A Feira do Livro,

Pelé, uma identidade nacional possível

O crítico de arte Lorenzo Mammì e o historiador Luiz Antonio Simas fazem uma homenagem ao Rei do Futebol

08jun2023 | Edição #70

“Pelé sintetiza a identidade nacional possível”, diz Luiz Antonio Simas na abertura da mesa “Homenagem a Pelé”. “Ele transcende a dimensão clubística para se transformar naquilo que o Brasil pode ser. Ele aponta para o futuro, ele é o Brasil possível.” O historiador — autor de mais de vinte livros, entre eles Maracanã: quando a cidade era terreiro (Mórula, 2021) — falou sobre a criação identitária de Pelé em um país projetado para excluir. “Pelé é a viabilidade da construção de um Brasil generoso.”

A mesa, mediada pela jornalista Anita Efraim, teve também a participação do crítico de arte e professor de filosofia Lorenzo Mammì, que falou de suas primeiras lembranças de Pelé, sintetizadas em imagens estatuescas: “Tenho uma visão mitológica muito forte de Pelé”. Nascido na Itália, ele também falou sobre a visão que se tinha do Brasil no exterior nos anos da ditadura. “Era uma imagem de leveza, não violência, fantasia, ligada quase a uma dança. Ninguém identificava o Brasil com uma ditadura militar. Era futebol, música popular, arquitetura do Niemeyer. Uma modernização doce, que não era ligada a grandes conflitos.” Segundo ele, Pelé representa “essa ideia de um Brasil de extraordinária eficiência técnica ligada a uma absoluta liberdade — mesmo que aqui dentro a gente perceba que não é isso”.

Ao ser questionado sobre a cobrança de um posicionamento antirracista que tanto se fez a Pelé, Simas fez uma contextualização histórica. “Construiu-se certo mito de que a mestiçagem teria amenizado a violência que marcou a história brasileira. O Brasil começou a discutir identidade nacional sobretudo no pós-Abolição, e o branqueamento era um projeto de Estado”, conta, dizendo que a eugenia estava na moda — acreditava-se que, ao longo de diversas gerações, iria-se embranquecer a pele brasileira. O discurso, porém, acabou sendo substituído por outro de que teríamos resolvido nossos dilemas com a mestiçagem, contexto no qual surgiu Pelé. “É evidente que o Estado também viu nele um símbolo desse discurso que gostaria de construir.”

Para Simas, o sucesso estrondoso do atleta teve uma contrapartida perigosa: um discurso de fundamento racista de que o branco é intelecto e o negro é corpo. “Mesmo quando o Pelé se destacava mostrando que o negro conseguiu romper barreiras e atingir protagonismo, ainda havia um discurso fundamentalmente racista de que a corporeidade era negra e a intelectualidade era branca.”

Ele destacou ainda um aspecto que julga fundamental de Pelé: a representatividade. “Imagine o que é pra uma criança negra que aprende na escola que a arte, a filosofia, a matemática, tudo o que aconteceu de interessante na humanidade foi feito por brancos, europeus. Isso é terrível para a consciência simbólica do ser, é demolidor para a autoestima.” Ele lembrou que, ao desqualificar os saberes não brancos, estamos operando na dimensão do racismo, que não opera somente na intolerância à cor da pele, mas no campo simbólico. “Por isso é tamanha a representatividade que o Pelé teve para a criançada preta. Ele chegou a uma transcendência tão grande que saiu da história para ir para o mito.”

Um Hércules negro

Ao comentar a comparação de Pelé com outros jogadores, Mammì disse, arrancando risos da plateia: “O Pelé é um Hércules, que no fim vira um herói. O Maradona é como um Prometeu, que luta para chegar ao Olimpo e nunca chega. Já ao Messi falta um pouco de conflito”. O crítico comentou também sobre o que tornava o jogador tão especial. “Pelé tinha um preparo físico, é claro. Mas ele tinha 1,70 m. O que ele tinha, evidentemente, era uma superioridade mental. Ele fazia a escolha mais certa. Era extremamente eficiente e econômico nos gestos. E tinha uma extraordinária capacidade de prever o que os outros jogadores iriam fazer. O Pelé tirava o zagueiro com os olhos. Parecia que ele estava sempre jogando no segundo seguinte.” Finalizando a mesa, Simas concluiu: “Ninguém tem mais o delírio de suspeitar que um outro Pelé vai surgir”.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

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Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.