Política,
Dias de eco em Damasco
Nas aulas de árabe com um professor exilado no Brasil e em cenas das ruas da Síria, há sinais animadores para o país
17abr2025 | Edição #93“Qual foi a coisa mais corajosa que você fez na vida?”, Salah me perguntou durante uma aula. Pensei um pouco e respondi: “virar pai”. Ele riu, concordando que ter filhos neste mundo louco é mesmo um ato de coragem. E emendou: “O meu ato mais corajoso foi vir para o Brasil.”
Salah é meu professor de árabe, tem cinquenta anos e nasceu em Damasco, onde viveu até emigrar, em 2014, no auge da guerra civil que destruiu seu país. Não conhecia ninguém por aqui. Começou a nova vida fazendo bicos como cozinheiro, sua profissão na Síria, mas parou porque achou as cozinhas de São Paulo barulhentas demais.
As aulas são on-line e começaram em outubro do ano passado. Tentei saber um pouco sobre sua vida na Síria, mas ele mudava de assunto. “Não gosto de falar, perdi gente muito próxima”, disse com o olhar marejado. Mas, mesmo não querendo, era inevitável que o assunto surgisse. “Aqui no Brasil não tem eco. Na Síria tem muito eco”. O tema daquela aula eram palavras começando com a 14ª letra do alfabeto, ص, sád, e, como exemplo, ele escolheu eco, ou sadá. Uma palavra nada óbvia para quem está começando a aprender uma língua.
Quando garoto, Salah costumava correr com os amigos pelas encostas da montanha Qasioun, entre cafés e restaurantes, de onde se tem uma das mais belas vistas de Damasco. Corriam por entre os arbustos e pedras e gritavam, tardes a fio, esperando o eco voltar. Como uma criança que empina pipa, Salah brincava com o vento: ele gritava e o vento gritava de volta. “Depois não tinha mais eco”, disse, com olhar triste, referindo-se à ocupação militar da área pela ditadura de Bashar al-Assad. A montanha estava cercada e as crianças não podiam passar.
Como uma criança que empina pipa, Salah brincava com o vento: ele gritava, o vento gritava de volta
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Estive em Damasco pela primeira vez em 2001, e estava lá no fatídico 11 de setembro, quando jihadistas da Al-Qaeda sequestraram aviões e os lançaram contra as torres do World Trade Center, em Nova York, matando quase 3 mil pessoas. Era uma viagem de turismo, que fiz com meus pais pela terra dos nossos antepassados.
No bairro cristão de Homs, a terceira maior cidade do país, mencionamos o nome do meu bisavô para um grupo de desconhecidos na rua. Tudo que sabíamos era que ele tinha sido um professor. Na mesma noite, a notícia que parentes do professor Daud Constantino al-Khoury estavam na cidade se espalhou e, na manhã seguinte, fomos surpreendidos com uma recepção num centro cultural onde nos mostraram um livro com peças de teatro escritas por ele.
Constantino
De volta a São Paulo, contratei a tradução dos textos. Descobri que meu bisavô foi um protagonista da primeira geração de dramaturgos sírios, que encenaram peças no final do século 19,
quando a Síria era dominada pelos otomanos. Em 2009 voltei ao país para filmar o documentário Constantino, que fiz a partir da descoberta do livro. Nos meses que passei lá, conheci pessoas que se viravam para trabalhar com cultura. Atores, dramaturgos, músicos, pintores, produtores audiovisuais, professores universitários. O regime de Assad era um problema e falar disso publicamente poderia ser um problema bem maior.
No início de 2011, na sequência das revoltas populares da Primavera Árabe, um jovem escreveu uma frase contra Bashar al-Assad em um muro em Daara, no sul do país, e foi torturado. O episódio foi a faísca para manifestações em diversas cidades da Síria. O conflito, inicialmente entre opositores e forças do regime, logo tomou contornos complexos, com grupos extremistas tomando partes do território.

No início da guerra civil, acompanhei as movimentações de amigos rumo ao exílio, algumas delas traumáticas. Anees, que participou como personagem do meu filme, ao acudir um conhecido após um bombardeio das forças do regime em Homs, foi atingido por estilhaços e perdeu um olho. Orwa, diretor do principal festival de documentários do país, foi preso sem explicações no aeroporto de Damasco e só foi solto graças a uma incessante mobilização da comunidade internacional do cinema. Rafaat, dramaturgo, produziu uma série de filmes curtos com marionetes satirizando Bashar al-Assad como um ditador mimado e atormentado pela aparição do fantasma do pai, que viralizou no YouTube. Em meses, todos tinham deixado a Síria e viveram do exterior a apreensão pelos parentes que não conseguiram sair.
