A poeta estadunidense Tracy K. Smith (Krista Schlueter/Divulgação)

Poesia,

Sonho americano

Vencedora do Pulitzer, Tracy K. Smith fala de sua estreia no Brasil e do cerco do governo Trump às universidades

17abr2025 | Edição #93

Tracy K. Smith tinha dez anos quando experimentou pela primeira vez  “a magia e a sabedoria” proporcionadas pela poesia. “Lembro com nitidez do dia em que peguei um livro que usávamos nas aulas da 5ª ou 6ª série, abri e pensei: ‘vou ler um pouco adiante e descobrir o que mais tem nesse livro enorme’. Foi assim que encontrei [o poema] ‘Não sou ninguém! Quem é você?’, de Emily Dickinson, e descobri uma nova maneira de ver as coisas, de reivindicar um vocabulário para aquilo que se sente, mas que muitas vezes permanece sem nome, sem ser dito ou descrito.”

Ao passar ela própria a buscar palavras para nomear aquilo “que sequer temos coragem de encarar”, Tracy construiu uma obra laureada que, segundo a crítica, a tornou uma das vozes definidoras da poesia contemporânea estadunidense. Com livros de poesia, memórias, ensaios e manifestos, a autora conquistou em 2012 o prêmio Pulitzer por Vida em Marte, e em 2015 figurou entre os finalistas do National Book Award de não ficção pela autobiografia Ordinary Light.

Inédita no Brasil, a poesia de Tracy chega ao país — com atraso de mais de uma década desde que ela adentrou os holofotes literários — nos lançamentos simultâneos de Vida em Marte (Relicário) e Uma fome tão afiada (Malê). Ambos serão tema de uma conversa da autora com a livreira e curadora Nanni Rios e com esta repórter na abertura do Festival Poesia no Centro, dia 16 de maio, no teatro Cultura Artística, em São Paulo (entrada gratuita). A visita, que inclui também o Rio de Janeiro, não é a primeira de Tracy ao país. Há vinte anos, a poeta esteve em Salvador (BA), experiência que traduz evocando imagens, cores, cheiros e sons em “Ministro da Saudade” e “Catedral kitsch”, poemas incluídos em Uma fome tão afiada e Vida em Marte,respectivamente. 

“Viajo muito, mas quando estou em lugares com tanta gente de ascendência africana, a sensação é maravilhosa. É algo muito diferente. E os laços, sabe? A sobreposição cultural na Bahia foi especial. Estou empolgada para voltar e conhecer mais do Brasil”, disse a também professora de Harvard que, nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, fala, entre outras coisas, sobre a tentativa do governo Trump de enquadrar universidades por permitirem manifestações pró-Palestina. 

Qual a história por trás de Vida em Marte, que ganhou o prêmio Pulitzer e está sendo lançado no Brasil?
Há duas origens. Sempre escrevi sobre os Estados Unidos e minhas inquietações sobre o papel do país no mundo e como nós, americanos, somos moldados por isso. Mas tinha de fazer algo diferente do meu segundo livro [Duende], que também trata deste tema. Então escolhi o artifício da ficção científica. Muitos desses poemas são uma tentativa de brincar com esse gênero. 

A partir de quais referências — além de David Bowie?
Assisti a muitos filmes de ficção científica com Charlton Heston [protagonista da primeira versão de Planeta dos macacos], que me influenciaram quando era criança nos anos 60 e 70, além de Star Trek, especialmente a maneira como a série trata o futuro, a inocência e sua perspectiva não intervencionista. Refletir sobre o futuro e também sobre esse passado, quando o porvir era imaginado de uma maneira muito específica, me deu termos e imagens para trabalhar. Enquanto escrevia, meu pai ficou doente e faleceu num curto espaço de tempo. De repente, esse projeto que envolvia imaginar o futuro e o universo se tornou o cenário em que eu processava o luto. 

