.

Entre as memórias amargas de Leonard Woolf avultam as crises nervosas de Virginia, uma das quais tão grave que foi preciso manter quatro enfermeiras em casa, revezando-se dia e noite à cabeceira da doente para impedir que ela se destruísse. Outra coisa que muito o entristecia era a desolação matinal das ruas poeirentas e esburacadas de Londres depois dos bombardeios noturnos por aviões nazistas. O pungente testemunho sobre uma dessas chuvas de bombas, que ela presenciou, é feito por Virginia em “Pensamentos de paz durante um ataque aéreo”, texto inserido em seu livro Ensaios seletos, que organizei e traduzi e a Editora 34 publicou no ano passado. “O zumbido dos aeroplanos é agora como o ranger de um galho que é serrado sobre nossas cabeças. É insistente e contínuo, esse ranger de galho serrado sem parar bem em cima da casa.”

Virginia Woolf em 1925, ano de publicação de Mrs Dalloway (Hulton Archive/Getty Images)

Azul e verde

Textos breves e enigmáticos da escritora inglesa, publicados em 1921

Verde

Os dedos de vidro pendurados apontam para baixo. A luz, ao deslizar pelo vidro, derrama uma poça verde. O dia inteiro os dez dedos do lustre derramam verde no mármore. As penas dos periquitos — seus gritos dissonantes — cortantes lâminas de palmeiras — verdes também; mas não para o duro vidro de gotejar sobre o mármore; sobre a areia do deserto as poças ficam suspensas; por elas cambaleiam camelos; as poças se assentam no mármore; juncos as margeiam; e ervas se grudam nelas; aqui e ali uma flor branca; o sapo salta por cima; de noite as estrelas são afixadas intactas. Aproxima–se a noite, e o verde, varrido pela sombra, vai para cima da lareira; a superfície enrugada do oceano. Não há navios chegando; as ondas a esmo balançam sob o céu vazio. A noite avança; das agulhas agora pingam traços de azul. O verde ficou de fora.

Azul

O monstro de nariz achatado surge na superfície e esguicha por suas rudes narinas duas colunas de água que, de um branco ardente no centro, ao redor se espalham numa orla de borrifos azuis. A tela preta do seu couro é riscada por pinceladas azuis. Enchendo-se de água pela boca e as narinas, pesado de tanta água ele afunda, e o azul se fecha sobre ele, a procurar por artes mágicas os seixos polidos dos seus olhos. Lançado à praia ei-lo que jaz, rude, obtuso, soltando escamas secas e azuis. O azul metálico delas mancha na praia o ferro enferrujado. São azuis as nervuras do barco a remo que afundou. Sob os sinos azuis rola uma onda. Mas é diferente o da catedral, frio, cheio de incenso, um azul desmaiado, com véus de madonas.

Virginia Woolf. Contos completos. Tradução de Leonardo Fróes. Editora 34

Quem escreveu esse texto

Leonardo Fróes

É autor de Trilhas: poemas 1968-2015 (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “O sentido do ritmo”