Parece mentira
Em outubro de 2024, enquanto estudava o alfabeto árabe com Salah, parecia improvável que a Síria pudesse se libertar a curto prazo da ditadura de Assad. Afinal, Hafez e Bashar, pai e filho, controlavam o país com mão de ferro por meio século. Estátuas e painéis intimidadores com seus rostos podiam ser vistos em qualquer praça ou prédio público. Mas, em dezembro, um levante liderado pelo grupo rebelde Tahir al-Sham, partindo de Idlib, província no noroeste do país que operava de forma autônoma, tomou de assalto Alepo, segunda maior cidade síria, e seguiu para liberar Homs e chegar a Damasco, em menos de dez dias. O ditador, a essa altura, voava com a família para se asilar na terra de Putin, o governante russo que lhe deu as armas que precisou para trucidar seu próprio povo e se segurar no poder ao longo dos quatorze anos de guerra civil.
Na primeira semana após a liberação, três episódios resumiram o horror da Síria sob Assad. A descoberta de covas coletivas com milhares de corpos — estima-se mais de 100 mil desaparecidos no país desde 2011. A invasão da prisão de Sednaya, conhecida como matadouro humano, por famílias que tentavam desesperadamente encontrar parentes. E a revelação da fábrica onde eram produzidas cápsulas de Captagon, droga exportada ilegalmente que gerava os dólares que sustentavam o governo falido. Tudo mostrado pela imprensa internacional.
O novo líder, Ahmed al-Sharaa, comandante dos rebeldes que derrubou Assad, surgiu com discurso moderado, de respeito às minorias e de inserção da Síria na comunidade internacional, contrastando com seu passado radical de membro da Al-Qaeda. O governo que seu grupo instaurou em Idlib, região com quatro milhões de habitantes, segue valores islâmicos tradicionais, com pouco espaço para as mulheres na vida pública.

Mas mesmo com credenciais duvidosas, os passos do governo em direção a uma nova Síria eram visíveis. A despeito do desafio de lidar com influências externas que não querem uma Síria estável — demasiadas para dar conta nesse espaço, mas que incluem Israel, que vem bombardeando e ocupando partes do território; os EUA, aliados da extrema direita israelense; Irã e seu histórico na era Assad; e a relação com os curdos, que ocupam o nordeste do país e são aliados dos americanos.
Perguntei a Salah sua opinião. “Parece mentira, não é possível que isso esteja acontecendo”, disse ele, depois da queda do regime no 8 de dezembro. O ano ainda não tinha terminado e a Síria estava livre de Assad. As pessoas dançando e cantando nas ruas eram a catarse de um país que finalmente nascia, ou renascia, de um jeito diferente e inesperado.
No final de janeiro, um concerto de música clássica, envolto em simbolismo, foi organizado na Ópera de Damasco. Os músicos tocaram de graça e, na plateia, estavam autoridades e diplomatas. Foi guardado um minuto de silêncio em homenagem às 500 mil vítimas da guerra civil. Entre as imagens projetadas, figurou uma que lembrava a crise humanitária de milhões de sírios que foram obrigados a deixar o país, muitos sem conseguir refúgio ou chegar vivos a algum lugar. A imagem era a de uma criança, Alan Kurdi, que morreu afogado em uma praia na Turquia em 2015.
As pessoas dançando nas ruas eram a catarse de um país que finalmente nascia, ou renascia
Mas o otimismo sofreu um revés em março. Um conflito com ex-oficiais de Assad na região costeira desencadeou um massacre liderado por milícias contra civis alauitas, mesma religião dos Assad. A violência sectária lançou dúvidas sobre a capacidade do governo de estabilizar um país destruído e traumatizado pela guerra e décadas de ditadura. Ao mesmo tempo, uma nova constituição entrou em vigor, estabelecendo cinco anos para o governo de transição, antes de novas eleições. O documento concentra poderes para o presidente Al-Sharaa, mas assegura direitos para mulheres, liberdade de imprensa e de expressão.
Desconhecendo os novos rostos e nomes dos que assumiram o país, Salah preferiu a cautela. “Há sinais animadores. Nada pode ser pior que Assad. Mas somente o futuro dirá.” Meu professor de árabe já fala português e está gostando de São Paulo. Ainda não sabe se vai voltar para a Síria, mas uma coisa já sabe: o eco voltou a Damasco.
Matéria publicada na edição impressa #93 em abril de 2025.
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