Luvas, já!

Ensaio,

Luvas, já!

Diagnosticada com mal de Parkinson, ensaísta canadense reflete sobre a perda de sua caligrafia e outros desafios da doença

01abr2025 • Atualizado em: 02abr2025 | Edição #92

Enfim, sua vida. É ela aí na sua frente — talvez uma estrada, um cordão, uma linha pontilhada, um mapa — você tem, digamos, vinte e cinco anos, toma algumas decisões, faz algumas coisas, retrocede, avança, se torna uma pessoa, motorista de ônibus, professora de linguística, pirata, esteticista, os anos passam, talvez com uma família, talvez sem, talvez feliz, talvez não, e então um dia você acorda e tem setenta anos. Ali em frente, dá para ver o vão escuro de uma porta. Você começa a reparar que ele está sempre ali, dobrando a esquina, mesmo que você não olhe. Quase todos os momentos o contêm, quase todos guardam uma espécie de vão sedimentado no fundo do copo. Você se pergunta se as outras pessoas também o enxergam. Você indaga. Dizem que não. Você quer saber por quê. Ninguém sabe dizer.

Há um minuto você tinha vinte e cinco anos. Então foi buscar a vida que queria. Um dia olhou para trás, a retrospectiva dos vinte e cinco até agora, e viu o vão, escuro, à espera.

*

Quando recebi o diagnóstico de mal de Parkinson, um dos sintomas que achei mais humilhantes foi a desintegração da minha caligrafia. Sempre gostei de preencher cadernos, estantes inteiras de cadernos, dia após dia, ano após ano. Agora minhas linhas verticais saem tortas ou quebradas ou se esparramam em todas as direções, as vogais murcham até virarem manchas, o itálico perde a angulação segura e sutil, é tudo uma vergonha. Esfrego, constrangida, parágrafos inteiros até que sumam.

Difícil descrever, difícil explicar a vergonha pela má caligrafia.

A má caligrafia é feia. Além disso, é falsa. No sentido de que não é você.

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O mal de Parkinson desliga certos genes nas células do cérebro, ninguém sabe por quê. Por causa disso, muitas atividades do corpo e algumas da mente são inibidas ou estraçalhadas.

Norman Doidge escreve, em O cérebro que se transforma, que:

Cada célula do corpo contém todos os nossos genes, mas nem todos estão ativos ou se manifestam. Quando um gene é ativado, ele cria uma nova proteína que altera a estrutura e a função da célula. O nome dessa função é transcrição, porque quando o gene é ativado, as informações necessárias para criar essas proteínas são “transcritas” ou lidas no gene individual.

Então o cérebro tem uma caligrafia própria. Que depende de uma proteína específica. Posso imaginar o pobre do meu cérebro jogando as mãos para o alto em desespero, ao perceber que as proteínas da boa caligrafia estão zoneadas ou se perderam.

Sejam bem-vindos à zona de fragmentação. Mãos dadas. Os vetores metafóricos e metabólicos se sobrepõem. Confuso? Sim, é confuso mesmo.

Vê-se a diferença entre a caligrafia de Keats nas anotações para poemas e nas versões “passadas a limpo” para seus editores ou amigos. Eu analiso essa diferença. Falo pra mim mesma, é só falta de atenção; vire a página, preste atenção, tente de novo. Eu tento; engano meu. A vida escorrega mais um degrau em direção à barbárie.

A vida agora é injusta!

A má caligrafia é feia. Além disso, é falsa. No sentido de que não é você

A caligrafia é uma marca que vem de dentro de mim e a exponho do lado de fora, frequentemente com a intenção de mostrar, contar, comunicar. Carrega aquilo que Gerard Manley Hopkins chamou de “inscapar” para fora. (Nota: “inscapar” queria dizer mais de uma coisa para Hopkins, só que não conheço o suficiente da psiquê dele nem de sua poética para explaná-las aqui, mas aqueles cadernos de Dublin — nossa!)

Se sua letra é inclinada para a direita, você é uma pessoa fortemente influenciada pelo pai; procrastinadores põem o pingo à esquerda do “i” etc. A grafologia é o estudo da caligrafia como pista para decifrar uma personalidade. É difícil desdenhar dela como pista.

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Desintegração escritural: também assusta como imagem do desarranjo cognitivo provocado aos poucos pelo mal de Parkinson. Névoa, esquecimento, descontinuidade, quebras e lacunas, desaceleração, estagnação. Quando os críticos se referem ao “estilo tardio” de Beethoven ou Baudelaire, estão falando também das marcas no papel, das pistas para o assombro no cérebro?

“Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes”, escreveu Adorno em seu Escritos musicais.

Em termos grafológicos, a arte de Cy Twombly cria uma aberração. Suas pinturas trazem palavras escritas a mão, gravadas de modo a não oferecer qualquer pista a respeito dele ou de sua personalidade ou estado de espírito. Rabiscadas, gatafunhadas, entortadas, à toa, desadoráveis — é a caligrafia de pessoa nenhuma, ou de todos nós, ou mítica, ou mancha esquecida que encobre o que havia sido escrito antes. Uma marca sem ninguém dentro. Vergonha nenhuma.