Como foi esse processo?
Meu pai era um grande fã de ficção científica. Quando era pequena, sentava em seu colo e assistia a muitos desses filmes. Enquanto escrevia esses poemas, senti que ele estava comigo. Lembrei de episódios da infância, como, por exemplo, o fato de meu pai ter trabalhado no telescópio Hubble.
De certo modo, canalizei esse livro através dele. Há poemas que refletem sobre a vida após a morte, outros que tentam dar sentido a Deus e ao sistema, aos quais senti vontade de me entregar. Todos os textos desse livro são meu desejo de dizer que preciso de uma vida após a morte que seja durável, mágica e dotada de consciência. Algo que faça sentido, pois nunca encontrei uma explicação coerente. 

Qual tipo de coerência você busca?
Algo que não fosse como “as coisas caem do céu”, como aprendi na igreja, nem tivessem a rigidez acadêmica que afirma “é esta vida e nada mais”. Tinha de ser algo moldado pela cultura, o amor e a experiência. Além disso, estava grávida pela primeira vez enquanto escrevia Vida em Marte. Muitas das preocupações com a humanidade envolviam a ideia de trazer uma nova alma ao mundo. Todas essas reflexões dialogavam entre si. Sentia que minha filha e meu pai estavam juntos, em algum lugar, me ajudando a compreender onde eu estava.

E como foi ganhar o Pulitzer?
Uma surpresa maravilhosa: o anúncio do prêmio aconteceu no dia do meu aniversário de quarenta anos. Foi como se tivesse sido convidada para uma versão ampliada da comunidade de escritores e suas obras. Pela primeira vez, também percebi meu trabalho dialogando com leitores internacionais. Esse livro [Vida em Marte] tem sido útil para pessoas que perderam entes queridos, e poder compartilhar um vocabulário de esperança diante da perda é uma dádiva. 

Seu programa itinerante de poesia [American Conversations: Celebrating Poetry in Rural Communities] também nasceu do desejo de compreender os Estados Unidos?
Queria criar um projeto que colocasse em diálogo pessoas de estilos de vida e sistemas de valores distintos. Para mim, a eleição presidencial de 2016 marcou o início de uma linguagem polarizada. O decoro foi abandonado e emergiu um vocabulário nacional direto, agressivo, alimentado por figuras públicas específicas, por tecnologias como smartphones, pelas redes e por podcasts que reforçam crenças arraigadas e rejeitam visões divergentes. 

Pensei: e se fizéssemos algo juntos, partindo de outro lugar, com uma percepção diferente de nossa própria autoridade? A poesia, para mim, reafirma que você não está no controle. Mesmo como autora, você se entrega a algo maior. Como leitor ou leitora, você se aproxima dessa outra voz com amor, porque quer escutá-la
e compreendê-la. E se conseguir, essa voz não apenas se revelará, mas revelará algo sobre você. Quis visitar comunidades onde, em tese, as pessoas deveriam estar em confronto e criar esse espaço de abertura e de vulnerabilidade compartilhada lendo poesia. 

Quanto tempo durou esse projeto?
Com apoio da Biblioteca do Congresso, passei dois anos [entre 2017 e 2019] apresentando poesia americana contemporânea sobre amor, perda, exílio ou estar num país cuja língua não é a sua. Esses poemas nos permitiram tratar de todas as facetas da vida com outro vocabulário. Houve quem dissesse: “acho que também me senti incompreendido assim” ou “essa pessoa que parece ser imigrante vive algo que conheço”. Estávamos falando de cidadania, mas em termos mais humananistas.

Há alguma experiência nesses dois anos que foi mais memorável?
Numa comunidade no Kentucky, li alguns dos meus poemas compostos de cartas escritas por soldados negros e seus familiares ao governo dos Estados Unidos durante a Guerra Civil. Ao final, uma mulher branca, moradora de uma comunidade majoritariamente branca, se aproximou e disse: “preciso ir até em casa pegar uma coisa para você”. Ela demorou bastante. Quando voltou, me entregou uma gravação e explicou: “essa é a voz da minha avó recitando histórias e poemas com os quais cresceu. Mas quero que saiba que ela nunca teria desejado te machucar ou te ofender”. 

Percebi que aquela gravação carregava estereótipos raciais herdados por uma mulher branca do Sul do país. Ainda assim, essa estranha ouviu as vozes negras que eu havia trazido, pensou na avó e se deu conta de que existia uma barreira entre isso e minha aceitação espontânea. Senti que na mente dela se iniciou um processo de abertura que dizia: “nós, inclusive minha avó, precisamos repensar a forma como amamos e como nos vemos uns aos outros”. 

Em outra ocasião, li poemas em uma casa de repouso onde quase ninguém reagia. Algumas pessoas gemiam, como se estivessem atormentadas. Mais tarde, descobri tratar-se de uma ala para pacientes com [mal de] Alzheimer. Elas não falavam nada, mas seus gemidos pareciam um tipo de lamento ou até de canto, como se os poemas tivessem despertado algo dentro delas. Após essas viagens carregadas de magia e revelação, veio a quarentena [da pandemia de Covid-19]. 

Deve ter sido um choque…
Nesse período, pensei nesses encontros todos os dias. Em como meu país me surpreendeu com acolhimento, honestidade e coragem. Por isso, defendo que precisamos de mais espaços onde possamos simplesmente estar juntos, livres dessa voz que sussurra: “lute, lute, lute”. Lutar não é a única coisa que sabemos fazer.

O que os poemas de Uma fome tão afiada representam em sua obra?
São uma retrospectiva da minha carreira. Há poemas do meu primeiro trabalho [The Body’s Question], mas também textos recentes que nunca foram reunidos em livro. Salgado Maranhão e Alexis Levitin [que assinam a seleção e a tradução da coletânea] me pediram para indicar poemas que gostaria que fossem traduzidos, e eu estava pensando sobre minha visão como poeta, que tem a ver com a eternidade e os conflitos humanos, mas também com o que está além. 

Muitos poemas vêm de Wade in the Water e, quando penso nesses livros juntos, é quase como um tratado. Uma fome tão afiada reflete sobre o que nós, humanos, estamos construindo juntos, e como destruímos metade disso. Mas quando permitimos que isso venha à tona, algo em nós sabe que há um projeto maior, duradouro, pelo qual somos, de fato, responsáveis.

Tanto Vida em Marte quanto Uma fome tão afiada têm poemas bastante imagéticos, com cenas como a da mulher pedindo cerveja no Pelourinho em “Ministro da Saudade”. Qual é o papel das imagens em sua obra?
Tive aulas de cinema na faculdade e na pós-graduação. Não estudei direção, mas vi muitos filmes para analisar e compreender como as histórias podem ser narradas de modo visual — e adorei isso. Lembro que, quando estava tentando dizer ou explicar algo que não funcionava, pensava: “se eu fosse diretora de um filme mudo, o que mostraria para transmitir essa emoção?”. Isso se tornou uma ferramenta útil. Alguns anos depois, tive um terrível bloqueio criativo. Abandonei uma oficina de escrita competitiva e desencorajadora, parei de escrever poemas e comecei um curso de fotografia. Andar por aí com uma velha câmera pendurada no pescoço me fez ver o mundo de um jeito diferente. A fotografia se tornou um portal para o espaço, ou a memória, que um poema busca explorar ou revelar. Essa dimensão visual é uma das bases do meu trabalho, mas não a única. O que realmente acredito é que, se consigo construir um sentido tátil, concreto e visceral do que estou vendo ou do lugar em que me imagino, posso interagir com o mundo de modo mais presente. 