Os neurologistas hoje acreditam que o cérebro é plástico e que certas atividades podem criar novas conexões, gerando neurônios que substituem os perdidos ou, senão, reavivando os neurônios que ficaram preguiçosos e lentos. O boxe é recomendado. Frequento aulas de boxe três vezes por semana. Todo mundo nessa aula tem Parkinson, em níveis de dano variados. Num certo momento, o instrutor grita: “Luvas, já!”. Corremos para buscar as luvas nos escaninhos. Vestir a primeira luva de boxe é fácil. A segunda é que requer ajuda. “Não vale usar os dentes!”, o instrutor avisa. Fato interessante: é impossível conjurar o vão escuro da porta enquanto tem outra pessoa vestindo sua mão com uma luva de boxe.

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Tremor, o que é? Tremedeira incontrolável de um membro, identificada pelo cirurgião e apotecário inglês James Parkinson em 1817 como um dos primeiros sintomas visíveis em pessoas acometidas pelo que ele nomeou “the Shaking Palsy”, “a paralisia trêmula”.

Quando tento fazer uma movimentação complicada no boxe, por exemplo uma sequência um-dois-quatro-cinco (jab de esquerda, direto de direita, cruzado de direita, upper de esquerda), consigo sentir meus neurônios se esforçando, se desdobrando. Sim, eu sinto. Agora você me acha maluca. Perdão, neurodiversa.

Digamos então que um tremor é provocado pelo fluxo de eletricidade nos caminhos neurais numa velocidade que me desagrada e escapa ao meu controle. Por exemplo, quando estou escovando os dentes com a mão direita, como costumo fazer, e sinto um tremor, a escova de dentes zarpa de um lado para o outro numa velocidade selvagem, esbarrando nos lábios e gengiva. Mas os caminhos neurais obedecem a um enquadramento. Se eu me concentro e mudo o enquadramento — levantando ou baixando o braço esquerdo — consigo interromper o fluxo e acalmar o tremor. O segredo é a concentração. Preciso pensar até entrar no movimento.

Quando tento fazer uma movimentação complicada no boxe, sinto meus neurônios se desdobrando

Um homem chamado John D. Pepper fez uma descoberta parecida diante de sua dificuldade de caminhar. Caminhando, ele lidou com seus problemas com a caminhada: vinte e quatro quilômetros por semana divididos em três seções de oito quilômetros a uma velocidade de seis quilômetros e meio por hora. Seis quilômetros e meio por hora é uma velocidade mais rápida do que tendo a gostar de andar. Exige esforço. Me obriga a prestar atenção no movimento. Quer dizer, essa ação motora que outra pessoa poderia realizar automaticamente requer, no meu caso, uma atenção deliberada. Ao empregar essa técnica de movimento intencional, Pepper se tornou capaz de domar o tremor e outros sintomas motores. Provavelmente começou a desenvolver o mal de Parkinson quando tinha seus trinta anos (não que ele tivesse recebido o diagnóstico tão cedo) e hoje já passou dos noventa. Ele vigora, intensamente.

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Endireitar-se para vencer uma correnteza que nunca arreda: os livros dizem que eu deveria prestar atenção intencional e incessante a ações como caminhar, escrever, escovar os dentes, se quiser inibir ou retardar as falhas neuronais do meu cérebro. É difícil viver nesse esforço constante. É difícil viver habitando a palavra “degenerativa”, que quer dizer que, por mais que eu me esforce, não tenho como ganhar.

É óbvio que todo mundo se esforça o tempo todo. E que ninguém ganha da mortalidade. Mas existe uma diferença entre se esforçar para (por exemplo) aprender grego antigo ou passar aspirador e se esforçar para prestar uma atenção microscópica a cada milímetro de cada ato corporal. Em seu estudo da própria caminhada, Reverse Parkinson’s Disease [“Reverta o mal de Parkinson”, sem tradução para o português], Pepper disseca em nove segmentos de ação e seis pontos de atenção cada passo que dá. Olhem isso. Que homem intenso.

Escrever este ensaio num caderno com uma caneta esferográfica está sendo um exercício punitivo. Só dá para ler uns sessenta porcento da minha letra. Não ascendo, com esses garranchos, a uma liberdade twomblyesca para além da clausura do clichê ou dos grilhões da personalidade. A caligrafia continua sendo muito eu. E, sinceramente, um pouco detestável.

Mas vamos terminar com algo leve. Uma citação de Barthes pode melhorar o clima.

Ao descrever a gaucherie da caligrafia de Twombly, Barthes menciona a leveza, a tendência que ela tem de ir aos poucos se apagando e sumindo num vapor de inocência. Ele admira o impulso de “relacionar, num mesmo estado, o que aparece e o que desaparece; [sem] separar a exaltação da vida e o medo da morte, [mas] produzindo um só afeto: nem Eros nem Tânatos, e sim a Vida-Morte, numa só ideia, num só gesto” — num só tremor?

Tradução de Sofia Nestrovski

Quem escreveu esse texto

Anne Carson

Autora de A beleza do marido: um ensaio ficcional em 29 tangos (Bazar do tempo), é poeta, ensaísta, tradutora e professora.

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025.

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