Além de poesia, você escreveu memórias, ensaios… O que diferencia a escrita desses gêneros?
Parte da estratégia da prosa é me forçar a lidar com temas difíceis, que talvez evitasse na poesia. Já os poemas me convocam. Não há nada que ame mais do que os períodos em que consigo escrever apenas poesia, pois é quando estou em diálogo com meu eu mais profundo, com outras consciências e com Deus. A poesia é meu gesto mais elevado. Mas há sempre algo que desejo discutir, e isso acontece na prosa. Ainda assim, meu livro mais recente em prosa [o manifesto To Free the Captives: A Plea for the American Soul, em tradução livre Libertar os cativos: um apelo à alma americana] é muito poético. Há características da linguagem da poesia que me guiam nesse processo. Embora existam memórias, análises, investigações, o texto é conduzido pela musicalidade de uma voz que não é a minha. Enquanto escrevia, ouvia a voz de meus ancestrais. Escrevi o livro com eles. Foi uma espécie de comunhão.

Como você dialoga com suas referências literárias?
Além de Lucille Clifton, que foi minha professora e cuja obra é profundamente visionária, há uma enorme comunidade de escritores com quem dialogo e que me inspiram, e alguns deles são pessoas com quem cresci. [As poetas] Tina Chang e Brenda Shaughnessy, por exemplo, estudaram comigo na pós-graduação e continuam a me lembrar do que sou capaz e daqueles primeiros desejos que tínhamos como estudantes, de tornar nossas vozes audíveis para o mundo. [O poeta] Jericho Brown também é
um dos meus amigos mais queridos. Costumo compartilhar com ele e Tina os textos que estou preparando, porque me conhecem há muito tempo, sabem quais são meus objetivos e que tipo de feedback preciso. Embora não compartilhe textos com meus alunos, o que fazemos em sala de aula me fortalece como artista, pois me faz refletir sobre meus próprios valores, como expandi-los e como nomear escolhas e ferramentas que aparecem nos textos que lemos. Minha comunidade inclui poetas em formação, aqueles que já partiram e os que seguem ao meu lado.

Como professora em Harvard, como tem sido lidar com os cortes de orçamento na educação e tentativas de restrição à liberdade acadêmica, entre outras intimidações do governo de Donald Trump?
É um momento assustador e tudo está acontecendo tão rápido… Parece uma bola de neve que não para de crescer. Muitos de nós tentamos lembrar qual é a verdadeira missão da vida acadêmica: buscar a verdade. Isso significa reconhecer que o mundo é diverso, e que a excelência surge da diversidade. Precisamos uns dos outros. Precisamos de vivências e pontos de vista distintos. Nossa história é múltipla, cheia de verdades, triunfos e horrores. É feita de lutas, erros graves e também realizações admiráveis. Meu trabalho é tentar manter a esperança de que tudo isso ainda pode ser protegido. Que ainda podemos ser faróis de investigação honesta e de diálogo aberto. Quando deixamos de conversar uns com os outros, quando começamos a negar a realidade e somos proibidos de expressar nossas opiniões, ninguém está verdadeiramente livre.

Do que trata seu novo livro, Fearless Poetry, Imperilled Times [Poesia destemida, tempos perigosos]?
O livro parte dos temas sobre os quais conversamos. Nasce da minha experiência como poeta laureada e do entendimento de que a poesia nos oferece um vocabulário para coisas que muitas vezes não conseguimos nomear ou sequer temos coragem de encarar. Quando seguimos a voz presente na página, ela pode abrir horizontes que precisávamos ver e nos reconectar com partes de nós que estavam adormecidas. Isso, por si só, já é empolgante. Mas a poesia também nos encoraja a nos aproximar de pessoas com quem imaginamos não ter nada em comum, ou que aprendemos a ver como ameaça. Ela nos convida a caminhar ao lado delas com uma crença na sua humanidade e no que elas podem nos revelar. 

Parte do objetivo do livro é abrir esse caminho aos leitores, inclusive para quem acha que poesia é difícil, inacessível, elitista, ou que exige um tipo específico de formação. Quero que essas pessoas saibam que já têm tudo de que precisam para viver uma experiência poderosa e transformadora com um poema. Porque, no fundo, um poema é apenas outra imaginação humana querendo ser ouvida. 

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #93 em abril de 2025.

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